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CECÍLIA BARREIRA
Corte de costura:
As Mulheres e o Simbólico (1)

A nossa primeira proposta designava-se "as mulheres e o simbólico". Era nossa intenção em jeito de discurso teórico, não excessivamente convicto e o menos maçudo possível, mas ainda assim discurso, alguns exemplos da literatura portuguesa psicanalisável através dos traumas localizados no feminino de uma literatura masculina.

Mas eis que desabrochou em nós a perversidade da inversão dos discursos, de reunirmos ousadia para um projecto que contivesse o diferente, a loucura branda e a desordem breve. O gosto de entregarmos os literatos às feras da literatura. A vontade de dizer: escritores psicanalisai-vos uns aos outros.

Explicamos: imaginem um filme mudo, onde os actores se movam num espaço de laboratório, onde tudo se esgota nos gestos, no caricatural, na mímica, no trejeito, na força do movimento ou da sua ausência. Os diálogos vêm do exterior, de vozes que tentam acompanhar e surpreender as personagens que se movem nesse espaço. Escusado será dizer que as mulheres são todas faladas pela mesma voz.

Precisemos ainda: poremos quatro personagens em cena. Freud que se apresenta no seu gabinete de trabalho, composto por uma secretária, um divã e um cadeirão. As pacientes de Freud: Madalena, a protagonista de "Frei Luís de Souza", de Almeida Garrett; Maria Eduarda, a dos "Maias", de Eça de Queiroz; e Augusta, do "Diário íntimo" de Manuel de Laranjeira.

A situação parecerá por demais absurda: mas foi no absurdo que encontrámos o traço de consistência da mensagem que vos propomos. As falas que vão dirigir as personagens são uma recriação de nossa autoria de textos retirados das obras já mencionadas de Almeida Garrett, Eça de Queiroz, Manuel de Laranjeira; e ainda do "Livro do desassossego de Bernardo Soares, dos "Fragmentos de um discurso amoroso" de Roland Barthes e de "O fazedor" de Jorge Luís Borges.

Freud, fiel à sua carreira de chamane, cura os corpos doentes nas suas pulsões pelo discurso do outro, ouvindo e dizendo como quem se distrai ou flutua tratando afinal de si, como outros tratam de si próprios escrevendo romances ou diários íntimos. As mulheres, essas, surgem-nos torturadas num corpo macerado de dor, dúvida e culpa.

Madalena nunca se liberta do fantasma do primeiro marido, talvez morto em Alcácer Quibir. Telmo, o fiel guardador da conjugalidade do primeiro matrimónio, não abre mão impedindo a felicidade de Madalena com o segundo esposo. Madalena designa o discurso da ausência, da superstição, do destino fatal e irreparável. Causa inútil à partida porque a culpa emerge sempre nos palcos onde se debate a identidade pessoal ou pátria.

Maria Eduarda é a imagem do desejo no espaço do interdito. Por isso se deseja e repugna. Desejo e repugnância que se movimentam nas mesmas águas de tédio de todas estas pacientes de Freud.

Augusta é uma "mulher do povo", amante legal do escritor-poeta. A depositária do esperma, a criada de chambre, o local preferido da agressão e da complacência masculina consigo própria, das misoginias e da homossexualidade latente de que todas elas abundantemente se alimentam. Augusta é uma mulher simples: chora, grita, tem ciúmes, ama, como as bonecas de hoje.

Todas elas se limitam a cumprir os fantasmas do medo, de impotência e de culpa dos homens a que se ligam. A cumprir as promessas dos escritores que as escrevem. Mais do que todas, Augusta, a única que não sendo ficção alimenta o homem e o escritor.

De Madalena a Augusta, apenas o espaço de um trajecto nos vazios de todos nós, de há gerações quantas até hoje. Que importa que seja afinal a literatura no que de melhor ela produziu? Que importa que sejamos nós a costurá-la perante os vossos olhares. Que importa a dúvida ou a crença, o desejo e o sonho. Escolhemos um campo aberto onde tudo é possível. Tudo. O fascínio é o invólucro legítimo de qualquer repugnância; o desejo a forma mais elaborada de uma morte que se adia.

Freud

Depois que as últimas chuvas deixaram o céu e ficaram na terra - céu limpo, terra húmida e espelhenta - a clareza maior da vida que com o azul voltou ao alto, e na frescura de ter havido água se alegrou em baixo, deixou um céu próprio nas almas, uma frescura sua nos corações.

