Francisco José Craveiro de Carvalho

Três cartas por enviar de Neil Curry
Tradução
de Francisco José Craveiro de Carvalho

Neil Curry nasceu em Newcastle upon Tyne e vive hoje em Ulverston, no Lake District, Inglaterra. Estudou Inglês na Universidade de Bristol, tendo ensinado na universidade canadiana de Guelph. Posteriormente, foi professor em escolas secundárias inglesas.

De entre os seus livros, destaque para Other rooms, new and selected poems, Enitharmon Press, 2007, e o recente Some letters never sent, 2014, na mesma editora.

Francisco José Craveiro de Carvalho publicou, em 2008, O leitor de The Guardian, uma pequena antologia de traduções de poemas de Neil Curry.

Para: N. C. a/c L’Auberge de France, Avignon 

Estivera a desfazer-me de coisas da gaveta da secretária

Quando dei com o teu diário. Digo o teu,

 

Mas na verdade é o diário de alguém com quem

Partilhei – há anos, décadas de facto –

Mais do que um nome. Hoje a letra

 

Nem sequer parece assim tão familiar.

Dezanove anos devia ser  a tua idade quando o compraste.

De boa qualidade – capa dura – com o preço

 

Ainda dentro – 325 francos antigos.

Não foi barato portanto. Foi o que levaste contigo

Quando partiste à boleia para Andorra

 

E era praticamente a coisa mais volumosa

Que tinhas na mochila – ele e as latas

De cigarros – Markovitch Black and White -

 

Fumavas na altura. Pelo menos para sul foste

Até Avignon. E Avignon deu certamente

Para encher algumas páginas, não? Não

 

Que alguma vez fosse trair a tua confiança

A esse respeito. Dou-te a minha palavra, juro.

Por outro lado não dou. E isso é que é triste.

 

Leio estas tuas palavras, mas tu – tu

Nunca lerás uma só minha.

É injusto, e não gosto de pensar

 

Em ti deixado lá para trás no passado.

Como se te tivéssemos abandonado.

Para: Meneer Jan Vermeer, Oude Langendyk, Delft 

Às vezes, gosto de me imaginar

A entrar com passo largo pelas portas de Delft

Para te levar esta carta em mão –

 

Ver a luz do sol a cair como

Moedas brilhantes a dispersarem-se nas águas

Do canal; e por trás do riso

 

E regateio do mercado

Ouvir o sibilar e o ranger de moinhos.

Mas não ousaria nunca ir mais longe.

 

Não queria correr o risco de te incomodar

Com perguntas irrelevantes e inoportunas,

Para não dizer impertinentes:

 

O que acaba ele de lhe dizer, aquele soldado – virou-nos

As costas – para a cara da jovem

Se iluminar daquele modo? E a outra-

 

A de azul – está grávida, não está?

Há boas notícias, espero, na carta que está a ler?

Mas isto, como disse Stevens, é o mundo

 

Como meditação, não como narração, e nós

Não gostaríamos certamente de ser vistos como voyeurs

De tais momentos tranquilos, pois não; momentos

 

Que celebram a complexidade da paz;

O cortar do pão fresco, o deitar do vinho.

Ou estamos salvos nas mãos de Deus,

 

Parece-me ouvir dizer, ou então cairá

Tudo no esquecimento. Ou irá, claro,

Para pagar as contas do talho  ou da padaria.

Para: Padre Ignacio de Madrid, El Monasterio de
Santa Maria del Parral, Segovia
 

Esse, Ignacio, meu amigo, foi um momento

Que não esquecerei: quando tu com indiferença

Tiraste da prateleira um volume grosso em pergaminho

E colocando-o nas minhas mãos disseste que este,

Este era o exemplar de Erasmus dos Trabalhos

De São Jerónimo, e Mira, disseste, “Olha”

Apontando para os sítios onde ele tinha riscado –

Obliterado completamente de facto,

Ideias com as quais não podia concordar.

 

Uma ideia que eu próprio acho difícil

De aceitar é que faz agora

Sessenta e oito anos que te tornaste

Membro desta Ordem. Tinhas então

Dezassete. Desculpa-me, mas aquela palavra

Obliterado vem-me de novo à mente.

Que se lixe porém (desculpa) pareces

razoavelmente bem – menos os dentes;

mas a tua comida é verdadeiramente horrível.

 

Conhecer-te fez-me ter esperança em que possa

Haver um pós-vida – uma espécie de recompensa.

Mas o quê? Haveria seguramente algumas pessoas

Que nem tu realmente  quererias ver.

E quanto tempo pensas tu que  qualquer de nós

aguentaria ter  todos os desejos

Satisfeitos? E uma “eternidade

Fastidiosa de hinos gorjeados” era algo

Em que mesmo Milton não conseguia pensar.

Talvez então, Ignacio, o tenhas aqui

Já: a frescura dos claustros,

Um céu castelhano sem nuvens,  cravos e rosas,

As fontes e os jardins de água,

E manusear livros que um dia  o próprio Erasmus teve nas mãos.

Estes três poemas de Neil Curry aparecem no seu livro Some letters never sent, publicado por Enitharmon Press, 2014.

 

Francisco José Craveiro de Carvalho  (Portugal). Licenciou-se em Matemática na Universidade de Coimbra. Doutorou-se, mais tarde, com uma tese em Topologia e  Geometria, sob a supervisão de  Stewart Alexander Robertson, Southampton University, U. K.. Assume uma posição de alguma marginalidade em relação à divulgação daquilo que escreve. Traduziu poemas de Carl Sandburg, Jane Hirshfield, Jennifer Clement, Linda Pastan, Rita Dove..., publicados em opúsculos discretos, que circularam entre  os seus amigos.