::::::::::::::::::::::::::::::::ADELTO GONÇALVES
A maçonaria na virada do século XVIII para o XIX

MAÇONARIA, SOCIABILIDADE ILUSTRADA & INDEPEDÊNCIA DO BRASIL (1790-1822), de Alexandre Mansur Barata. São Paulo: Annablume/Editora Universidade Federal de Juiz de Fora-MG/Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp), 2006, 338 págs. E-mail: editora@ufjf.edu.brSites: www.editora.ufjf.br  www.annablume.com.br

I

Compreender a trajetória da maçonaria e dos maçons no Brasil na virada do século XVIII para o XIX é a que se propõe o historiador Alexandre Mansur Barata em Maçonaria, Sociabilidade Ilustrada & Independência do Brasil (1790-1822), tese de doutorado em História defendida em 2002 na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e publicada pela editora Annablume, de São Paulo, e pela Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), de Minas Gerais, com o apoio da Fundação de Amparo á Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp).

Professor do Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas da UFJF, Barata já havia dado uma excepcional contribuição para o aprofundamento de um assunto pouco estudado na História brasileira com sua dissertação de mestrado, Luz e Sombras: a Ação da Maçonaria Brasileira - 1870-1910 (Campínas: Editora Unicamp, 1999). Assunto pouco estudado porque a maçonaria, tanto no Brasil como em outras partes do mundo, com exceção da França, sempre que pode dificulta o acesso aos seus arquivos por historiadores que não pertençam à ordem. E aqueles aos quais o acesso é franqueado, geralmente, não têm a isenção nem o talento e o preparo acadêmico necessários para fazer um estudo sério, isento, pouco louvaminheiro, já que pertencem aos quadros de uma instituição fechada, de caráter iniciático.

Não é o caso de Barata. Compromissado apenas com sua consciência e com a seriedade de um trabalho acadêmico de pesquisa, o historiador pôde tratar de esclarecer questões muito citadas pela historiografia, mas pouco esclarecidas, como, por exemplo, as formas de recrutamento dos maçons, suas maneiras de atuação, sua inserção na América portuguesa, a repressão em determinados momentos por parte da Coroa, as relações com a igreja católica e outras.

II

Logo de entrada, o historiador cita um personagem até hoje meio nebuloso, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, que, em 1793, estudante da Universidade de Coimbra, aos 20 anos de idade, já andava às voltas com o Santo Ofício por causa de umas declarações consideradas heréticas e por seu comportamento nas missas em que mostrava bem pouca devoção e maior preocupação em olhar para as mulheres.

O historiador fica por aqui, até porque não fazia parte de seu objetivo aprofundar-se na vida de Antônio Carlos. O que segue, portanto, é da responsabilidade deste articulista. Que Antônio Carlos sempre foi maçom, não se duvida. O que até hoje não foi explicado com os devidos detalhes é como, depois de acusado de assassinar em Santos, em 1811, ao tempo em que era juiz de fora na vila, um comerciante, membro da elite local -- o que seria um agravante -- e, pior ainda, de participar da insurreição em Pernambuco em 1817, escapou não só ileso de torturas e de morrer durante os dois anos em que esteve no cárcere, como ainda acabou nomeado representante da província de São Paulo nas Cortes de Lisboa em 1820. Era irmão de José Bonifácio, o futuro patriarca da Independência e filho de uma família bastante influente, o que pode explicar muito, mas não é suficiente.

Aliás, a devassa que acabou por inocentá-lo daquele assassinato mais pareceu um arranjo de cartas marcadas. Para escapar das pressões locais, Antônio Carlos homiziou-se na freguesia de São Gonçalo da Praia Grande de Niterói, valendo-se de suas sólidas ligações com os meios maçônicos. Lá, inclusive, participaria da fundação de uma loja maçônica para discutir ideais republicanos. Chegou a ser detido por alguns dias, mas saiu escapou também da nova devassa.

Se a influência da maçonaria não explica esses episódios, pelo menos o que fica explícito é o poder que algumas famílias adquiriram nas províncias às vésperas da separação política entre Brasil e Portugal. Já constituíam o prenúncio do poder exacerbado das aristocracias provinciais que redundariam no federalismo depois do interregno militar que marcou os primeiros anos da República.

