FERNANDO MARTINHO GUIMARÃES

Longe Está o Céu
Ou da Europa

Há um comboio

 que me atravessa o corpo

e como um sopro

faz-me percorrer paisagens

até ao norte de tudo

Há uma vertigem

que me suspende a respiração

e como uma raiva

revive um rosto

                   alucinado

Há um desejo

que me consome

e que furiosamente

                   me parte

                   desesperado

Querer ser a engrenagem

das rodas que me levam aí

ou o silvo que me anuncia

Leva-me ó comboio

da minha imaginação

Comboio das curvas lentas

Comboio das altas velocidades

Comboio das encostas

                   aos solavancos

Comboios marginais:

só esses sabem a morada

que o sonho de ti lembra

Heia! Engrenagens primitivas

engrenagens sofisticadas

Heia! Destinos partidas

gares das grandes movimentações

Heia! Comboios à beira rios

chaminés das cordilheiras

horizonte das planícies

Levai-me comboios!

: estradas do meu metabolismo

: estalagens da minha vadiagem

:  pousadas do meu cansaço

Heia! Monstruosas centrais

e delicados apeadeiros

Quero outra vez fazer

dentro de vós a minha cama

encher os olhos do vosso exotismo

esquecer a exaustão da viagem

nas vossas lajes frias

Heia! Gares da minha marginalidade

Quero percorrer-vos os corredores

                            de madrugada

à procura dos lavabos

e encontrar nos cantos

                            das sombras psicadélicas

as enfermidades da europa que conheço

Ser o voyeur do vosso espectáculo

Boa-noite ó vagabundos prostitutas

proxenetas drogados das duras e das leves

boa-noite ó desalojados   velhos d’Austerlitz:

saúdo-vos e às folhas de jornal

que vos servem de cama

Boa-noite ó mafiosos de Roma Terminal

Boa-noite ó yankees de Veneza Sta. Lúcia

onde dormis para a fotografia

que os vossos tios verão em Minneapolis

                                                        Illinois

Ó africanos de Marselha

Fugitivos dos cães polícia

Ó bêbados de Est e SudMenhoif

Boa noite: boa-noite Sta. Apolónia

da única Lisboa que conheço

Boa-noite etarra de Donostia

que lias poesia para não adormecer

Heia! Mil vezes heia!:

A todos vos saúdo e a todos vos quero

Ó gares ó comboios ó estradas

da minha casa ao ombro

Heia! Peregrinos para Kerouac

vocês que me fizeram

companhia na Midi de Bruxelas

E que no intervalo de uma fumaça

Dizíeis je m’en fous para os palácios

 comunitários

Heia! destinos dos trabalhadores sazonais

vocês que a única consciência que têm

é a de terem consciência

e de não serdes conscienciosos

                                      de modo nenhum

Heia! Excessos dos encontros fugidios

Heia! Olhares a duzentos à hora

Heia! prostituta de Poitiers

pedia vinte francos que eu não tinha

Heia! finlandesa que querias tocar num moreno

Saúdo-vos cheiros adocicados

nos corredores dos expressos

O meu cérebro solidariza-se

com a fragrância colorida

do haxixe clandestino

no expresso para ocidente

Lembro-me de ti francesa de Paris

e do pó branco no interior

                            das peças de xadrez

Gostei do teu lance à Capablanca

e do teu sorriso de turista maravilhada

Gostei da tua elegância treinada

                            pelos passaportes falsos

Não reconhecerei o teu nome na French connection

Não te esqueci Pablo andaluz

e que ganhaste pela noite

uma cicatriz na face esquerda

Se um dia voltares para casa

                            sabê-lo-ei

Saúdo-vos companheiros da marginalidade

Saúdo-vos a vós e às plataformas

e aos carris trepidantes

e aos subterrâneos e às fronteiras

-         especialmente à fuga das fronteiras –

Saúdo-vos a vós que em todas as gares

sabeis o que é partir e não chegar

a vós que na estrada apenas sabeis

o que é seguir em frente

e que mudais de destino

como se muda de língua

        porque é preciso

a vós que conheceis o esperanto

a vós párias amantes

 do nacionalismo universal

a vós que conheceis a bastonada da polícia

mas também o amor dos homens e mulheres de ocasião

a vós depravados dementes

fugitivos da clínica europeia

a vós imunodeficitários antes da sida

Por vocês plantarei flores na lua

saúdando-vos deste modo

de vos ver como quero

Levai-me comboios

Levai-me para a única morada

                            que conheço

que é a do mostruário das partidas

                                      seguintes

e de seguida ser despejado

por falta de bilhete

Ó comboios que partis

                                      Levai-me

Fazei de mim uma partida constante

atravessai a terra e o meu corpo

e inventai o silvo que me anuncia

Oh mecanismos-bichos!

comboios-cobra comboios-delírio!

comboios-possessão comboios-escrita!

