ADEMIR DEMARCHI
Érico Veríssimo – do mundo ordenado
dos EUA à vertigem do México

Érico Veríssimo notabilizou-se por conceber a região do sul do Brasil literariamente, de forma inédita e atraente, transformando em saga a vida dos gaúchos e dando colorido à vida da capital de província, a Porto Alegre dos anos 1930 aos 40. Mas sua obra registra também que sua imaginação transcendia aquela região do sul do Brasil e a ampliava para uma idéia continental que incluía os países de fala hispânica e sua cultura. Essa região ampliada aparece em sua obra por aquilo que a América do Sul apresentava de mais grotesco - e assemelhado com o Brasil - como a ditadura militar e a repressão política, presentes em Incidente em Antares, em que, num divertido trecho, sete mortos vêm à praça pública denunciar que a podridão não é uma característica deles, mas dos vivos e governantes, estabelecendo um paralelo com o país da década de 1960, governado por militares. Outro desses locais é a República de Sacramento, país imaginário em Nova Granada, que seria uma ilha fictícia do Caribe, governada despoticamente por um ditador militar que se apóia na oligarquia rural e empresas multinacionais norte-americanas.

Trata-se de uma literatura muitas vezes alegórica, que se utiliza da criação de um local imaginário e distante como recurso para falar da realidade de um Brasil sob censura, ao mesmo tempo em que expressa aspecto geopolítico, de um pensamento e condição sul-americanos, fundados por contraposição à forte presença política e cultural norte-americana na região.

Em México – História duma viagem, de 1957, essa condição de sul-americano aparece com todas as suas vicissitudes e contradições. Lemos nesse livro o premente desejo do escritor de aprofundar o conhecimento real dessa América do Sul idealizada nos textos, assim como o registro de sua condição de fora-de-lugar, despaizado, tanto no México que busca com encanto e conhece em suas misérias, quanto nos Estados Unidos da América, em que gosta do conforto mas que o abala por anestesiar e impedir de pensar.

Ordem e “bagunça”

Nos EUA o que encanta um sul-americano é o que lhe soa como falta em seu país: a organização, a economia pujante, a tecnologia expressa em automóveis, edifícios e indústrias, a propaganda e o consumo. Sobre os EUA o escritor nos diz: “amo este país, gosto de Washington. É um burgo encantador, um plácido jardim de turistas, diplomatas e funcionários públicos – correct, charmant et ridicule. Um modelo de organização, um primor de urbanismo. Tudo aqui funciona direitinho, ‘a tempo e a hora’, como dizia Dona Maurícia, minha falecida avó”.

No entanto, essa ordem anglo-saxônica que encanta num primeiro momento por ser o avesso da “bagunça” sul-americana oriunda da colonização européia, espanhola ou portuguesa, breve enfastia. Assim, logo a rotina se transforma em algo maçante pois o escritor, obrigado a viver numa “alegria de rotariano”, se vê sujeito a participar de almoços semanais no Clube dos Alegres Ursos, em que os homens se reúnem com “grotescos chapéus de papel” nas cabeças para contar anedotas e ouvir conferências - no caso de Érico como palestrista, sobre a cultura brasileira, cuja receptividade é frustrante, sobre o que ele nos diz que “Esperei que perguntassem como vivem os brasileiros, como amam, dançam, cantam, sonham e morrem... Mas qual! Queriam que eu lhes desse as cifras da exportação de café, o rendimento per capita da população, o índice de precipitação pluvial”.

Há um sentimento de ridículo nisso tudo que estimula o senso de humor irônico, constante, que perpassa o livro e nos dá um especial prazer de leitura. Assim responde Érico, expondo a impropriedade de alguém que se baba e ao mesmo tempo se preocupa com a economia: “O cavalheiro que estava a meu lado, os lábios lambuzados de sorvete de baunilha, quis saber que está fazendo nosso governo para combater a erosão do pátrio solo. Respondi que Villa-Lobos havia escrito uma sinfornia intitulada Erosão e que todos nós esperávamos que isso resolvesse definitivamente o problema. E não é que o homem levou a resposta a sério e quis pormenores técnicos?”.

Mas há mais nesse país pródigo. Aos ursos somam-se as velhotas “limpas, alegres, enfeitadinhas, decentes, gentis, sedentas de informação e animadas pelos mais puros sentimentos cívicos. Pertencem a mil clubes, mil comissões, mil fraternidades. Fazem coisas, organizam coisas, querem saber coisas. Colaboro com elas, faço-lhes conferências sobre todos os assuntos, inclusive e principalmente sobre os que não conheço. Respondo às suas perguntas com paciência filial. Mas elas me sufocam, Bill, ai, elas me enlouquecem! Vivam as nossas velhas brasileiras! Salve Dona Maurícia com seu xale xadrez, suas chinelas bordadas, seus bolinhos de polvilho, seus guardanapos de croché, sua asma e seus silêncios! Nunca pertenceu a um clube. Nunca foi a uma conferência, benza-a Deus!”

O México mágico

A viagem ao México, assim, nasce do esgotamento de viver nos EUA, sobre o qual o escritor nos confessa: “estou cansado deste mundo lógico, anseio por voltar, nem que seja por poucos dias, a um mundo mágico. Sinto saudade da desordem latino-americana, das imagens, sons e cheiros de nosso mundinho em que o relógio é apenas um elemento decorativo e o tempo, assunto de poesia. Dêem-me o México, o mágico México, o absurdo México!”

Querer o absurdo em lugar do ridículo de tornar-se um urso norte-americano e vestir chapéu de papel não livrará o escritor da pecha, parecendo já uma condição desconfortável, pois em meio a um descarrilhamento de trem, na viagem, um homem alourado o confunde com um norte-americano e Érico confessa que explicar o contrário “seria inútil, pois minha mulher tem olhos azuis e está a bater fotografias desesperadamente”.