III

Outro personagem que intriga é Francisco Alvaro da Silva Freire, de quem já me ocupei no livro Gonzaga, um poeta do Iluminismo, como bem observa Barata à pág. 67, ao me agradecer a indicação da documentação a ele referente conservada no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Esse Silva Freire, comerciante do Porto, depois de perseguido em Portugal e no Rio de Janeiro, acusado de maçom, em 1802, obteria proteção da elite negreira da Ilha de Moçambique, ao tempo em que lá vivia o poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), e até um emprego no governo local. De forma surpreendente, a partir de 1804, acabaria por se transformar em agente secreto do príncipe regente em Paris, como diz Miguel Antônio Dias em Annaes e Código dos Pedreiros Livres em Portugal (Lisboa, 1853, pp.19-20), com base em François-Timoléon Bègue [Clavel], autor de Histoire Pittoresque de la Franc-Maçonnerie (Paris, Pagnerre, 1843).

Como observa Barata, o caso de Silva Freire é paradigmático dessa sociabilidade maçônica que se traduzia numa extensa rede espalhada por vários cantos do mundo e funcionava como ponto de apoio para maçons em dificuldades. Em 1799, Silva Freire estava a bordo de um navio que atracou no Rio de Janeiro, em companhia de Vicente Guedes, filho de um grande comerciante da Ilha de Moçambique, João da Silva Guedes, responsável pelo apoio que Gonzaga recebeu logo em seus primeiros dias de desterro, ao cumprir pena por sua participação na conjuração mineira de 1789. Acusado de pedreiro-livre, Silva Freire estivera preso no Limoeiro e nos cárceres do Santo Ofício e seguia para o desterro em Goa, em companhia de outros condenados.

Quando chegou ao Rio de Janeiro, ele tratou de entrar em contato com o chanceler da Relação, Luiz Beltrão de Gouveia e Almeida, e com Modesto Antônio Mayer, ouvidor de Vila Rica, que seriam seus irmãos maçônicos. Beltrão, porém, denunciou-o, talvez para evitar problemas para si. Até porque, em Vila Rica, ao tempo da conjuração, Beltrão ocupava o cargo de fiscal da extração de diamantes da comarca do Serro do Frio e passara por suspeito de ter participado da conspiração.

Vicente Guedes e Silva Freire foram detidos, até porque com ambos foram encontrados livros suspeitos. Guedes, porém, logo foi liberado e seguiu rumo à África Oriental. Já Silva Freire permaneceu preso na fortaleza da Ilha das Cobras, no Rio. Numa das cartas apreendidas, Silva Freire dizia que pretendia chegar a Goa, de onde esperava fugir para a Europa com a ajuda da “santa irmandade”.

Só foi liberado em 1802 e seguiu viagem rumo a Goa, tendo, porém, desembarcado antes na Ilha de Moçambique, onde, por influência de seu amigo Vicente Guedes, conseguiu um emprego como escriturário da tesouraria da Junta da Real Fazenda.

Como de perseguido Silva Freire virou agente secreto do príncipe regente d.João em Paris é questão que ainda intriga. Mas não se pode esquecer que o príncipe regente vivia cercado de ministros que, às escondidas e, provavelmente, sem seu conhecimento, eram iniciados nos mistérios maçônicos. D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o mais notável de seus ministros, era um deles.

Como observa Barata, o período em que Silva Freire e Vicente Guedes estiveram no Rio de Janeiro foi justamente o momento em que a maçonaria iniciava um processo gradativo de maior institucionalização. No início do século XIX, diversas lojas começaram a funcionar, ora se filiando à Obediência francesa, ora à portuguesa. O Rio de Janeiro, a Bahia e Pernambuco se transformaram em espaços de crescente efervescência maçônica.

IV

Seja como for, a verdade é que, como observa Barata, concordando com François-Xavier Guerra, autor de Modernidad e indepencias: ensayos sobre las revoluciones hispánicas (México, Fondo de Cultura Econômica, 1993), ao se reunirem em segredo, os maçons dessa época condenavam o obscurantismo da religião católica -- pilar essencial em que se assentava o estado absolutista --, ao mesmo tempo em que aprendiam e ensinavam os fundamentos da política moderna. Embora nem todo libertino ou afrancesado fosse maçom, ou vice-versa, o que Barata mostra muito bem é que libertinagem e maçonismo são expressões desse mundo em mudança, “no qual se forjaram as bases da sociedade contemporânea”.

Ao estudar também a participação da maçonaria nos primeiros anos do Brasil independente, o historiador procura destacar que a instituição maçônica era um espaço de contradições, de ambigüidades e de conflitos e não uma instituição monolítica, de intenção sempre conspiratória, como se observa numa historiografia mais tradicional. É por isso que, diz Barata, a falência do projeto reformista-ilustrado da construção de um império luso-brasileiro e a solução pela independência com base na formação de um império brasileiro, sem romper com a legitimidade dinástica, não podem ser vistas como o único projeto no horizonte das elites políticas do período, muito menos se pode levar em conta a afirmação de que os maçons fossem em sua totalidade defensores desse projeto.

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br