A
Estética permite o acesso a múltiplas questões, nomeadamente às
problemáticas éticas (da condição humana). Não vem a propósito demonstrar
a versatilidade do conceito [de Estética] que frequentemente dissimula as
formas ideológicas dominantes (num percurso da Ética à Estética
‘como Ideologia’ — segundo Terry Eagleton). (Parto do pressuposto de
entender a Ética como ‘persistência do Espírito’ que subordina a Estética
— beleza-verdade-bondade [Shaftesbury] —, ou seja, a Ética entendida como
compilação de preceitos (ou conselhos) para a ‘Procura do bem’
que condicionam a Estética (e cuja desobediência a esse código
moral determinava sanções divinas). Seguidamente,
referirei
o movimento pendular (a inflexão) ‘Da Ética à Estética’ para ‘Da Estética
à Ética’.)
[A conexão entre a Ética e a Estética sugere-me citar dois poemas
intitulados OBSCURA PERGUNTA e
DE UM SEM-ABRIGO A UM CRISTÃO. [Leitura pelas
diseuses
Maria
Azenha e a Maria José Camecelha],
a partir dos quais formularei alguns comentários, o que não deixa de ser
embaraçoso dado que os assino.]
Desde sempre, o accionamento da Ética ao modo de ler, acaba por ambicionar
identificar-se um ‘registo dóxico-ideológico e filosófico da Ética’
(Derrida), sem autonomia da Ética face à religião, registo de Sabedoria na
progressão do pensamento.
[Uma observação se impõe para maior clareza: a representação literária, se
entendida à letra, encerrada em figurações
retóricas, pode prestar-se a absorções de interpretações
precipitadas, a análises que caricaturalmente classificaria de autópsias
acessórias, motivadas pela filiação a correntes Críticas. E, nesse
percurso, a Ética confunde-se (funde-se) com a Estética que a veicula.]
Obscura Pergunta
Que mão desaparece e aparece por dentro de nós?
É mão ainda a que desce sobre os versos? Mão agónica?
Qual mão? A que se mortifica muda e confusa e nos consome?
Ou a que evola Deus?
[Que
mão desaparece e aparece por dentro de nós?]
Como definir essa obscura pergunta do ‘homem falível’ sobre o ‘temor
ético’ [Paul Ricour] sem nos centrarmos numa reflexão sobre a Ética,
enfocados na Ética Cristã?
Se trata de um depoimento confessional, do mais interior, que
coloca no início do poema a pergunta inquietante, exercício de
auto-consciência
[É
mão ainda a que desce sobre os versos? Mão agónica?]
O vínculo com a ortodoxia (como por exemplo a propagação de regras
religiosas que ordenam a severidade com o corpo) e o seu esconjuramento,
dá ênfase ao desassossego, à dúvida gerada pela desobediência a que o
verso alude.
[Qual
mão? A que se mortifica muda e confusa e nos consome?]
Mais do que uma postura agonista acerca da profissão de Fé, afirma-se um
pensar perseverante que não é imposição ou impedimento, antes interrogação
motivada pela ambição de ultrapassar, de obedecer ao quadro
emblematicamente canónico e avaliá-lo na perspectiva de atingir a
‘felicidade no seu todo’ [Henry Sidgwick]. O tom metafórico que ressoa no
poema, que é da poesia alegórica, confere a ‘mão’ a vez de dizer Ética. A
mão como metáfora da Ética (da Crença?) não é deliberação conclusiva de
uma submissão a um Código de conduta (porque interroga: —‘Qual mão?’), e,
consequentemente, alcança a Estética, aproxima a Ética da Estética,
versátil nas disposições em que se manifesta e a subscreve. Ou resulta num
processo em que Ética e Estética se envolvem na construção do pensamento?
[Ou
a que evola Deus?]
O discernimento entre ‘evocar’ e ‘evolar’ acaba por não ter no âmbito da
Gramática, no poema em análise, segundo julgo, uma
diferenciação perfeitamente atingida. Mas será de sublinhar a
ambivalência verbal de evolar, que significa volatizar, exalar, elevar-se
voando, o que presumivelmente, aproxima da presença do mesmo significado
de evocar.
Assumindo o domínio da arbitrariedade na interpretação (se se entender o
poema como enigma, de compreensibilidade inatingível), uma hipotética
sentença de opinião o acusaria de que
‘evola Deus’ e não de que se ‘evola para Deus’.
A desobediência do Homem a uma tradição doutrinária que permanece na
Teologia, mais concretamente na escatologia (que proclama o fim do mundo,
a utopia da vida eterna), não justifica hoje um processo inquisitório, a
perseguição e posterior sanção penal, não poucas vezes sentenciada com a
condenação à morte do herege. Na contemporaneidade, a criação artística
tem em si uma força que interdita todo o Dogma de prosseguir e alcançar um
horizonte Estético. Perante essa posição a Ética finge ser a Estética.