Aquele México mágico desejado, assim, é o que o escritor conheceu há pouco mais de um ano antes dessa nova viagem, de onde voltou “perturbado com o pouco que vi e o muito que adivinhei”, e do qual restou um gosto que não é doce, nem amargo, mas “esquisito, raro, diferente, mistura de tortilla, cigarro de palha, chile e sangue. Um gosto seco, às vezes com certa aspereza de terra desértica, não raro com inesperadas e perecíveis doçuras de fruto tropical”, que sumaria como sendo país de um “gosto pardo” e de “rústica tragédia”.

A viagem ao México, portanto, logo permitirá ao escritor trocar os funcionários americanos “louros, magros e joviais” pelos mexicanos “gordos, cabeludos e taciturnos”, ou, já no trem, cabineiros norte-americanos “gordos, luzidios e sorridentes negrões” por “sujeito magro e calvo, de face cadavérica e barba de dois dias”, numa paisagem de “fascinação quase mórbida” – “Jamais vi tamanha desolação” - que lhe dá sensação de déjà vu por lembrar o nordeste brasileiro, composta por índios e índias descalços, “retacos, feios, sujos e tristes” que ficam parados nas ruas e erguem para o trem “suas enigmáticas caras cor de terra”.

Aquele México mágico rapidamente se transforma numa ilusão demolida pela onipresença de mendigos, foguetes, bilhetes de loteria, “verdejantes ilhas de esterco”, auréolas de moscas, manchas escuras num muro que remetem a memória diretamente ao “sangue dos fuzilados de antigas revoluções”, saudades da “alvura das toalhas dos carros-restaurantes americanos, do brilho argentino de seus talheres, da limpa rigidez dos geladinhos caracóis de manteiga” que, neste novo lugar, tem “consistência de pomada”.

Disso para a ocorrência de um descarrilhamento do trem é um passo e logo o escritor se põe a nos descrever a passividade dos índios mexicanos em meio ao desastre – “No soy autoridad, señor” – cada um cuidando da sua vida, como se vivessem “num mundo à parte do nosso, como peixes num aquário a mirar-nos furtivamente com seus olhos imóveis, num silêncio líquido e oblíquo” tal como no conto “Axolote”, de Julio Cortazar. O escritor então é tomado por sentimento humanitário, ou tipicamente populista que acometia os intelectuais de esquerda – “São homens, são teus irmãos, digo para mim mesmo com a melhor intenção franciscana. Quero amá-los. Quero ao menos tolerá-los. Dou disfarçadamente um peso a um menino que ao passar nos lança um olhar comprido. Ele apanha a nota indiferente, sob o olhar ainda mais indiferente da mãe”. A atitude resultaria inútil se não fossem as reflexões que suscitam, pois o menino “apanha a nota indiferente, sob o olhar ainda mais indiferente da mãe. Por que fiz isso? Sentimento de culpa? Será que pretendo com esse peso penitenciar-me de ser um ´pequeno-burguês sentimental´, como diria Jorge Amado, de ter o que tenho, de não haver nascido índio numa casa de adobe no deserto de Chihuahua?”

O estranhamento se aprofunda na “vergonha de ser turista”, de considera “sacrílego comer neste vagão quando no outro há feridos que sofrem, as peles e as vestes ainda manchadas de sangue”.

Nesse ritmo de tensão Érico Veríssimo vai discorrendo sobre o México, indo desse tenso contato com sua população à descrição de aspectos históricos antigos, como se estivesse em pleno momento que descreve, ou momentos antes, por exemplo, do grande massacre a que os astecas foram submetidos pelos espanhóis. Isso mantém o tom quente da narrativa e enfatiza os contrastes dessa cultura que ele descobre, sendo comum incorporar ao texto bizarrias como a de que os astecas criavam cães para comer, entre tantas outras, o que distancia o México cada vez mais daquela cultura ordenada dos EUA e também da sua própria cultura.

Sínteses: mestiçagem e diversão

É preciso, porém, buscar saídas dessa contraposição de culturas, buscar um equilíbrio entre o excesso da ordenação norte-americana e o caos da vida sul-americana. Érico Veríssimo, assim, tenta encontrar uma síntese baseada na mescla, numa mestiçagem que não seja o falseamento da incorporação de vestimentas como os macacões de zuarte para jogar basebol pelos meninos com “caras cor de terra”, de nítida influência texana. Ele busca antes uma solução física, como no exemplo de uma então avançada câmara fotográfica da qual ele e a mulher levam para a viagem e da qual lêem superficialmente a “bula”, preferindo confiar no olho a serem os “metódicos, os cautelosos, e – por que não dizer? – os sensatos” que usam fotômetros para medir a intensidade da luz ambiente adequada para as fotografias. Assim, tem-se o que ele diz ser uma “reflexão psico-fisiológica” que traduz a buscada mestiçagem, encontrada num entrelugar que não está nem na máquina, nem no cérebro tido ele mesmo como uma máquina, mas no corpo como um todo, que se apropria de ambos baseado na intuição em vez de restringir-se na racionalidade, não para conquistar e transformar o mundo em técnica, trabalho mecânico e em dados econômicos mas para fruí-lo e usá-lo como fonte de diversão e prazer: “O latino usa sempre o corpo em situações em que o anglo-saxão preferirá usar uma de suas muitas engenhocas. Resultado: eles fazem as coisas melhor, mas nós nos divertimos mais”.

 
Ademir Demarchi é doutor em literatura brasileira, escritor, autor do livro PASSAGENS – Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná (Imprensa Oficial do Paraná, 2002) e editor da revista de poesia BABEL. e-mail: revistababel@uol.com.br