ADELTO GONÇALVES

ORIENTE MÉDIO
A vida numa terra sitiada

BEBER O MAR EM GAZA: DIAS E NOITES DE UMA TERRA CERCADA
AMIRA HASS
Tadução de Lígia Calapez e Sofia Vilarigues
Lisboa, Editorial Caminho, 557 págs.; 2005
www.editorial-caminho.pt . E-mail: caminho@editorial-caminho.pt
 
Há algumas semanas, o governo israelense concluiu a evacuação dos 8.500 colonos judeus que viviam em 21 assentamentos na Faixa de Gaza rodeados por 1,2 milhão de palestinos. Soldados egípcios tomaram posição ao largo da fronteira com Israel, cumprindo o acordo egípcio-israelense para que o Egito reforçasse a fronteira tão logo Israel concluísse a sua retirada de Gaza, depois de 38 anos de ocupação. Mas o exército israelense continuará a controlar todo acesso por terra, mar e ar e os palestinos de Gaza permanecerão separados do seu povo na Cisjordânia.

O mundo pergunta-se pelo futuro desse pequeno território sob controle parcial da Autoridade Palestina desde 1994, depois que o exército israelense destruiu o que restava de suas instalações militares em Gaza e bateu em retirada, embora ainda apreensivo com o que pode ocorrer a 24 sinagogas que restaram nos antigos assentamentos judeus da zona. É possível que a paz tenha alguma chance?

Não é o que acredita a jornalista israelense Amira Hass, autora de Beber o Mar em Gaza: dias e noites de uma terra cercada, livro em que conta o que se passou nas ruas esburacadas e nos campos de refugiados da Faixa de Gaza de 1993 a 1996, durante os tempos “normais” e durante os intermináveis bloqueios.

De formação atéia, filha de pais romenos e socialistas que sobreviveram ao Holocausto, Amira, nascida em Jerusalém em 1956, correspondente em Gaza do diário Haaretz (www.haaretz.com), de Tel Aviv, tem uma visão bem diferente daquela que norteia o governo liderado pelo primeiro-ministro Ariel Sharon: para ela, quase dez anos depois do que descreveu em seu livro, Israel e os palestinos estão cada vez mais distantes da paz, apesar da esperança que representa a retirada dos assentados judeus de Gaza.

Para Amira, que, sendo israelense, surge como uma voz isenta, por trás das “boas intenções” do governo de Israel, há uma escalada na colonização israelita da Cisjordânia e também em sua fragmentação territorial. Nos últimos cinco anos, a formação de colônias israelenses e a construção de rodovias de alta qualidade só para judeus despedaçaram a Cisjordânia em vários enclaves palestinos separados ou frouxamente ligados.

Como diz Amira no prefácio que escreveu em junho de 2005 para a edição portuguesa lançada pela Editorial Caminho, é este o plano para o futuro Estado palestino arquitetado pelo governo israelense: um conjunto de enclaves cujo tamanho e interligação ainda dependem de negociações, o que viola as resoluções internacionais segundo as quais a Faixa de Gaza e a Cisjordânia deveriam juntas formar um futuro Estado palestino.

Vivendo em Gaza em meio à maioria palestina, Amira pôde constatar que muitos dos atos arbitrários cometidos pelo exército israelense contra os palestinos não ficam nada a dever àqueles praticados pelos nazistas com os judeus, que são lembrados a quem visita o Yad Vashem, o Museu do Holocausto (Shoah), em Jerusalém.

Amira pôde constatar também as conseqüências dos acordos de Oslo assinados por Israel e pela Organização de Libertação da Palestina (OLP) entre 1993 e 1995: cerca de um milhão de pessoas ficaram confinadas a um território de 363 km2 de onde não há meio de sair, nem para Israel nem para o Egito nem para a Cisjordânia.

Ainda hoje é assim. Em agosto de 2005, este articulista esteve às portas de Jericó e não pôde entrar por falta de autorização: está proibida a entrada de turistas, jornalistas e israelenses. Já em Belém pode-se passar pelos altos muros de cimento armado que cercam a cidade desde que se esteja integrado a um grupo de turistas que seja conduzido por motorista e guia palestinos e, ainda assim, por poucas horas, tempo suficiente para visitar relíquias bíblicas.

