José Emílio-Nelson, poeta, crítico e editor, é o pseudónimo literário de José Emílio de Oliveira Marmelo e Silva, nascido em Espinho, em 17 de Maio de 1948. Iniciou a sua obra em 1979, com o livro Polifonia, e poesia recolhida em 2004, no volume A Alegria do Mal, prefaciado por Luis Adriano Carlos. Recolheu textos de umas dezenas de livros na sua mais recente coletânea, Beleza tocada, em 2016.
O interesse ético e o valor estético
Conferência no 3º Encontro TriploV na Quinta do Frade. Lisboa, Mosteiro de Santa Maria, 17 de junho de 2017.

A Estética permite o acesso a múltiplas questões, nomeadamente às problemáticas éticas (da condição humana). Não vem a propósito demonstrar a versatilidade do conceito [de Estética] que frequentemente dissimula as formas ideológicas dominantes (num percurso da Ética à Estética ‘como Ideologia’ — segundo Terry Eagleton). (Parto do pressuposto de entender a Ética como ‘persistência do Espírito’ que subordina a Estética — beleza-verdade-bondade [Shaftesbury] —, ou seja, a Ética entendida como compilação de preceitos (ou conselhos) para a ‘Procura do bem’  que condicionam a Estética (e cuja desobediência a esse código moral determinava sanções divinas). Seguidamente, referirei o movimento pendular (a inflexão) ‘Da Ética à Estética’ para ‘Da Estética à Ética’.) 

[A conexão entre a Ética e a Estética sugere-me citar dois poemas intitulados OBSCURA PERGUNTA e DE UM SEM-ABRIGO A UM CRISTÃO. [Leitura pelas diseuses  Maria Azenha e a Maria José Camecelha], a partir dos quais formularei alguns comentários, o que não deixa de ser embaraçoso dado que os assino.] 

Desde sempre, o accionamento da Ética ao modo de ler, acaba por ambicionar identificar-se um ‘registo dóxico-ideológico e filosófico da Ética’ (Derrida), sem autonomia da Ética face à religião, registo de Sabedoria na progressão do pensamento. 

[Uma observação se impõe para maior clareza: a representação literária, se entendida à letra, encerrada em figurações  retóricas, pode prestar-se a absorções de interpretações precipitadas, a análises que caricaturalmente classificaria de autópsias acessórias, motivadas pela filiação a correntes Críticas. E, nesse percurso, a Ética confunde-se (funde-se) com a Estética que a veicula.]  

 

 Obscura Pergunta 

Que mão desaparece e aparece por dentro de nós?

É mão ainda a que desce sobre os versos? Mão agónica?

Qual mão? A que se mortifica muda e confusa e nos consome?

Ou a que evola Deus? 

 

[Que mão desaparece e aparece por dentro de nós?]

Como definir essa obscura pergunta do ‘homem falível’ sobre o ‘temor ético’ [Paul Ricour] sem nos centrarmos numa reflexão sobre a Ética, enfocados na Ética Cristã?

Se trata de um depoimento confessional, do mais interior, que coloca no início do poema a pergunta inquietante, exercício de auto-consciência 

[É mão ainda a que desce sobre os versos? Mão agónica?]

O vínculo com a ortodoxia (como por exemplo a propagação de regras religiosas que ordenam a severidade com o corpo) e o seu esconjuramento, dá ênfase ao desassossego, à dúvida gerada pela desobediência a que o verso alude. 

[Qual mão? A que se mortifica muda e confusa e nos consome?]

Mais do que uma postura agonista acerca da profissão de Fé, afirma-se um pensar perseverante que não é imposição ou impedimento, antes interrogação motivada pela ambição de ultrapassar, de obedecer ao quadro emblematicamente canónico e avaliá-lo na perspectiva de atingir a ‘felicidade no seu todo’ [Henry Sidgwick]. O tom metafórico que ressoa no poema, que é da poesia alegórica, confere a ‘mão’ a vez de dizer Ética. A mão como metáfora da Ética (da Crença?) não é deliberação conclusiva de uma submissão a um Código de conduta (porque interroga: —‘Qual mão?’), e, consequentemente, alcança a Estética, aproxima a Ética da Estética, versátil nas disposições em que se manifesta e a subscreve. Ou resulta num processo em que Ética e Estética se envolvem na construção do pensamento?  

[Ou a que evola Deus?]

O discernimento entre ‘evocar’ e ‘evolar’ acaba por não ter no âmbito da Gramática, no poema em análise, segundo julgo, uma  diferenciação perfeitamente atingida. Mas será de sublinhar a ambivalência verbal de evolar, que significa volatizar, exalar, elevar-se voando, o que presumivelmente, aproxima da presença do mesmo significado de evocar.

Assumindo o domínio da arbitrariedade na interpretação (se se entender o poema como enigma, de compreensibilidade inatingível), uma hipotética sentença de opinião o acusaria de que  ‘evola Deus’ e não de que se ‘evola para Deus’.