Somos, por pouco que o queiramos, servos da hora e das suas cores e formas, súbditos do céu e da terra. Aquele de nós que mais se embrenhe em si mesmo, desprezando o que o cerca, esse mesmo se não embrenha pelos mesmos caminhos quando chove do que quando o céu está bom. (...)

Cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmos. Por isso aquele que despreza o ambiente não é o mesmo que dele se alegra ou padece. Na vasta colónia do nosso ser há gente de muitas espécies, pensando e sentindo diferentemente.

Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me evapora. Continuamente sinto que fui outro, que senti outro, que pensei outro. Aquilo a que assisto é um espectáculo com outro cenário. E aquilo a que assisto sou eu. (pp. 23-24).

O meu desejo é fugir. Fugir ao que conheço, fugir ao que é meu, fugir ao que amo. Desejo partir - não para as Índias impossíveis, ou para as grandes ilhas ao Sul de tudo, mas para o lugar qualquer - aldeia ou ermo - que tenha em si o não ser este lugar. Quero não ver mais estes rostos, estes hábitos e estes dias. Quero repousar, alheio, do meu fingimento orgânico. Quero sentir o sono chegar como vida, e não como repouso. (p.73).

Só quando vem a noite, de algum modo sinto, não uma alegria, mas um repouso que, por outros repousos serem contentes, se sente contente por analogia dos sentidos. Então o sono passa, a confusão do lusco-fusco mental, que esse sono dera, esbate-se, esclarece-se, quase se ilumina. Vem, um momento, a esperança de outras coisas. Mas essa esperança é breve. O que sobrevem é um tédio sem sono nem esperança, o mau despertar de quem não chegou a dormir. E da janela do meu quarto fito, pobre alma cansada do corpo, muitas estrelas; muitas estrelas, nada, o nada, mas muitas estrelas... (p. 165).

Relatório I. Madalena. Conhecia-a no passado Verão, no convento. Tinha o olhar distante de quem se já não pertence, de quem se habituou a ser estrangeiro dentro de si próprio. Não notou a minha presença; provavelmente tudo seriam espectros num baile onde só os fantasmas do passado ainda se moviam. A pouco e pouco habituei-a a devolver-me a fala, que a tinha perdido, muitos anos atrás depois da tragédia. Talvez porque esperar seja uma doença que se consome como a espuma, daí não a sentirmos e não nos ser pesada.

Habitualmente sofria de enxaqueca. Havia, também, a melancolia inexplicável que lhe preenchia com que gozo os fins de tarde, mornos e doces, escorrendo. Ao princípio recusa-se a chorar. Abdicando da Culpa e do Medo que em marés sucessivas se permitiam coabitar-lhe a Alma, iniciou um longo e perturbante choro de sete dias e sete noites após os quais pegou na sua caixa de costura e fez uma renda. A felicidade conheceu-a longos anos antes, casada em segundas núpcias com Manuel de Sousa, cavaleiro belo e saudável que amou com paixão e desespero.

Madalena gostava do número sete; comprazia-se em fixar os meses não de quatro em quatro semanas, mas de sete em sete: assim havia menos meses no ano e estes passavam com maior lentidão e espaçamento. Era uma felicidade ameaçada pela presença de um Outro: o primeiro marido, que deveria ter perecido em terras de Alcácer Quibir com o malogrado rei D.Sebastião. Amar é um risco menor que recordar a medo.

Madalena

Depois que ficara só, depois daquela funesta jornada de África que me deixou viúva, orfã, e sem ninguém... sem ninguém e numa idade... com dezassete anos! Nele e só nele achara o carinho e protecção, o amparo que eu precisava. Ficou-lhe em lugar de pai; e ela - salvo numa coisa! - tinha sido para ele, tinha-lhe obedecido como filha.

Freud

Mas essa coisa

Madalena

Para essa houve poder maior que as minhas forças. D. João ficara naquela batalha com seu pai, com a flor da nossa gente. Como chorei a sua perda, como respeitei a memória, como durante sete anos, incrédula a tantas provas e testemunhos de sua morte, o fiz procurar por essas costas de Barberia, por todas as séjanas de Foz e Marrocos... Cabedais e valimentos, tudo se empregou gastaram-se grossas quantias; os embaixadores de Portugal e Castela tiveram ordens apertadas de o buscar por toda a parte: aos padres da Redenção, a quanto religioso ou mercador podia penetrar naquelas terras, a todos se encomendava o seguir a pista do mais leve indício que pudesse desmentir, pôr em dúvida ao menos, aquela notícia que logo viera com as primeiras novas da batalha de Alcácer. Tudo fora inútil; e a ninguém mais ficou resto de dúvida...