Quem percorre a Cisjordânia descobre que, assim como em Gaza, a idéia de Moshe Dayan, ministro da Defesa à época da Guerra dos Seis Dias, em 1967, de que uma relativa prosperidade diminuiria o fervor nacionalista dos palestinos não se concretizou. Não houve essa relativa prosperidade e tampouco a vontade de independência dos palestinos arrefeceu.

O reverso da lógica de Dayan consistia em refrear o desenvolvimento econômico e industrial dos territórios ocupados por meio de restrições orçamentárias, impostos muito pesados e um arsenal de medidas destinadas a desencorajar os empreendimentos que pudessem criar postos de trabalho.

O resultado disso foi um êxodo em massa de palestinos, tendo restado para aqueles que ficaram a possibilidade de trabalhar integrados à mão-de-obra israelense, inicialmente nas obras públicas, na agricultura e serviços de limpeza e, depois, em restaurantes, fábricas e demais empresas de judeus. Mesmo assim, correndo o risco de ficar sem emprego sempre que as autoridades israelenses implantavam o bloqueio nas cidades palestinas e impediam esses operários de trabalhar em Israel. Em troca, o mercado palestino abriu-se aos produtos israelenses e aos importados distribuídos por empresas israelenses.

Para justificar a miséria de um milhão de pessoas concentradas por detrás das barreiras eletrificadas da Faixa de Gaza e as conseqüências do estado de sítio imposto ao longo dos anos, Israel apresenta os bloqueios às cidades palestinas como a resposta inevitável ao terrorismo e a única forma de evitar novos atentados. Em Belém, disseram-me que o bloqueio já causou a morte de mais de quatro mil crianças por desnutrição nos últimos meses na cidade.

Por trás disso, está a intenção de Israel de fragmentar definitivamente os territórios palestinos ocupados, provavelmente com um mini-Estado “independente” em Gaza e de uma Cisjordânia autônoma ligada à Jordânia em que um Parlamento resolveria os problemas conjuntamente com os colonos judeus, segundo o plano que o ex-primeiro-ministro Shimon Peres expôs em 1994. Os palestinos rejeitaram a proposta à época, mas as medidas práticas tomadas pelo governo de Sharon mostram que a idéia não foi abandonada.

Sem maiores alternativas, é provável que a alta direção palestina aceite essa proposta. Como tem a liberdade de movimentos assegurada e a possibilidade de fazer grandes negócios, a elite palestina tem sido cúmplice de Israel em sua política de separação, método que, segundo Amira Hass, faz lembrar o apartheid. É por isso que nunca teve autoridade moral para impedir a ação violenta dos chamados fundamentalistas.

Olhando pelo lado israelense, compreende-se que o Estado não queira ceder mais espaço aos palestinos, sob o risco também de comprometer sua segurança. Apesar de abrir mão de Gaza, Sharon já deixou claro que não pretende sair por completo da Cisjordânia e promete continuar as construções de casas nos demais assentamentos do território. Segundo ele, o bloco de assentamentos de Ariel, o maior da Cisjordânia, permanecerá "parte de Israel para sempre, ligado territorialmente a Israel".

É claro que os palestinos continuarão a considerar todo o país como seu, sem renunciar à saudade das vilas em que viveram seus pais e que hoje carregam nomes hebreus nem ao sonho de uma grande Palestina. Mas um Israel forte é também uma garantia de que nunca mais os judeus de todo o mundo vão correr o risco de ver a repetição da loucura nazista.

O que se espera é que tanto israelenses como palestinos encontrem uma solução baseada na dignidade e no respeito mútuo. Ambos têm direitos e merecem viver na terra de seus ancestrais. O livro de Amira Hass, escrito sem facciosismo, ajuda a compreender muito bem o drama palestino. É significativo que uma jornalista judia tenha sido quem mais bem contou o drama de viver em Gaza.

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br