Enroscai-vos ao meu pescoço

sufocai-me fazei de mim a vossa vítima

dilarecerai-me estropiai-me

Recrio a presença da europa moribunda

europa do TGV europa vertiginosa

europa dos trilhos clandestinos

Quero ser o batedor da desgraça que rola

Sim! Sim a isto tudo

Não a isto tudo

Não isto tudo

Mais do que isto tudo o que é nómada

O que escorre o que desliza o que rola

O que me assalta nas esquinas

e nos portais citadinos

O que me seduz na ostentação do vício

As bermas as Margens os Recantos

Aí a escrita encontra o seu território

Aí tudo rola

Rola o desejo de me ver com todos vocês

Rola o desejo de sentir de novo

o cansaço do turbilhão dos terminais

Rola o desejo de não saber onde estar amanhã

Rola o desejo de me abandonar

nas bifurcações de todas as estradas

Nas bermas de todos os caminhos

Rola o desejo de rolar

Pulo uivo grasno

                            rosno selvaticamente

O sangue escorre ansioso

na expectativa da partida

Quero juntar-me à vagabundagem do mundo

Quero correr à minha frente!!!!!!

Espero o piar do mocho

                            o sinal citadino

que me persegue pela sombra crepuscular

nas vitrinas comerciais dos metros

 

Sopra na pele a aragem

desses territórios subterrâneos

Povoa-se a minha alma

dos sonhos torpes obscenos fantásticos

desses recantos  públicos e nocturnos

Lugar mitológico das multidões ausentes

Habita-vos o que não recordais do sonho

Habita-vos a outra face do sono que deseja

Habita-vos o rosto dos desejos sufocados

Habita-vos o tempo das máscaras

que a cidade reinventa

Habita-vos a profundidade

 que o meu olhar envolve

Habita-vos as fronteiras

do medo futuro

Por isso os diurnos vos invejam e temem

- ó subterrâneos do futuro europeu –

Habita-vos o delírio

do meu corpo que teme

Eufórico entro no transe de vos possuir

tremo arquejo soluço

Quero desesperadamente

tudo o que me leva para lado nenhum

Acelero o passo corro

a minha imaginação recria-se

nos corredores diabolicamente oscilantes

A loucura acompanha os ritmos do mundo

                                              que desliza

Ó pirotecnia do movimento!

Ó linhas obscuras do meu pensamento!

Ó agulheiros da minha mente delirante!

Ó gares do meu corpo febril

Suo esperneio relincho

                           espasmodicamente

 

Os meus olhos salivam

A minha boca resseca-se muda

Sou uma fera enjaulada

e espero a lua cheia da libertação

Cavalgo pela escuridão intempestiva

A chuva impiedosa que cai

                           perfura-me os olhos

Ecoa o grito que é da

minha boca feita terra

Resfolego pelos charcos enlameados

As nuvens carregadas da minha raiva

Abrem-se a esta visão furiosa

Quero ser o lobisomem

deste desejo mórbido

A natureza desvairada

diz que sim com os gritos

dos bichos enlouquecidos

e o tranvia da minha escrita

sente-se ultrapassado pelo que quer à frente

Antecipo Antevejo Antemostro

Quero-me lúcido na antecâmara

                                     da morte

Quero-me lúcido desta loucura

Vagueio entre o céu e o inferno

aguardando o grifo

que a minha inquietude inventa

Levai-me aves! A brisa

orienta-me o regresso oculto

A madrugada surge cadenciada

e os comboios-possíveis retardam

a visão da proximidade

do oriente para lá do oriente

O sol rasga as janelas obscurecidas

da mutação nocturna

Regresso cansado porque

os regressos são sempre por cansaço

Estendo-me na relva

que os vagões deixaram crescer pela noite

e recordo as viagens

que o meu corpo desmente

O céu e o inferno é o lugar

que nos habita para a morte

e a manhã sempre imprevista

é o sinal que a anuncia.

 

 

Fernando Martinho Guimarães

f_guimaraes@sapo.pt

 
 

Fernando Martinho Guimarães (Portugal). Nascido transmontano, 1960 (Alijó, Vila Real, foi na cidade do Porto que viveu até aos princípios dos anos 80. A partir do ano 2000 fixou-se em Ponta Delgada, Açores. De formação filosófica e literária, a sua produção ensaística e poética reflecte essa duplicidade. Com colaboração dispersa, no Letras & Letras (Porto), revista Vértice e Parnasur (Revista literária galaico-portuguesa), no Suplemento Açoriano de Cultura do Correio dos Açores, passando pelo jornal Horizonte (Cidade da Praia, Cabo Verde), tem dedicado a sua actividade ensaística à poesia portuguesa e galega. Cronista na Rádio Atlântida e no jornal Correio dos Açores...
Da poesia galega, a sua ensaística tem incidido sobre a poesia de Luisa Villalta ( I jornadas de Letras Galegas de Lisboa, 1998) e a de Manuel Antonio ( Colóquio Escritas do Rio Atlântico, Funchal, 2001).
Publicou em 1996 A Invenção da Morte (ensaio), em 2000 56 Poemas, em 2003 Ilhas Suspensas (ediçao bilingue, castelhano/português) e em 2005 Apenas um Tédio que a doer não chega.

In: http://aportaverde.blogspot.pt/2008/09/fernando-martinho-guimares.html