MANUEL JORGE MARMELO
O Faraó
"Sou faraó prazer minha mãe
Sou faraó passeio pelo sol
Sou faraó o rei da folia
Sou faraó e o Egipto é a Bahia"

Carlinhos Brown

Jacob não é só uma das mais notáveis personagens de um "best-seller" internacional de autor desconhecido. Jacob tinha também vários filhos. Um dos filhos de Jacob chamava-se José, o qual , como o pai, o avô, o bisavô de Jacob e todos quantos os precederam, era judeu. Um dia, José foi raptado pela tribo dos medianitas, que não deviam, por isso, morrer de amores pela dos filhos de David. À falta de câmaras de gás ou outros meios de destruição maciça - tipo boeing, lança mísseis ou bombardeiro invisível -, os medianitas limitaram-se a vender José ao eunuco do faraó do Egipto. Das duas, uma:

- naqueles remotos tempos o imperador do Egipto não tinha conhecimento das potencialidades do seu traje no Carnaval da Bahia; de contrário, teria prescindido do eunuco e do cargo, embarcando para Salvador e ido saltar atrás de um trio eléctrico, rebolando no meio de uma nuvem de sumptuosas negras)
- o faraó era maricas

Consumado o negócio, o dono de José passou, portanto, a ser Putifar, o qual, para além de eunuco, era ainda o chefe da guarda do faraó - facto que o transforma num peculiar representante da autoridade policial (mas por algum motivo os impérios não duram para sempre).

José, apesar de vendido como qualquer mercadoria, chegou à corte do faraó com a melhor das intenções: enamorou-se de uma dessas nilienses de olhos rasgados, com uma serpente dourada na cabeça (imaginem a Liz Taylor, antes das rugas e das plásticas, a fazer de Cleopatra, e estarão perto). Embora passeado numa trela pelos corredores, devidamente açaimado e emparceirando com um galgo branco que Putifar comprara, anos antes, ao mesmo mercador medianita, José logrou fazer a corte à mulher, piscando-lhe o olho esquerdo e abanando a cauda sempre que com ela se cruzava nos corredores do palácio.

Certa tarde em que Putifar abandonou José e o galgo amarrados a uma colunata (consta que o cão aproveitou para alçar a perna e verter águas), sucedeu que Liz Taylor por ali passou, leve e tépida, caminhando de um modo que fazia oscilar o busto farto. Sendo Primavera e estando José com o cio, atracou-se às pernas da mulher - que não era a Cleopatra (nem podia ser), mas a amante do primo do secretário do faraó. Afogueda, a bela niliense conseguiu libertar-se do assédio do judeu e correr pelos corredores do palácio e apresentar queixa ao seu queriducho. Moveram-se, então, influências entre as mais altas esferas do faraónico Estado, acertou-se o pagamento de favores polpudos, conspirou-se, prometeram-se nomeações e, após várias manobras, chegou ao conhecimento do secretário do faraó (há muito incompatibilizado com o primo por dissidências sexuais) a sugestão de que o escravo de Putifar devia ser imediatamente detido, acusado de assédio sexual e violação na forma tentada. Embora há vários anos o faraó permanecesse num estado de profunda letargia, sem dizer o que quer que fosse, a decisão foi severa e muito pouco salomónica: prisão. Era esse o significado, assegurava o secretário, daquele tossicar do imperador durante o sono.
A incompetência é, porém, madrasta da justiça: como o oficial encarregado de levar José ao cadafalso passou a fatídica tarde trocando carícias com Putifar, o guarda que o substitui atrapalhou-se na execução da missão e deixou José na câmara onde os eunucos do faraó dormiam enroscados

(podia ter sido pior: o guarda podia ter levado o galgo, o que já antes sucedera, de resto, estando estas confusões na origem da veneração que alguns faraós dedicaram aos caninos, chegando a ser-lhes reconhecidas capacidades mediúnicas; são inúmeros os frescos que documentam este facto histórico, mostrando seres com cabeças de cão e corpos humanos, retorcendo as mãos daquele jeitinho...).