A desobediência do Homem a uma tradição doutrinária que permanece na Teologia, mais concretamente na escatologia (que proclama o fim do mundo, a utopia da vida eterna), não justifica hoje um processo inquisitório, a perseguição e posterior sanção penal, não poucas vezes sentenciada com a condenação à morte do herege. Na contemporaneidade, a criação artística tem em si uma força que interdita todo o Dogma de prosseguir e alcançar um horizonte Estético. Perante essa posição a Ética finge ser a Estética.

Será permitida toda a desmesura, sem refutação, para se atingir o VALOR ESTÉTICO contra o INTERESSE ÉTICO baseado em velhos códigos que muralham os humanos em sentimentos de culpa, discurso penitenciar, que maniata a liberdade criadora  com  juízos morais aleatórios que determinam a inclinação para o justo e o que é diferenciado e sentenciado como maledicente.

Neste contexto (de inibição do Pensar) se pretenderá impor um código penal que continuará a apatia social. A Ética é entendida como parte do aparelho repressivo, que disciplinará  comportamentos e compromissos.

O que acontece no que se escreve é o que se pretende que aconteça, que venha a acontecer, aquilo que se relata como verdade ou ficção. O autor responde por tudo o que ocorre na narração, as fantasmagorias, o comportamento moral de excessos e defeitos, os compromissos assumidos nas acções decorridas, o que se omite, as resistências glorificadas, a desistência, enfim, o modo como se comportam as personagens, os intervenientes das versões teatralizadas, romanceadas.

A Estética, na sua multiplicidade conceptual, impulsionou a discussão da Ética. A irracionalidade perturbadora ou a racionalidade obediente, a mera subjectividade contingente, o impulso lúdico, ou seja, as singularidades optativas ou imperativas, num determinado momento histórico, condicionam a Estética e confundem-na com a Ética. Não são estanques os conceitos e muita da temática que se discute hoje à volta da Ética e da Estética, uniformiza-as numa proclamação simultânea. (Foucault desenvolve esse conceito como ’deslocamento teórico’ que faz com que o sujeito ético pense a sua vida como obra — cuidado de si —, como ‘estética da existência’, ascese.) A simbólica estética recorre a temas que se vão aperfeiçoando, mas que continuam como dominantes no código do julgamento crítico.

(De relembrar que o conceito de beleza, no seu percurso de formação, se definiu como algo próximo de Deus, pertença de uma Ética sem impureza, é igualmente um tema enfatizado na Estética, — se é belo é bom.)

Evidentemente, se a Ética proclamar normas, obrigações, interdições que se traduzem em práticas severas de intimidação, e se retomar acções repressivas que se concretizem em reduzir a cinzas bibliotecas, a imposição da Censura e a perseguições a autores, a Ética desacredita-se. Se identificada com servidões, é confrontada pela criação artística (conciliada com o Mal, se nos lembrarmos de autores como Sade), na constante transgressão  que incorpora a ruptura, a rebelião.

Punir o autor é vigiar a aclamação do seu pensamento, e a avaliação se centra unicamente no que proclama, recusando a tribuna artística, a liberdade de expressão. Se acreditássemos em tudo o que lemos nunca haveria motivo (e incentivo) para o confronto de ideias.

Não se entenderá, do exposto, que se nega os princípios éticos universalmente aceites. Contudo, a reprovação do erro culposo, na óptica da Opinião Pública, deve exprimir-se no campo estético,  nunca na censura à realização artística.

Não se defende o despojar da Ética das normas imperativas de obrigações e interdições consignadas na Lei, mas antes a necessidade de incorporar uma consciência de não expiação limitadora da força das especulações do acto artístico. 

 Da Estética à Ética 

Encontramos no segundo poema seleccionado, De Um Sem Abrigo a Um Cristão, motivo para  percorrer intuitivamente a hipótese de uma inflexão ‘Da Ética à Estética’ para ‘Da Estética à Ética’. (Espero não cair na ‘falácia de uma interpretação única’ [Paul de Man].) 

DE UM SEM-ABRIGO A UM CRISTÃO 

O gesto da Piedade devolve-te Deus? [1]
Deixas-me na Culpa, não me queres no meio de Ti.[2]
(Abusa de mim, que adoeço enrolado 'ao meu alcance'. [3]
Sou Lúcifer ou a Cruz?, pregas a iniquidade.)[4]
Apaziguado por jogares ossos a Cérbero que me consola,[5]
E cobertores quando regressas para 'o puro mel dos favos'? [6]
Que fazes por mim?  Afastas o meu corpo descalço. Por que me julgas?[7]
Justifica a Cólera.[8]
O Mal é soberano e é a chave do Divino. [9]
É esta a Ordem do Tempo?[10] 

Não valorizando a ‘pureza da forma’ da ‘obra de arte’, mas ‘o conteúdo tornado forma’ [Marcuse], o modo de abordar o poema seria, zelosamente, começar pela ordenação das peças do puzzle, que se apresentam ‘no seu poder transcendental da linguagem’ [Paul de Man], em enumeração irracional, algo confusa, bem ilustrativa do jogo e do jugo cruzados que se mantém inequívoco.

