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Ilações tiradas de um manual anti-tiranos    

MANUAL ANTI-TIRANOS: RETÓRICA, PODER E LITERATURA, de Maria Luísa Malato. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 132 págs., 2009.
E-mail: editora@livrariadoadvogado.com.br
Site: doadvogado.com.br

I

Responda depressa: o que os poetas e os juristas têm mais em comum? Antes que seja necessário ao leitor consultar dicionários ou tratados de retórica, eis aqui a resposta: respondem sempre à letra. Ou devem responder sempre que tenham oportunidade, embora a resposta, às vezes, possa custar dias de calabouço, tortura ou desaparecimento no mar. Foi assim até há não pouco tempo, embora haja hoje em dia quem diga que a ditadura que vivemos de 1964 a 1985 tenha sido branda, talvez porque não tenham sido os seus testículos e unhas que foram arrancados.

A que vêm estas reflexões? Vêm a propósito do Manual Anti-Tiranos: Retórica, Poder e Literatura, que Maria Luísa Malato, professora doutora associada do Departamento de Estudos Portugueses e Estudos Românicos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, acaba de publicar pela Livraria do Advogado Editora, de Porto Alegre, em sua coleção Direito & Arte. Ali se lê que, diante da palavra abusiva, ainda que a da lei, tanto o poeta como o jurista sempre pensam na possibilidade de responder com a palavra, ainda que subversiva.

Diz a autora: tanto um como outro sabem que, levada aos seus limites, a interpretação acaba por conduzir quer à sua negação quer à sua verdade mais profunda. “Para ambos, o sentido do texto pode ancorar-se sob alçada de uma lei arbitrária, sob uma autoridade duvidosa ou um poder corrupto. Ou furtar-se a essa alçada para de fora a contestar. Nem o poeta nem o jurista se acomodam à univocidade da norma e, por isso, ambos incomodam”, acrescenta.

É por isso que nos decepcionamos quando magistrados não exibem a compostura que o cargo exige. E se deixam levar pelos holofotes da mídia ou pela vaidade de um efêmero cargo no poder executivo, em vez de se recolherem à doce e anônima aposentadoria. Foi o que boa parte da sociedade brasileira – ao menos aquela que pensa – sentiu quando há 20 anos um supremo juiz eleitoral, após ter presidido as primeiras eleições livres do País depois da duas décadas de regime autoritário civil-militar, deixou-se abater pelo laço do inimigo ao aceitar um cargo de ministro no novo governo. Ficou marcado para sempre.

II

Especialista no século XVIII português, Maria Luísa Malato é autora de obras fundamentais sobre aquele período da história lusa, como Manuel de Figueiredo: uma perspectiva do neoclassicismo português -1745-1777 (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995), biografia do teatrólogo Manuel de Figueiredo (1725-1801), “Por acazo hum viajante...” a vida e a obra de Catarina de Lencastre 1ª Viscondessa de Balsemão – 1749-1824 (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008), História da literatura europeia: uma introdução aos estudos literários (Lisboa: Quid Juris, 2008) e da edição crítica da Obra Literária (poesia) de José Anastácio da Cunha (1744-1787), em co-autoria com a professora Cristina Alexandra de Marinho, que saiu em dois volumes (com inéditos do autor) pela editora Campo das Letras, do Porto (v.1, 2001; v. 2, 2006).

A professora utiliza seu vasto conhecimento da época para mostrar que entre a Literatura, o Direito e a Retórica se pode estabelecer muitas pontes e uma fácil cumplicidade de resistência à autoridade da força bruta, física e desmesurada. No Manual que preparou alinham-se histórias exemplares de combate – às vezes, silencioso – da liberdade contra a tirania, da memória contra o esquecimento.

