Padre António Vieira
HISTÓRIA DO FUTURO, I
CAPITULO IV

Utilidades da História do Futuro

§ I

Se o fim desta escritura fora só a satisfação da curiosidade humana, e o gosto ou lisonja daquele apetite com que a impaciência do nosso desejo se adianta em querer saber as cousas futuras; e se as esperanças que temos prometido foram só flores sem outro fruto mais que o alvoroço e alegria com que as felicidades grandes e próprias se costumam esperar, certamente eu suspendera logo a pena e a lançara da mão, tendo este meu trabalho por inútil, impertinente e ocioso, e por indigno não só de o comunicar ao Mundo, mas de gastar nele o tempo e o cuidado.

Mas se a história das cousas passadas (a que os sábios chamaram mestra da vida) tem esta e tantas. outras utilidades necessárias ao governo e bem comum do gênero humano e ao particular de todos os homens, e se como tal empregaram nela sua indústria tantos sujeitos em ciência, engenho e juízo eminentes, como foram os que em todos os tempos imortalizaram a memória deles com seus escritos; porque não será igualmente útil e proveitosa, e ainda com vantagem, esta nossa História do Futuro, quanto é mais poderosa e eficaz para mover os ânimos dos. homens a esperança das cousas próprias, que a memória das alheias?

Se em todos os Livros Sagrados contarmos os escritores de cousas passadas (como foram, na Lei da Graça, os quatro Evangelistas, e na Escrita, Moisés, Josué, Samuel, Esdras e alguns outros, cujos nomes ;e não sabem com tão averiguada certeza), acharemos que são em muito maior número os que escreveram das futuras: diferença que de nenhum modo fizera Deus, que é o verdadeiro Autor de todas as .Escrituras (sendo todas elas como diz S. Paulo escritas para nossa doutrina, se não fora igual e ainda maior a utilidade que podemos e devemos tirar do conhecimento das cousas futuras, que da noticiaria das passadas. E verdadeiramente que se os bens da ciência se colhem e conhecem melhor pelos males da ignorância, achará facilmente quem discorrer pelos sucessos do Mundo, desde seu princípio até hoje, que foram muito menos os danos em que caíam os homens por lhes faltar a notícia do passado, que aqueles que cegamente se precipitaram pela ignorância do futuro.

Em conseqüência desta verdade e em consideração das cousas que tenho disposto escrever, digo, leitor cristão, que todos aqueles fins que sabemos teve a Providência Divina em diversos tempos, lugares e nações para lhes revelar antecedentemente o sucesso das cousas que estavam por vir, concorrem com particular influxo nesta nossa História e se acham juntos nela. Esta é não só a principal razão, nas a única e total, por que nos sujeitamos ao trabalho de tão molesto gênero de escritura, esperando que será grato e aceito a Deus, a quem só pretende nos servir; e entendendo que foram vontade, inspiração e ainda força suave da mesma Providência os impulsos que a isto (não sem alguma violência) nos levaram, para que estes secretos de seu oculto juízo e conselho se descobrissem e publicassem ao Mundo e em todo ele produzissem proporcionadamente os efeitos de mudança, melhoria e reformação a que são encaminhados e dirigidos. A mesma Majestade divina, humildemente prostrados diante de seu infinito acatamento, pedimos com todo o afeto de coração, agora que entramos na maior importância desta matéria, se sirva de nos comunicar aquela luz, graça e espírito que para negócio tão árduo nos é necessário, conhecendo e confessando que sem assistência deste soberano auxílio, nem nós saberemos explicar a outros o pouco que por mercê do Céu temos alcançado e conhecido, nem menos poderemos descobrir e alcançar ao diante o muito que nos resta por conhecer.

§ II

Primeira utilidade.

O primeiro motivo e mui principal por que Deus costuma revelar as cousas futuras (ou sejam benefícios ou castigos) muito tempo antes de sucederem, é para que conheçam clara e firmemente os homens, que todas vêm dispensadas por sua mão. Arma-se assim a sabedoria eterna contra a natureza humana, sempre soberba, rebelde e ingrata, ou porque se não levante a maiores com os benefícios divinos, e se beije as mãos a si mesma, como dizia Job, ou porque não atribua a cousas naturais (e muito menos ao caso) os efeitos que vêm sentenciados como castigo por sua justiça, ou ordenados para mais altos e ocultos fins por sua providência.