Consta ainda que a iniciação sexual de José entre os eunucos foi particularmente dolorosa - contra o dorso de uma grande palmeira envasada, colocada no centro da câmara -, provocando-lhe escoriações diversas, a mais notória das quais no alto da cabeça. Terá sido inventado, nessa altura, um penso circular de algodão para cobrir o ferimento, posteriormente utilizado na Galileia, com adaptações, como adereço cénico de algumas celebrações religiosas.

Das duas uma:
- José gostou, apesar de tudo.
- José não gostou, mas comeu calado e, seguindo os preceitos do darwinismo, adaptou-se.
Mas, adiante:
Sucedeu, pois, que, numa noite em que o faraó pestanejou três vezes - o que significava, segundo o secretário, que o imperador queria brincar -, José foi escolhido, por um assessor, de entre as dezenas de eunucos adormecidos para ir fazer companhia ao big boss do Egipto.

Essa terá sido, segundo reza uma lenda milenar da tradição oral de um povo nómada que passava ocasionalmente pelas margens do rio Nilo e que por ali estavam naquela altura, uma noite como houve poucas no Egipto dos faraós. Havia no céu uma lua gorda e branca e uma brisa ligeira soprava nas folhagens das palmeiras. Os pequenos egípcios tinham já ido dormir, aproveitando os seus progenitores para ir molhar as canelas magras nas cálidas águas do rio. Os camelos descansavam sobre a areia ainda quente e o ar estava carregado do crrri-crrri-crrri de milhares de grilos que, àquela hora, ousavam colocar as cabecitas para fora das tocas. A paz era, pois, total, até que um grito lancinante acordou os camelos e fez reverberar as águas do Nilo. Depois escutaram-se outro e mais outro, e depois outro, até que os gritos se tranformaram numa doce melodia que voltou a embalar os camelos e acompanhou o percurso da lua no céu, inspirando os progenitores dos pequenos egípcios adormecidos a entrar na água e a namorar. Consta até que nessa noite nasceu a expressão lua-de-mel, mas é provável que essa seja uma daquelas coisas que certos povos contam à guisa de auto-marketing, para se valorizarem internacionalmente.

Quando amanheceu, a luz forte voltou a inundar o Egipto e a ressequir o lodo das margens do Nilo. Podia ser um dia como qualquer outro, mas todos os que, de madrugada, haviam escutado os gritos - que, afinal, eram suspiros apaixonados - sabiam que aquela seria uma jornada diferente, embora ninguém ainda pudesse dizer porquê. Na ausência da CNN e da Al-Jazira, muito poucos ficaram também a saber depois. Mas a verdade, a grande verdade que narra a lenda milenar dos nómadas que às vezes acampavam nas margens do Nilo, é que, ao amanhecer, José tinha sido nomeado intérprete oficial dos sonhos do faraó e, simultaneamente, seu ministro, facto que conduziu à decadência, por falta de utilidade, dessa autêntica côrte paralela que era a câmara dos eunucos. Seis meses depois, apenas lá permaneciam, entre nódoas de humidade, montes de excrementos e palmeiras ressequidas, seis jovens viciados em substâncias alucinogéneas, mais tarde expulsos pela guarda do palácio e transformados em arrumadores de camelos.

Para que a história tenha um final feliz, falta apenas dizer que Putifar teve um epílogo atroz, condenado por sodomia e dado de comer aos crocodilos do Nilo (o faraó voltou a tossir durante o sono, mas, desta feita, com mais veemência). A dupla de Liz Taylor, descobriu-se depois, era um gladiador do circo de Roma que estava no Egipto ao abrigo do estatuto de asilado político. Tinha sido uma das peças-chave do mega-processo que julgou Cleopatra por traição à pátria e os serviços secretos do faraó haviam concedido uma nova identidade ao bicho - para evitar retaliações romanas.
José e o faraó viveram felizes desde então, convidando amiúde Liz Taylor para jantar lá em casa. Agora, quando o orçamento de Estado o permite, fazem férias em Fevereiro para irem os três ao Carnaval do Rio. Desfilam no bloco dos travecos, com a Roberta Close e a Cláudia Raia.

Este conto foi escrito por encomenda da editora Quasi, para integrar uma colectânea de autores portugueses e brasileiros.
Blog de Jorge Marmelo: http://planeta.ip.pt/~ip202503/geral.html
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