Será permitida toda a desmesura, sem refutação,
para se atingir o VALOR ESTÉTICO contra o INTERESSE ÉTICO baseado em
velhos códigos que muralham os humanos em sentimentos de culpa, discurso
penitenciar, que maniata a liberdade criadora
com juízos morais
aleatórios que determinam a inclinação para o justo e o que é diferenciado
e sentenciado como maledicente.
Neste contexto (de inibição do Pensar) se pretenderá impor um código penal
que continuará a apatia social. A Ética é entendida como parte do aparelho
repressivo, que disciplinará
comportamentos e compromissos.
O que acontece no que se escreve é o que se pretende que aconteça, que
venha a acontecer, aquilo que se relata como verdade ou ficção. O autor
responde por tudo o que ocorre na narração, as fantasmagorias, o
comportamento moral de excessos e defeitos, os compromissos assumidos nas
acções decorridas, o que se omite, as resistências glorificadas, a
desistência, enfim, o modo como se comportam as personagens, os
intervenientes das versões teatralizadas, romanceadas.
A Estética, na sua multiplicidade conceptual, impulsionou a discussão da
Ética. A irracionalidade perturbadora ou a racionalidade obediente, a mera
subjectividade contingente, o impulso lúdico, ou seja, as singularidades
optativas ou imperativas, num determinado momento histórico, condicionam a
Estética e confundem-na com a Ética. Não são estanques os conceitos e
muita da temática que se discute hoje à volta da Ética e da Estética,
uniformiza-as numa proclamação simultânea. (Foucault desenvolve esse
conceito como ’deslocamento teórico’ que faz com que o sujeito ético pense
a sua vida como obra — cuidado de si —, como ‘estética da
existência’, ascese.) A simbólica estética recorre a temas que se vão
aperfeiçoando, mas que continuam como dominantes no código do julgamento
crítico.
(De relembrar que o conceito de beleza, no seu percurso de formação, se
definiu como algo próximo de Deus, pertença de uma Ética sem impureza, é
igualmente um tema enfatizado na Estética, — se é belo é bom.)
Evidentemente, se a Ética proclamar normas, obrigações, interdições que se
traduzem em práticas severas de intimidação, e se retomar acções
repressivas que se concretizem em reduzir a cinzas bibliotecas, a
imposição da Censura e a perseguições a autores, a Ética desacredita-se.
Se identificada com servidões, é confrontada pela criação artística
(conciliada com o Mal, se nos lembrarmos de autores como Sade), na
constante transgressão que
incorpora a ruptura, a rebelião.
Punir o autor é vigiar a aclamação do seu pensamento, e a avaliação se
centra unicamente no que proclama, recusando a tribuna artística, a
liberdade de expressão. Se acreditássemos em tudo o que lemos nunca
haveria motivo (e incentivo) para o confronto de ideias.
Não se entenderá, do exposto, que se nega os princípios éticos
universalmente aceites. Contudo, a reprovação do erro culposo, na óptica
da Opinião Pública, deve exprimir-se no campo estético,
nunca na censura à realização artística.
Não se defende o despojar da Ética das normas imperativas de obrigações e
interdições consignadas na Lei, mas antes a necessidade de incorporar uma
consciência de não expiação limitadora da força das especulações do acto
artístico.
Da
Estética à Ética
Encontramos no segundo poema seleccionado,
De Um Sem Abrigo a Um Cristão,
motivo para
percorrer intuitivamente a hipótese de uma inflexão ‘Da Ética à Estética’
para ‘Da Estética à Ética’. (Espero não cair na ‘falácia de uma
interpretação única’ [Paul de Man].)
DE UM SEM-ABRIGO A UM CRISTÃO
O gesto da Piedade devolve-te Deus? [1]
Deixas-me
na Culpa, não me queres no meio de Ti.[2]
(Abusa
de mim, que adoeço enrolado 'ao meu alcance'. [3]
Sou
Lúcifer ou a Cruz?, pregas a iniquidade.)[4]
Apaziguado
por jogares ossos a Cérbero que me consola,[5]
E
cobertores quando regressas para 'o puro mel dos favos'? [6]
Que
fazes por mim? Afastas o meu
corpo descalço. Por que me julgas?[7]
Justifica
a Cólera.[8]
O
Mal é soberano e é a chave do Divino. [9]
É
esta a Ordem do Tempo?[10]
Não valorizando a ‘pureza da forma’ da ‘obra de arte’, mas ‘o conteúdo
tornado forma’ [Marcuse], o modo de abordar o poema seria, zelosamente,
começar pela ordenação das peças do puzzle, que se apresentam ‘no
seu poder transcendental da linguagem’ [Paul de Man], em enumeração
irracional, algo confusa, bem ilustrativa do jogo e do jugo cruzados que
se mantém inequívoco.