Foram mostradas a Faraó em sonhos .as sete espigas gradas e as sete falidas, as sete vacas fracas e as sete robustas, e logo ordenou a Providência divina que estivesse em Egito um José (posto que vendido e desterrado), que lhe declarasse o mistério dos sete anos da fartura e sete de fome, para que conhecesse o bárbaro que Deus, e não o seu adorado Nilo, era o autor da abundância e da esterilidade, e que a ele havia de agradecer no benefício dos sete anos o remédio dos catorze. Como na terra do Egito não chove jamais e se regam e fertilizam os campos com as inundações do rio Nilo, disse discretamente Plínio que só os Egípcios não olhavam para o céu, porque não esperavam de lá o sustento, como as outras nações.

Oh quantos cristãos há egípcios, que nem esperando, nem temendo, levantam os olhos ao Céu, e em lugar de reverenciarem em ,todos os sucessos a primeira causa, só adoram as segundas! Por isso mostra Deus a Faraó, tantos anos antes, quais hão-de ser os da fome e quais os da fartura; para que conheça a ignorante sabedoria do Egito que os meios da conservação ou ruína dos reinos, a mão onipotente de Deus é a que os distribui, quando são, pois só ele os pode determinar antes que sejam.

Quis a mesma Providência, como acima dizíamos tirar o império a Baltasar e dá-lo a Dario; mas apareceu primeiro a sentença escrita no paço de Babilônia, e houve logo um Daniel (também cativo e desterrado), que interpretasse ao rei os mistérios dela, para que Baltasar, que perdia o reino, conhecesse que o perdia, porque Deus lho tirava; e para que Dario, que o havia de receber, entendesse que o recebia, porque Deus lho dava. Deus é o que dá e tira os reinos e os impérios, quando e a quem é servido. E não bastam, se Deus dispõe outra cousa, nem as armas de Dario para os adquirir, nem o direito e herança de Baltasar para os conservar; por isso quer a mesma Providência Divina que as sentenças estejam escritas antes da execução, e que haja quem as interprete antes do sucesso.

Os futuros portentosos do Mundo e Portugal, de que há-de tratar a nossa História, muitos anos há que estão sonhados como os de Faraó e escritos como os de Baltasar; mas não houve até agora nem José que interpretasse os sonhos, nem Daniel que construísse as escrituras; e isto é o que eu começo a fazer (com a graça daquele Senhor que sempre se serve de instrumentos pequenos em cousas grandes), para que conheça o Mundo e Portugal, com os olhos sempre no Céu e em Deus, que tudo são efeitos de seu poder e conselhos da sua providência; e para que não haja ignorância tão cega nem ambição tão presumida, que tire a Deus o que é de Deus, por dar a César o que não é de César, atribuindo à fortuna ou indústria humana o que se deve só à disposição divina.

Estilo foi este que sempre Deus usou com Portugal, receoso porventura de que uma nação tão amiga da honra e da glória lhe quisesse roubar a sua. Quem considerar o Reino de Portugal no tempo passado, no presente e no futuro, no passado o verá vencido, no presente ressuscitado e no futuro glorioso; e em todas estas três diferenças de tempos e estilos lhe revelou e mandou primeiro interpretar o. favores e as mercês tão notáveis com que o determinava enobrecer: na primeira, fazendo-o, na segunda restituindo-o, na terceira, sublimando-o.

Antes do nascimento de Portugal, apareceu o mesmo Cristo a El-Rei (que ainda o não era) D. Afonso Henriques, e lhe revelou como era servido de o fazei rei, e a Portugal reino; a vitória que lhe havia de dar em batalha tão duvidosa e as armas de tanta glória com que o queria singularizar entre todos os reinos do Mundo. E o embaixador e intérprete deste e de outros futuros, que depois se viram cumpridos, foi aquele velho, desconhecido e retirado do Mundo o ermitão do campo de Ourique; para que conhecesse e não pudesse negar Portugal que devia a Deus a vitória e a coroa, e que era todo seu desde seu nascimento. Antes da sua ressurreição, que todos vimos também, foi revelado o sucesso dela com todas suas circunstancias, não havendo quem ignorasse ou quem não tivesse lido que no ano de quarenta se havia de levantar em Portugal um rei novo e que se havia de chamar João. E o intérprete deste futuro que parecia tão impossível, e de tantos outros que logo se cumpriram e vão cumprindo, foi a nossa experiência, para que conhecesse outra vez Portugal que a Deus e não a outrem devia a restituição da coroa que havia sessenta anos lhe caíra da cabeça ou lhe fora arrancada dela.