É o que está por trás, por exemplo, da fundação de academias científicas e literárias no século XVIII, ainda que em tempos de tirania explícita. A academia tornou-se uma representação da Arcádia em que os acadêmicos faziam de conta que eram pastores – fisicamente ociosos e mentalmente ativos –, exercitando-se naquela poesia primordial que era bucólica, diz a autora. Para ter o rei ao seu lado – que à época do absolutismo era sempre um tirano –, os pastores tratavam de imaginá-lo também um pastor arcádico e um mecenas esclarecido. Mais: “um monarca iluminado, sábio em suas decisões, enérgico na defesa de seus súditos e observador de sua natural liberdade”.

Diz a investigadora que a presença da agricultura (proximidade e reciprocidade da natureza) na poesia arcádica serve para valorizar a ação política não despótica, mas que deriva de uma reciprocidade entre rei e súditos.

III

Segundo a autora, é importante para o espírito utópico da academia a crença na imortalidade da poesia. A imortalidade é naturalmente a fama a que todo poeta (ou literato) aspira, ou seja, a glória “que fica, eleva, honra e consola”, de que dizia Machado de Assis (1839-1908). E que também tem o nome de posteridade, que, no fundo, é uma utopia. Disse, certa vez, Bocage (1765-1805) num poema: “(...) Posteridade, és minha!”. É o desejo utópico de vencer a morte, o tempo, a História e tudo o que ela esquece ou corrompe.

Por isso, diz a autora, o poeta torna-se um filósofo, que observa e compreende o mundo com o olhar: “O Pastor encontra-se próximo da Natureza e, ainda mais do que o Agricultor (que planta, colhe, poda, enxerta), molda-se passivamente a ela, deixando que ela siga o seu curso. Guia e protege o rebanho, mas deixa-o freqüentemente em liberdade para que a natureza cumpra os seus ritmos. É sábio, porque observa e não age”.

IV

Afirma Maria Luísa que a tirania coloca ao poeta e ao jurista problemas semelhantes. Afinal, a tirania não gosta da palavra e aspira à paz dos cemitérios. Os tiranos só conhecem o argumento de sua força e àqueles que não concordam com isso só restam adesão servil e silêncio. Por isso, aqueles que serviram aos tiranos têm vergonha do papel que desempenharam e, mais tarde, quando os tiranos já estão mortos, procuram reescrever a história. É um pouco dessa luta que hoje se trava no Brasil. De um lado, os ex-colaboracionistas, que se envergonham de o terem sido; e de outro, os remanescentes da luta política que, hoje, obviamente, já não são tão idealistas como naquele tempo.

Nada disso, porém, justifica que, ao comparar o regime militar brasileiro às ditaduras de Chile, Argentina e Uruguai, conclua-se que a verde-amarela tenha sido menos violenta porque os “desaparecidos” foram em número bem inferior. Como se a ignomínia pudesse se resumir a uma questão de estatística. Por esse critério, é possível imaginar que, em vez de seis milhões, tivessem sido três milhões os eliminados pela insânia hitlerista o Holocausto não seria o Holocausto. E as barbaridades que vemos, por exemplo, nos filmes da época que se exibem no Yad Vashem, o Museu do Holocausto, em Jerusalém, como tratores atirando corpos a fossas, tenham sido inventados por alguma mente tenebrosa.

Diz a autora que a tirania se confunde muitas vezes com o amor. E teria sido por isso que não poucos tiranos foram amados e louvados por multidões. Mas, hoje, ainda bem, parece que já não há espaço para esse tipo de tirano caricato. As tiranias de hoje são mais tecnológicas e menos ideológicas.

Enfim, este Manual Anti-Tiranos permite muitas ilações e nos ajuda a compreender e descobrir tiranos por todos os lados, até mesmo aqueles que carregamos dentro de nós mesmos e que estão apenas à espreita para aflorar diante da menor contrariedade. Aprender a domar estes tiranos internos, rindo de nós próprios, é o melhor caminho para quem aspira a viver em paz com o seu semelhante. Até porque, como nos ensina a autora, o maior perigo para os que atacam os tiranos é acabar por ser como eles. Quantos não conhecemos que acabaram assim?

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br