NICOLAU SAIÃO

Poesia e Sociedade – dois aspectos complementares*

O homem é perecível; pode ser. Mas pereçamos resistindo
e se, ao fim, o que nos está reservado é o vazio e o nada,
façamos com que isso seja uma injustiça.”
Étienne de Senancour

INDEX

I - Introdução
II. O artista e a fascinação do mundo
III. A recriação da natureza

POEMAS LIDOS NA OCASIÃO

- Encontro em Paris
- Variações para um amigo que me endereçou um repto
- Fala do pastor no dia seguinte 
-
Genealogia
- Primeiro poema de Samyaza

FALA DO PASTOR NO DIA SEGUINTE

Eu estava era de manhã quase junto ao casebre baixara-me

para desapertar a corda de esparto do pescoço da cabra

Não o vi chegar mas ele viera a pé

O assobio delicado entredentes quase um sopro

Retraído para que não me assustasse

 

Fiquei a olhá-lo era grande a minha tristeza no entanto

não sentia nem melancolia nem receio

Apenas soltei um suspiro uma espécie de riso

um pouco talvez de divertido pasmo

Ao longe o sol de Março Ao longe o brilho de uma árvore

Piscou-me o olho O seu rosto estava na meia sombra

A cabra quedara-se como estátua agora roçava-se-lhe na perna

 

Segui-o Ele entrara na casa

Os meus passos como se ressoassem em chão de tábua.

Pousou a mão sobre a mesa um sobressalto de pó

erguera-se a um canto.

Não lhe olhei nem as mãos nem a testa requeimada

que um vinco de sangue sulcava

Sabes? perguntou com a voz enrouquecida

e todavia clara Um certo ar de perplexidade

Alguma daquela gente não era de facto gente de bem

Enchi um copo com o vinho que me sobrara da véspera

Sabes? disse-me então e limpava a boca com um dedo

Alguns deles não sabiam de facto o que diziam Teriam sabido o que faziam?

Poderei doravante carregar este destino? pensei eu

E contudo a resposta já eu a conhecia.

 

E ali ficou sentado. As mãos abandonadas no regaço. E a amargura

entrou em mim.

Ao sair

olhei a cabrinha que se chegara trémula junto da porta

Olhei-a como se do seu pelo um clarão negro se soltasse

Olhei-a e senti o mundo parado para sempre.

E assim o vi eu depois que regressara de entre os mortos.

 

*(Intervenção de NS na sessão levada a efeito no “Ateneo Cultural” de Badajoz)