Antes das glórias de Portugal, que é o tempo futuro, e muitos centos e ainda milhares de anos antes (como depois mostraremos), também está prometido este terceiro e mais feliz estado do nosso Reino, e prometidos juntamente os meios e instrumentos prodigiosos por onde há-de subir e ser levantado ao cume mais alto e sublime de toda a felicidade humana; e o intérprete deste último e glorioso estado de Portugal já tenho dito quem é, e quão indigno de o ser. e por isso mui proporcionado (segundo o estilo de Deus) para tão grande e dificultosa empresa; para que até por esta circunstancia conheçam os Portugueses que a mesma mão onipotente que há vinte e quatro anos conserva e defende tão constante e vitoriosamente o Reino de Portugal, é a que há-de levantar e sublimar ao estado felicíssimo e glorioso que lhe está prometido.

Considerem agora os Portugueses, e leiam tudo o que daqui por diante formos escrevendo com este pressuposto e importantíssima advertência: que, se alguma cousa lhes poderia retardar o cumprimento destas promessas, seria só o esquecimento ou desconhecimento do soberano Autor delas, quando por nossa desgraça fôssemos tão injuriosamente ingratos a Deus, que ou referíssemos os benefícios passados, ou esperássemos os futuros de outra mão que a sua.

Prometeu Deus de livrar os filhos de Israel do cativeiro do Egito, como tinha jurado aos seus maiores, e de os levar e meter de posse da terra da Promissão; e posto que todas viram o cumprimento da primeira promessa, conseguindo milagrosamente a liberdade, e sacudiram sem sangue nem golpe de espada a sujeição de tão poderoso domínio, sendo contudo mais de seiscentos mil homens os que triunfaram de Faraó e passaram da outra parte do mar Vermelho, de todos eles não entraram na Terra da Promissão nem chegaram a lograr a felicidade e descanso da segunda promessa mais que Josué e Calef, dois daqueles aventureiros que, escolhidos pelos Doze Tribos, foram diante a explorar a terra. Raro exemplo de severidade na misericórdia de Deus , mas bem merecido castigo; porque, se buscarmos no Texto Sagrado as causas deste desvio e dilação (a qual durou quarenta anos inteiros, sendo a distancia do caminho breve, e que se podia vencer em poucos dias) acharemos que foram ,três. Agora nos servem as duas, depois diremos a terceira.

A primeira causa foi atribuírem a liberdade do cativeiro a Moisés; assim o disseram no cap. XXXII. Moysi enim huic viro, qui nos eduxit de terra Aegypti, ignoramus quid acciderit. A segunda, e ainda mais ignorante (sobre ímpia e blasfema), foi atribuírem a mesma liberdade ao ídolo que de seu ouro tinham fundido no deserto. Assim o disseram também no mesmo capítulo e o apregoaram impiamente a altas vozes: Hi sunt dii tui, Israel, qui te eduxerunt de terra AEgypti.

Basta, povo descortês, ingrato e blasfemo! Que Moisés e o vosso ídolo foram os que vos livraram do cativeiro do Egito?! Por certo que o não disse assim Deus ao mesmo Moisés, quando lhe deu o ofício e a vara, e o fez com ,tanta repugnância sua instrumento de seus poderes: Vidi afflictionem populi mei in AEgypto et clamorem ejus audivi; et sciens dolorem ejus, descendi ut liberem eum de manibus AEgyptorum, et deducam de terra illa in terram bonam et spatiosam, in terram quae fluit lacte et melle: «Vi — diz Deus — a aflição do meu povo, e ouvi os seus clamores; e porque sei com quão justa razão se queixam, desci em pessoa a livrá-lo das mãos dos Egípcios e tirá-lo daquela terra para outra, que lhe hei-de dar, boa, espaçosa, abundante e cheia de todos os regalos e delícias». De maneira que quem tirou os filhos de Israel do Egito foi Deus, e quem fez os portentos e maravilhas foi Deus, e quem abriu o Mar Vermelho e afogou nele Faraó e seus exércitos foi Deus; e os que atribuem as obras de Deus e os benefícios (de que só a Ele se devem as graças) a Moisés e ao ídolo não merecem ter vida nem olhos para chegar a ver a Terra de Promissão; sendo muito justo e muito justificado castigo que morram e acabem todos antes de chegar o prazo das felicidades, e que, pois tão ingrata e impiamente interpretaram o benefício da primeira promessa, sejam privados de gozar a segunda.

