:::::::::::::::ADELTO GONÇALVES:
Cristino Cortes: conversa com poetas

MÚSICA DE VIAGEM, de Cristino Cortes.
Porto: Papiro Editora, 113 págs., 2008.
E- mail: info@papiroeditora.com

I

Todo homem é aquilo que viveu – e, no caso dos intelectuais, também o que leu (e releu). Este início de texto um tanto borgeano – talvez porque escrito por quem acaba de reler pela enésima vez o conto “El Otro”, de Jorge Luís Borges (1899-1986), que abre El Libro de Arena (Buenos Aires, Emecé, 1975) – vai aqui a propósito do novo livro do poeta Cristino Cortes (1953), Música de Viagem, o décimo de sua carreira, que reúne 77 poemas com amplo espectro temático e formal.

Apresentado publicamente em fevereiro de 2008 na Póvoa do Varzim, terra natal de Eça de Queirós (1845-1900), por ocasião do 9º Correntes d´Escritas, encontro anual de escritores de expressão ibérica, este livro tem, como seu título denuncia, uma implícita ligação com a música, que se deve naturalmente ao apurado gosto de quem o imaginou, mas é sobretudo uma homenagem que o autor decidiu prestar a poetas de sua predileção, como Guerra Junqueiro (1850-1923), António Nobre (1867-1900), Cesário Verde (1855-1886), Jorge de Sena (1919-1978), Vitorino Nemésio (1901-1978), Teixeira de Pascoaes (1877-1952), Florbela Espanca (1894-1930), Alberto Pimenta (1937), Fernando Pessoa (1888-1935) e, o maior de todos, Luís de Camões (c.1524-1580), com o qual o volume se encerra.

Se a idéia de que todo homem é também outro homem e, portanto, todos os homens, permeia a obra de Borges – o conto “El Otro”, por exemplo, narra o hipotético encontro de um Borges de 70 anos com ele mesmo aos 18 ou 19 anos de idade em Cambridge, em 1969 –, nada impede que se possa imaginar que todo poeta seja também outro poeta e, portanto, todos os poetas, ou ao menos os de sua predileção.

É o que faz Cortes, por exemplo, no poema “Um café com Pessoa, exatamente noventa anos depois”, que, escrito a 8 de março de 2004, tem 90 versos e comemora os 90 anos do aparecimento de Alberto Caeiro, heterônimo com que Fernando Pessoa assinou os poemas de O Guardador de Rebanhos, escritos, como ele mesmo disse, de “uma assentada” naquele dia de 1914. Nesse poema, o poeta se imagina num diálogo com Fernando Pessoa em que este é questionado a respeito do nome que lhe deram no cartório e que ele resumiu para assinar algumas de suas produções intelectuais, já que optou por assinar muitas delas com heterônimos:

“(...) O nome que comigo trago não é de minha responsabilidade
É certo, mas está certo como nenhum outro o estaria;
Pessoa somos todos, meu Caro, e todos e nenhum, o termo
Correspondente em francês, embora raro, permite-me aliás incógnito
Passear por entre a multidão de todos os tempos e lugares ... (...).

A semelhante artifício o poeta recorre em “Desencantada conversa com Jorge de Sena, na beira do tempo”:

“(...) Mudou muito o mundo, meu caro Jorge de Sena, por aqui
Nos interrogamos sobre a razão da música e de algum modo
Teu fácil e claro tempo invejamos, fluir da percussão e do sopro
Procuramos um lugar para a poesia que nos leve a ti
Seja, pois, esta ode à música singela homenagem, lembrança
Conversa com um amigo que já lá está e recordação
Vagamente melancólica dum tempo em que dizias não
Oh desejo de marciais tambores marcando a ritmo à esperança! (....)”
 

II

Na mesma linha é a reminiscência que faz de suas leituras de Teixeira de Pascoaes, com quem igualmente confessa “conversar” em determinadas horas do dia, ou seja, conhece tão bem os seus poemas e seu modo de fazer poético que consegue se exprimir da mesma maneira, ao repetir o seu tom declamatório que vem de Guerra Junqueiro, como se vê em “À porta de Pascoaes”:

“(...) A família vai-se escolhendo, poética ligação
Intuitiva nas linhas naturais nos parecendo;
Vêm os filhos em outra geração conhecendo
Por um milagre da força certa antecipação....
Não falo de genética nem de senso comum mas de poesia
-- Com Pascoaes converso e ele me acompanha nesta hora do dia”.

