GLEDSON SOUSA
Entrevista com a Medusa

Recordo-me bem do odor, singular demais para se confundir com qualquer outro, misto de ovo podre com terebintina, enxofre com lama de sarjeta. Uma ou outra vez me dava náuseas profundas, as quais tive de controlar para garantir o bom andamento da entrevista. Não posso revelar por quais fontes cheguei até ela, nem posso revelar o caminho pelo qual consegui chegar às profundezas do Hades. A entrevista se deu numa madrugada de início de novembro. Transcrevo aquilo que considero mais importante para a consideração de filósofos e escritores. A mais revelar, que a entrevista se deu num clima de absoluta cordialidade e respeito. Certo que em momento algum pude abrir os olhos, em respeito aos preceitos da lenda, que a Medusa, em momento algum, fez questão de desmentir. Acidentes de percurso - náuseas, dois desmaios e uma intensa, intensa vontade de voltar a ver o sol. Sigamos.

Entrevistador- Nome ?

Medusa - Medusa, só Medusa.

Entrev.- São muitas as perguntas que tenho a fazer, afinal, não é todo dia que temos a oportunidade de entrevistar, cara a cara, um ser mitológico , ainda mais alguém como a sra. Posso chamá-la de senhora, não posso ?

Medusa - Sim. Acho que alguém com a minha idade só pode ser chamada de senhora. Por outro lado, quanto mais denso o tempo se torna mais forte eu fico. O envelhecimento e a decrepitude dos homens é a minha juventude.

Entrev.- Sei que é difícil, vivemos em universos tão diferentes... Mas a senhora não imagina o que isso pode representar... O fato palpável, concreto, de estar aqui lhe entrevistando, isso per si já é algo revolucionário. Imagine o que dirão amanhã, ou depois de amanhã, quando a entrevista sair no jornal , já posso até ver - Entrevista com a Medusa aumenta a crise no Oriente Médio - Papa diz que Medusa não existe - Cia . Diz que entrevista foi armação da imprensa -... '

Medusa- Vocês homens são tão vagos... Quem garante que eu existo ?

Entrev.- Mas eu posso sentir a presença, da sra., posso apalpá-la, tocá-la...

Medusa - Sim, mas não pode me olhar... a não ser que você queira. Você quer?

Entrev.- Não !, Quer dizer, não posso, a senhora sabe... Mas se a senhora existe, então muito mais pode existir... Zeus, Hera, Hércules...

Medusa -Do que vocês precisam para acreditar ? Posso narrar tantas coisas, falar de tantos acontecimentos, mas de que adiantaria? Não sei porque aceitei essa ridícula entrevista...

Entrev- A sra. não teve escolha...

Medusa- Ora seu verme insolente... Posso arrancar seus olhos, posso transformá-lo no nada que você é.

Entrev.–...

Por um momento me mantive quieto. A Medusa urrava e seu hálito quente e pestilencial chegava até minhas narinas. Achei que morreria ali mesmo, já embaixo da terra, num sepulcro antecipado. Aos poucos ela foi se recompondo, se acalmando. Esperei que ela retomasse a entrevista.

Medusa - Desculpe-me. Se aceitei esse jogo ridículo, devo ir até o fim.

Entrev.- Fale um pouco da senhora.

Medusa- Sou tão antiga quanto os homens, que eu me lembre. Minha memória confunde-se com as muitas memórias dos homens. Nem sei sempre se sou eu que lembro, ou se sou apenas a recordação de alguns homens...

1o. Dia

Medusa - ... Que momento posso descrever como importante, crucial para o meu destino ? Nada talvez me tenha sido mais caro que a perda da beleza. Não que vaidade me estremeça o peito ou tire meu sono. Tenho outros motivos, motivos tão dentro de mim que mil bocas não poderiam falar , dizer o que tão dentro se guarda na garganta. Meus cabelos rasgam palavras nas trevas, porque agora sou só trevas. Fui soterrada como uma velha mina, esquecida como os amores passados. Fórcis, meu pai, me deu a beleza. Sim,não preciso de superlativos, eu era bela. Aliás, eu era a bela. Porque meus cabelos ruivos, quando o vento do mar soprava em mim, flutuavam quais borboletas, muitas borboletas partindo de um campo de trigo. Eu não queria mais nada. A beleza em si já era a satisfação, era o espelho de minhas origens. Sou filha das águas, sou filha do mar, nós criaturas marinhas, somos fascinadas pelo belo. Minha condição atua é episódica. Sou uma criatura do mar e um dia me libertarei...

Entrev.- Me desculpe por perguntar detalhes, mas, como a senhora ficou assim?

Medusa- O que você tem contra cabelos de cobra ?

Entrev.- Nada, eu não quis ofender, eu só quis...

Medusa- Sei, sei, dados concretos para seu mundo concreto... O que você quer? levar uma cobra de amostra ? O passado que você me pede é uma fenda, uma ferida na memória. Porque minha primeira morte - e perder minha beleza foi minha primeira morte - foi também o início da morte do homem. Fui condenado por Palas, que me invejava a beleza. O que eu poderia esperar de uma deusa sem mãe ? De uma deusa ciumenta e insegura da sua razão ? Minha beleza era a água onde os homens se deleitavam, o sorriso por onde eles sorriam, a alegria por onde transbordavam. Eu era o espelho de sua própria inocência. Foi Palas que com sua inveja me condenou e condenou os homens a perderem sua inocência... Minhas serpentes são vossas...