Eu não nego que em bom sentido se podia chamar Moisés libertador do cativeiro, como também Deus pelo honrar lhe dava esse nome; mas nos homens que deviam dar a Deus toda a glória (pois toda era sua), referirem-se a Moisés, era descortesia; atribuírem-na ao ídolo, era blasfêmia, e não a darem a Deus toda, era ingratidão suma.

Já Deus, Portugueses, nos livrou do cativeiro, já por mercê de Deus triunfamos de Faraó e do poder de seus exércitos; já os vimos, não uma, mas muitas vezes, afogados no Mar Vermelho de seu próprio sangue. Imos caminhando pelo deserto para a Terra da Promissão, e pode ser que estejamos já muito perto dela, e do último cumprimento das prometidas felicidades. Se há algum tão invejoso dos bens da Pátria e tão inimigo de si mesmo, que queira retardar o curso de tão próspera e feliz jornada e acabar infelizmente, ainda antes de ver o fim desejado dela, negue a Deus o que é de Deus e atribua à liberdade as vitórias e o cumprimento das primeiras promessas que temos visto, ou a Moisés ou ao ídolo. Quem refere a glória dos bons sucessos ao seu valor, à sua ciência militar, ao seu braço, ao seu talento, dá a glória de Deus ao ídolo; por isso se vos escrevem aqui essa mesma liberdade, essas mesmas vitórias e esses mesmos sucessos, assim os que já se viram, como os que restam para se ver, tantos anos antes revelados por Deus. Para que conheça por nossa confissão todo o Mundo que são misericórdias suas e não obras do nosso poder; e para que nós, como efeitos da providência, da bondade e omnipotência divina, a Deus só as refiramos todas, e a Deus só louvemos e demos as graças.

Os inimigos que mais temo a Portugal são soberba e ingratidão, vícios tão naturais da próspera fortuna, que, como filhos da víbora, juntamente nascem dela e a corrompem. A humildade e agradecimento, a desconfiança de nós, a confiança em Deus e o zelo e desejo puríssimo de sua glória, dando-lha em tudo e por tudo, sempre são os meios seguros que nos hão-de sustentar, levar e meter de posse daquelas segundas promessas. E este conhecimento tão grato a Deus, que aprendemos nas noticias de seus futuros, é o primeiro fruto e utilidade que da lição desta nossa História se pode tirar, tão importantemente para a vida como para a vista.

 

BREVE ADVERTÊNCIA AOS INCRÉDULOS

Mas antes que passemos às outras utilidades, que ficarão para os capítulos seguintes, justo será que fechemos este com a terceira causa do castigo que ponderávamos, a qual refere o Texto Sagrado no cap. XIV dos Números, e pode ser de grande exemplo para outra casta de gente, que são os que a Escritura chama filhos da desconfiança.

Chegados os doze exploradores da Terra da Promissão, concordaram todos na largueza, bondade e fertilidade da terra; mas exceto Josué e Calef, que - facilitaram a conquista e animavam o povo a ela, os outros, conformemente, instavam que era impossível, assim pela fortaleza e sitio das cidades, como pela valentia, forças e corpulências dos homens, que, comparados com os Hebreus (diziam eles) pareciam gigantes. Enfim, prevaleceu o número contra a razão) (como as mais vezes sucede). Deliberou o povo eleger capitão e voltar-se com ele ao cativeiro do Egito, não bastando a experiência de tantas vitórias passadas e de tantos sucessos e prodígios inauditos, e sobre tudo as promessas divinas tão repetidamente inculcadas, de que Deus os havia de meter de posse daquela terra, para crerem e confiarem que assim havia de ser.