Essa “conversa” com poetas inclui também António Nobre, autor de Só (1892), volume único que reúne poemas escritos em Paris sob a inspiração do Simbolismo francês, sobretudo de Verlaine (1844-1896). Em “Poema para António Nobre”, Cortes procura sintetizar a vida breve do poeta:

“(...) Abriste caminhos e posições, o lugar do exílio
Deu-te particular visão do povo e do país, charneira
Diálogo que em Paris com o tempo travaste... Europeia
Integração, oh se como tu fosse hoje todo o Virgílio!” (...)

Ao final, saúda o “reencontro” como se fossem velhos amigos, que se cruzam muitos anos depois em que tanto um como outro já não são aqueles de outros tempos, apesar das expressões familiares no rosto, dos gestos conhecidos, da entonação de voz, das lembranças compartilhadas. Até porque “o homem de ontem não é o homem de hoje”, para repetir aqui ainda o que Borges escreveu em “El otro”, atribuindo a observação a “algún griego”.

Obra da maturidade, este livro de Cortes é não só um reencontro – ou uma prestação de contas – do autor com seus poetas preferidos, mas também uma homenagem ao maior de todos os poetas portugueses, a quem está reservada a última parte, “Para uma arte poética, aproximações”. São dez sonetos na forma inglesa, com três quartetos e um dueto ou um dístico, dedicados a Camões em que o poeta paga o seu tributo a uma poesia de reflexão, que é também de confissão no mais alto sentido da palavra, como diz Massaud Moisés (1928) em A Literatura Portuguesa (São Paulo, Cultrix, 1997). Como Camões, nestes poemas Cortes promove uma reflexão sobre a condição humana, reconhecendo certa inutilidade na vida, mas sem nunca deixar de ser lírico e extremamente musical.

Aliás, na contracapa, António Salvado (1936), um dos principais poetas portugueses da atualidade, compara o livro de Cortes a uma sinfonia poética – e o faz muito bem --, lembrando que “a espontaneidade e a naturalidade com as quais o discurso exploratório é entoado, privilegiando um originalíssimo (mas vigiado) ímpeto formal, mais concludentemente fazem ressaltar a riqueza intrínseca e orquestral dos seus movimentos emocionais”.

III

Cortes nasceu em Fiães, pequena aldeia perto da medieval Trancoso, terra de Gonçalo Annes (c.1500-1556), o sapateiro-profeta Bandarra, nas proximidades da fronteira com a Espanha. Licenciou-se em Economia em Lisboa, cidade onde vive desde 1971. Reside em Linda-a-Velha, freguesia de 21 mil habitantes subordinada ao concelho de Oeiras, na Grande Lisboa, que fica na linha de Cascais, fazendo divisa com Carnaxide, Algés, Cruz Quebrada e Dafundo. A maior parte de sua atividade profissional tem passado nas funções de técnico superior do Ministério da Cultura. É casado e tem dois filhos.

Embora se considere fundamentalmente poeta, tem experimentado outras modalidades, como o conto, a crônica e o artigo de opinião, tendo reunido esses trabalhos em pelo menos três volumes: Relances de Maré e Vida (Lisboa, Universitária Editora,1998), Novos Relances de Maré e Vida (Lisboa, Universitária Editora, 2003) e Viagens...Marés e Memória (Porto, Papiro Editora, 2007). Era assíduo colaborador do extinto suplemento Das Artes, Das Letras do jornal O Primeiro de Janeiro, do Porto.

Como poeta, tem outros nove livros publicados, entre os quais se destacam 33 Sonetos de Amor e Circunstância (Lisboa, Editorial Vega, 1987), O Ciclo da Casa e Outros Poemas (Lisboa, Editorial Vega, 1991), Nas Margens do Hades (Lisboa, Edições Átrio, 1993), Em Lisboa, pelo Natal...(Almada, Ulmeiro, 1995) e Poemas de Amor e Melodia (Lisboa, Universitária Editora, 1999). Tem ainda participado de antologias – uma das quais bilíngüe em português-francês --, além de ter organizado duas coletâneas – Millenium – 77 vozes de poetas portugueses (Lisboa, Universitária Editora, 2001) e outra sobre o poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973), Neruda/Cem Anos Depois (Lisboa, Universitária Editora, 2004).

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br