2o. Dia

Ausentei-me por uns dias. Não era fácil prosseguir sob aquele ar tóxico, com rios que lembravam, e muito, nossos Tietês e Pinheiros. Depois da tensão do primeiro dia, preparava-me mais para ouvir que para falar. Medusa tem um temperamento forte, dominante. Queria falar. Minha posição, nada cômoda, me obrigava a aceitar seu quase monólogo. Mas consegui fazer uma série de perguntas à socapa. Continuemos.

Entrev- Conheceu os outros, Zeus, Apolo, os do Olimpo e os heróis ?

Medusa - Alguém já disse “ninguém vai ao pai senão por mim” e esse alguém era um filho., e então acho que, conhecendo Atenas conheci Zeus. Só não sei se a perda da inocência e o ganho da razão foram loucura de Atenas ou desígnio de Zeus. Quanto aos que você chama de heróis, só conheci Perseu. Pensei que ele me libertaria, mas ele só me colocou na eternidade. Ele era puro, ingênuo como as crianças gregas, mas por demais grego. Meu libertador tem de ser um cidadão do mundo.

Entrev.- Qual a cor de seus olhos ?

Medusa- Abra os olhos e veja. Amarelo morto. Mas no fundo são azuis.

Entrev.- Cor da pele ?

Medusa- Cinza esverdeado. Antes era branco neve.

Entrev.- Altura ?

Medusa- 2,75m.

Entrev.- Comida predileta ?

Medusa- Cinzas.

Entrev.- Lugar predileto ?

Medusa- A margem do Letes.

3o. Dia

Entrev.- Medusa, quanto à lenda de que você petrifica a quem olha para você, isso é verdade ?

Medusa - O que posso lhe responder ? Olhe e verás.

Entrev.- Mas se eu olhar e for verdade, não poderei dar meu testemunho.

Medusa- Sim, é verdade.

Entrev.-Porque ?

Medusa- A bem da verdade, por ódio, ódio profundo a tudo o que me reflete. Cada vez que me vejo na menina dos olhos dos outros, os transformo em pedra para que não me reflitam mais. Aqueles que vêm de olhos fechados, eu os respeito, porque me temendo respeitam minha dor. No dia em que o homem recuperar sua inocência, não só meu sangue, mas o sangue da terra inteira se transformará em milhares , em bilhares de Pégasus, eu evaporarei feito o gênio da garrafa e os homens ganharão asas de anjo. Mas o caminho para o homem é tortuoso... se meu corpo se recobre de escamas e odores nauseabundos, ele por sua vez se recobre de medo e incerteza e não sabe para onde caminhar. Talvez se matarem Atenas.. Não, creio que não. Ele terá de achar outro caminho.

Entrev.- Mas pode o homem matar um deus ?

Medusa- Enquanto nós crescemos e engordamos com vossa miséria, os deuses morrem se são esquecidos. Partem para o xibalbá mais distante, cantam como cisnes e desaparecem. É a sina dos deuses. Outros são sacrificados.

Entrev.- Do que mais tens saudades ?

Medusa- Do sol do mediterrâneo. Do amor dos homens. Do sexo com os deuses.

3o. Dia

Já me perguntava qual seria o desfecho. Deveria ter previsto que, entrevistando alguém como a Medusa, o final não poderia ser comum, trivial. Porque desde o início, imerso em outras dimensões possíveis, numa investigação que chamariam de paranormal, percebi que havia uma nota irremediável de tristeza, um sentimento incompleto, por que a certa altura do caminho ele fora abortado, a paisagem fora alterada bruscamente, e a Medusa era algo como um bonsai invertido, em que a planta não cresce, mas não só não cresce, mas fica a envelhecer com ares de adolescente. A Medusa era um inconsciente da terra, talvez de mim. Sua tristeza talvez tivesse um fim, como as flores dos brotos das florestas incendiadas.

Entrev.- Tem alguma esperança ?

Medusa- Esperança ? Esperança é um sentimento bem humano e minha humanidade, a perdi há muito tempo. O tempo, o tempo desce sobre mim com gotas d'água tão pesadas quanto centenas de Olimpos sobre minha cabeça. Se pudesse, acabaria com o tempo. Como sei que o tempo é eterno, se pudesse, acabaria comigo. O tempo é feito de rochas, vermes e prisões. As lembranças aqui são areias aprisionadas numa ampola. Esperança ? Nenhuma esperança.

Entrev.- ...

4o. Dia

Entrev.-...

Medusa- ... o dia escureceu de repente sobre mim... vi minha pele mudar de cor, escurecer-se num verde cadáver, e meus cabelos se tornarem bífidos . A noite chegava com o esplendor de mil trevas...

5o.Dia

Era o fim. Levei uma adaga, afiada durante noites e noites. Era seu desejo. Ia entregar-lhe a adaga, mas ela me pediu que a matasse. Tremi. Não podia abrir os olhos, não sabia como achar algum ponto vital, como lhe satisfazer o desejo. Senti suas garras guiarem minha mão, senti sua pele escamosa, senti seu corpo duro como uma couraça. Mas no ponto do coração havia um pequeno intervalo entre escamas, onde a lâmina da adaga penetrou com determinação. As serpentes silvaram, mas da boca da Medusa não ouvi nada, senti somente os estertores do corpo, até o silêncio final.

Abri os olhos: No chão da caverna, uma mulher de beleza e idade indefinível jazia morta.

O sangue ainda pingava de minha mão.

 
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