Esta tão covarde incredulidade foi a última ou a última sem-razão com que acabou de se apurar a paciência divina. E resoluto Deus a não sofrer mais tal gente, nem os perdoar ou dissimular como até ali tinha feito, resolveu que fosse executada neles a sentença de sua própria incredulidade; e pois criam que Deus os não havia de meter de posse da Terra da Promissão, que nenhum deles entrasse nela nem a visse, e que todos morressem primeiro e fossem sepultados naquele deserto. Assim o disse e assim se executou.

As palavras da queixa de Deus e da sentença, foram estas: Usque quo detrahet mibi populus iste? Quosque non credent mihi in omnibus signis, qae feci coram eis? [...] Vivo ego, ait Dominus, sicut locuti estis, audiente me, sic faciam vobis. In solitudine hac jacebunt cadavera vestra; [...] non intrabitis terram, super quam levavi manum meam, ut habitare vos facerem...

Leiam e pesem bem estas palavras de Deus os incrédulos e desanimados (vícios ambos, não sei se de pouco, se de mau coração) e vejam o perigo em que os pode meter ou tem metido a sua incredulidade:

Sicut locuti estis, sic faciam vobis. Os que pela experiência do que têm visto crêem o que está prometido, vê-lo-ão, porque são dignos de o verem; os que não crêem, ou não querem crer, a sua mesma incredulidade será a sua sentenc: já que o não creram, não o verão. Diz Santo Agostinho (cujas excelentes palavras adiante citaremos) que, depois de cumprida uma parte das promessas, não crer que se hão-de cumprir as outras, é não só pertinácia de incredulidade racional, senão crime de ingratidão grande contra o divino Autor dos mesmos benefícios; e a estes incrédulos e ingratos castiga justissimamente sua Providência, com que não cheguem a ver nem gozar o que não querem crer de sua bondade:

Quo usque non credent mihi in omnibus signis, quae feci coram eis?

Antes da experiência das primeiras maravilhas, alguma desculpa parece que podia ter a incredulidade na fraqueza do receio e desconfiança humana; mas depois de cumpridas e vistas com os olhos tantas cousas, tão grandes, tão maravilhosas e tão raras, não crer ainda as que estão por vir, é rebeldia de ingratidão e dureza da incredulidade, merecedoras ambas de que Deus as castigue com se conformar com elas: Sicut locuti estis, sic faciam vobis.

Quem quiser saber (segundo o estilo ordinário da justiça e providência divina) se há-de chegar a ver as felicidades que debaixo de sua palavra aqui lhe prometemos, examine o seu coração e consulte a sua fé; do nosso próprio coração nos conta Deus a sentença e de nossas próprias palavras a forma: Ex ore tuo te judico. Aos que crêem, como ao Centurião, diz Cristo: Sicut credidisti, fiat tibi. E aos que não creem como os Israelitas do deserto, diz Deus: Sicut locuti estis. Quem crê que se hão-de cumprir aquelas ,tão felizes promessas, para ele será o vê-las e gozá-las: Sicut creditisti, fiat tibi. E quem não crê que se hão-de cumprir, será também para ele não gozá-las, nem vê-las. É lei da liberalidade de Deus pagar a fé com a vista, por isso havemos de ver no Céu os mistérios que vemos na Terra. E este estilo que Deus costuma guardar na glória da outra vida, guarda também ordinàriamente nas felicidades desta, quando as tem prometido: os que as crêem, terão vida para as verem; os que as não crerem, morrerão, para que as não vejam. Assim o sentenciou o mesmo Deus outra vez em semelhante caso por boca do profeta Habacuc: Ecce qui incredulus est, non erit recta anima ejus in semetipso, justus autem in fide sua vivet. <O incrédulo - diz Deus - nem terá a vida segura; e ao que crê, a sua mesma fé lhe conservará a vida > Assim sucedeu, porque na guerra que Nabucodonosor fez a Jerusalém, os que creram aos profetas com el-rei Iconias viveram; e os que não quiseram crer, com el-rei Sedecias pereceram. Quem não crê, desmerece a vista; e para que não chegue a ver, tira-lhe Deus a vida. Olhem por si os incrédulos, e se não crêem que havemos de ver, creiam que não hão-de viver: Si non credideritis, non permanebitis — diz o profeta Isaías.