O que aqui se pretende com o envio a De Um Sem-abrigo a um Cristão
é, de certo modo, a imposição
da legenda a ’Da Ética à Estética’, propondo um monólogo que se torna
‘forma’ pelo ‘despedaçamento do texto’ [Tadeusz Kantor], pelo
‘esboroamento’ numa prática de desconexões [Sarrazac].
De Um Sem-abrigo a um Cristão,
na sua descontinuidade, sugere o espelhar do diálogo absurdo entre a
consciência do dever do crente (postura correcta) e a inacção (atitude
incorrecta).
A circunstância em que se contextualiza o poema é de uma situação social
de exclusão, que revela contradições entre a postura assistencialista
(participada com responsabilidade social na solução de pobreza extrema) e
a acção social estatal limitada (pela ideologia dita neo-liberal).
A Ética, como ideologia — É esta a Ordem do Tempo?’ [10] —,
neste poema, deduzo eu, tomada por empréstimo à inquietude dolorosa da
obediência, se confronta com regras primordiais no apelo a praticar-o-bem
para merecer a recompensa divina —
‘O gesto da Piedade devolve-te Deus?’[1]. E não introduzirá
na sua expressão regressiva, como consagração, o apelo à remissão do
pecado no Juízo Final? ‘Deixas-me na Culpa, não me queres no meio de
Ti.’ [2]
A querela na ‘alma’ a contrabandear entre a instrutiva Erecção Canónica da
comunidade monoteísta e a aceitação de castigo pela discriminação ‘do
próximo’, manifestando o remorso pelo mau desempenho cristão, a negação do
pecado (iniquidade), a visão da presença de Lúcifer, da Cruz (‘Cruz’ como
metáfora de Deus?), inverte a prioridade da relação com Deus
‘imaginativa’:
(Abusa de mim, que adoeço enrolado 'ao meu alcance'. [3]
Sou Lúcifer ou a Cruz?, pregas a iniquidade.)[4]
Monólogo que revela uma percepção, visão interior que, como lembra
Ratzinger, é referida na Antropologia-Teológica como uma das formas de
visão, a par da visão pelos sentidos e a visão espiritual (imaginativa).
Curiosamente, na configuração intertextual bíblica a que se recorre,
expressa nos fragmentos incrustados no texto, concretamente: ‘o puro mel
dos favos’ e ‘ao meu alcance’ (formas de ‘visão espiritual’), a Ética soa
em sintonia com o que a Estética propõe apurar, aperfeiçoar, na medida em
que convoca o pré-poético sem anular o que o poema inscreve: a contradição
do homem soberano que emerge com consciência histórica e que colide com a
impaciência humana acerca do Além.
Apaziguado por jogares ossos a Cérbero que me consola, [5]
E
cobertores quando regressas para 'o puro mel dos favos'? [6]
Na verdade, submetendo-se ao juízo do gosto (a que a Estética anseia) e
aos princípios da Ética, em ‘versículos’ que provocam e afirmam a dúvida
sobre as convicções e transigem no fazer
(versejador) da diatribe — Sou Lúcifer ou a Cruz?, pregas a
iniquidade’[4] O verso através do seu registo afirmativo e
interrogativo, propicia a perplexidade que é a chave do descerramento,
expressa a incerteza em declarar como se alcançam os fins, e perpetua
a dúvida.
O Mal é
soberano e é a chave do Divino. [9]
Prevalece indefinido o poder escolher fazer o
Bem ou o afastar-se do caminho do Bem que, no poema, consiste na entrega
ao próximo do auxílio entusiástico e recusa a indiferença, o abandono-à
sua sorte do irmão-em-Cristo,
pobre, despojado.
A voz do verso grita a blasfémia perante a indiferença manifestada, a
recusa da solidariedade e a imposição da submissão (num tom angustiado que
parece ecoar os versículos de Jeremias).Versos que
assimilam a expressão cifrada da degenerescência
contemporânea, do Mundo perdido, desventurado, em que as respostas
se resumem a um ‘Vigiar e Punir’ [Foucault].
Que fazes por mim? Afastas o
meu corpo descalço. Por que me julgas? [7]
Justifica a
Cólera.[8]
*
[Da Ética à Estética e Da Estética à Ética — Pressupõe ’o interesse ético
no valor estético’ [Henry Sidgwick])]
Esperançoso é o predomínio pendular desta constelação entre a paixão pelo
valor estético que recusa os termos de estilização como cosmética, e o
apelo à declaração do interesse ético em que a razão prevaleça.
É nesse sentido que o pensamento contemporâneo reclama a percepção de
semelhanças e de dissemelhança entre a Ética e a Estética.
José Emílio-Nelson
|