O que aqui se pretende com o envio a De Um Sem-abrigo a um Cristão é, de certo modo,  a imposição da legenda a ’Da Ética à Estética’, propondo um monólogo que se torna ‘forma’ pelo ‘despedaçamento do texto’ [Tadeusz Kantor], pelo ‘esboroamento’ numa prática de desconexões [Sarrazac].

De Um Sem-abrigo a um Cristão, na sua descontinuidade, sugere o espelhar do diálogo absurdo entre a consciência do dever do crente (postura correcta) e a inacção (atitude incorrecta).

A circunstância em que se contextualiza o poema é de uma situação social de exclusão, que revela contradições entre a postura assistencialista (participada com responsabilidade social na solução de pobreza extrema) e a acção social estatal limitada (pela ideologia dita neo-liberal). 

A Ética, como ideologia — É esta a Ordem do Tempo?[10] —, neste poema, deduzo eu, tomada por empréstimo à inquietude dolorosa da obediência, se confronta com regras primordiais no apelo a praticar-o-bem para merecer a recompensa divina —  ‘O gesto da Piedade devolve-te Deus?’[1]. E não introduzirá na sua expressão regressiva, como consagração, o apelo à remissão do pecado no Juízo Final? ‘Deixas-me na Culpa, não me queres no meio de Ti.’ [2] 

A querela na ‘alma’ a contrabandear entre a instrutiva Erecção Canónica da comunidade monoteísta e a aceitação de castigo pela discriminação ‘do próximo’, manifestando o remorso pelo mau desempenho cristão, a negação do pecado (iniquidade), a visão da presença de Lúcifer, da Cruz (‘Cruz’ como metáfora de Deus?), inverte a prioridade da relação com Deus  ‘imaginativa’:

(Abusa de mim, que adoeço enrolado 'ao meu alcance'. [3]

Sou Lúcifer ou a Cruz?, pregas a iniquidade.)[4] 

Monólogo que revela uma percepção, visão interior que, como lembra Ratzinger, é referida na Antropologia-Teológica como uma das formas de visão, a par da visão pelos sentidos e a visão espiritual (imaginativa). 

Curiosamente, na configuração intertextual bíblica a que se recorre, expressa nos fragmentos incrustados no texto, concretamente: ‘o puro mel dos favos’ e ‘ao meu alcance’ (formas de ‘visão espiritual’), a Ética soa em sintonia com o que a Estética propõe apurar, aperfeiçoar, na medida em que convoca o pré-poético sem anular o que o poema inscreve: a contradição do homem soberano que emerge com consciência histórica e que colide com a impaciência humana acerca do Além.

Apaziguado por jogares ossos a Cérbero que me consola, [5]E cobertores quando regressas para 'o puro mel dos favos'? [6]  

Na verdade, submetendo-se ao juízo do gosto (a que a Estética anseia) e aos princípios da Ética, em ‘versículos’ que provocam e afirmam a dúvida sobre as convicções e transigem no fazer  (versejador) da diatribe — Sou Lúcifer ou a Cruz?, pregas a iniquidade’[4] O verso através do seu registo afirmativo e interrogativo, propicia a perplexidade que é a chave do descerramento, expressa a incerteza em declarar como se alcançam os fins, e perpetua a dúvida. 

O Mal é soberano e é a chave do Divino. [9] 

Prevalece indefinido o poder escolher fazer o Bem ou o afastar-se do caminho do Bem que, no poema, consiste na entrega ao próximo do auxílio entusiástico e recusa a indiferença, o abandono-à sua sorte do irmão-em-Cristo,  pobre, despojado. 

A voz do verso grita a blasfémia perante a indiferença manifestada, a recusa da solidariedade e a imposição da submissão (num tom angustiado que parece ecoar os versículos de Jeremias).Versos que  assimilam a expressão cifrada da degenerescência contemporânea, do Mundo perdido, desventurado, em que as respostas se resumem a um ‘Vigiar e Punir’ [Foucault].

Que fazes por mim?  Afastas o meu corpo descalço. Por que me julgas? [7]

Justifica a Cólera.[8]  

* 

[Da Ética à Estética e Da Estética à Ética — Pressupõe ’o interesse ético no valor estético’ [Henry Sidgwick])] 

Esperançoso é o predomínio pendular desta constelação entre a paixão pelo valor estético que recusa os termos de estilização como cosmética, e o apelo à declaração do interesse ético em que a razão prevaleça.

É nesse sentido que o pensamento contemporâneo reclama a percepção de semelhanças e de dissemelhança entre a Ética e a Estética.

 

José Emílio-Nelson