::::::::::::::::::::ADELTO GONÇALVES:
O melhor de Fernando Pessoa em prosa

O BANQUEIRO ANARQUISTA E OUTRAS PROSAS, de Fernando Pessoa. Seleção e ensaio introdutório de Massaud Moisés. São Paulo: Cultrix, 232 págs., 2008.

In: jornal O Primeiro de Janeiro, Porto, ARTES E LETRAS, 28.07.08

I

Lançado em 1988, O banqueiro anarquista e outras prosas, de Fernando Pessoa (1888-1935), com seleção e ensaio introdutório de Massaud Moisés (1928), que ganhou em 2007 uma segunda edição revista, é, sem dúvida, o melhor caminho para quem, já conhecendo a poesia pessoana, quer se iniciar em sua obra em prosa. O livro constitui uma antologia do que de melhor o pensamento pessoano produziu tanto na área de estética como de filosofia e política.

Em razão da profundidade da obra e da diversidade de assuntos e setores do conhecimento alcançados pela curiosidade intelectual do poeta, o livro foi dividido em cinco partes: ficção, estética, filosofia, política e cartas de amor. Da primeira parte, consta o texto integral do conto que dá título ao livro e do poema dramático “O marinheiro”, além de excertos do Livro do Desassossego, do semi-heterônimo Bernardo Soares.

Único conto que Pessoa conseguiu dar por acabado, já que as demais tentativas resumiram-se a fragmentos, “O banqueiro anarquista” foi também o único que o autor conseguiu publicar em vida, no número de estréia da revista Contemporânea, publicação de vanguarda que veio à luz em Lisboa em maio de 1922 e durou até 1926, dirigida por José Pacheco, escandalizando a mentalidade provinciana de então com o arrojado modernismo gráfico e literário preconizado pela revolução estética dos anos futuristas da geração da revista Orfeu, que teve só dois números em 1915.

É de imaginar, portanto, que Pessoa só chegou a concluir esse conto em razão da necessidade de mandá-lo para a publicação iminente — e fez tudo em janeiro daquele ano, tanto a versão original em manuscrito como a versão definitiva datilografada. Tudo isso faz ressaltar a importância que a perspectiva de publicação iminente tem na obra dos autores, pois não são (e não foram) poucos os que, imaginando dificuldades futuras para a publicação, acabam por deixar suas possíveis obras num metafórico tinteiro de boas idéias.

O conto “O banqueiro anarquista”, nunca é demais lembrar, consiste num diálogo entre o narrador e o dono de um banco, “grande comerciante e açambarcador notável”, que se afirma anarquista. Trata-se, logo se vê, de um jogo de palavras, um oxímoro, pois impossível imaginar um banqueiro que não só seja adepto do anarquismo como ainda insista em tentar provar que suas ações são movidas por ideais libertários.

Aparente exercício de inteligência, diz Massaud Moisés, o conto encerra um dos textos mais graves e demolidores do autor, além de ser uma espécie de auto-retrato involuntário. “Se a liberdade de pensar e de sentir, e sentir tudo de todas as maneiras, era o seu lema, em O banqueiro anarquista o lema concretiza-se num de seus momentos privilegiados: com a derrubada (ou o questionamento) das idéias feitas, dos conceitos estratificados ou dubiamente lógicos, ou da engrenagem viciada que os produz, Pessoa examina até a exaustão o direito e o dever de (re)pensar questões intrincadas e mergulhar no paradoxo”, diz o ensaísta.

 

II

Massaud Moisés, em seu estudo introdutório, diz que mais do que à prosa de ficção, Pessoa dedicou-se às idéias estéticas, pois, além de criar poesia, teatro e conto, pensou longamente não só num projeto político para Portugal como em temas ligados às artes e à literatura de modo específico. Alguns desses temas, que se encontram espalhados por artigos em jornais, notas para estudos nunca concluídos ou em cartas para amigos, Moisés reuniu neste volume, recorrendo às melhores edições da prosa pessoana.

Um desses textos discute o Sensacionismo, movimento que Pessoa imaginou a uma época em que pululavam os “ismos”, especialmente o Futurismo. Não que Pessoa imaginasse que o Sensacionismo pudesse suplantar todos os demais movimentos criados até então, mas que apenas procurava aglutinar todos num só, pois todo processo criador parte sempre das sensações humanas. Afinal, dizia, “a base de toda a arte é a sensação”.

Nesse texto, enveredava-se também pelas artes da política, pois via em tudo o que o cercava — e não só em Lisboa ou Portugal, mas na Europa e no mundo — um ambiente de franca decadência, tanto a nível moral como social, semelhante ao que levara à derrocada do Império Romano. Costumava ver os homens públicos de seu tempo com pesar, insignificantes que se mostravam para o momento que o país vivia, ao mesmo tempo em que idealizava aqueles que fizeram a história de Portugal, especialmente os do Quatrocentos e do Quinhentos, a tal ponto que ainda iria escrever o poema “Mensagem”, extremamente nacionalista.
Para o poeta, a decadência portuguesa começara com a infeliz jornada de Alcácer Quibir em 1580 “e até hoje ainda não passou”, ainda que tenha tido lampejos transitórios, como a Restauração, o marquês de Pombal e o presidente Sidônio Pais, que seriam “remissões da nossa doença coletiva”.

 

III

Fechando o volume, duas cartas de amor a Ofélia Queiroz que se mantiveram durante longo tempo em estrito ineditismo. Numa delas, de 1920, já famosa, diz que não pretende casar com Ofélia porque o seu destino pertence a outra Lei, “de cuja existência a Ofelinha nem sabe, e está subordinada cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam”, o que levou críticos a supor que essa era a época em que se dedicava ao ocultismo e vivia perturbado psiquicamente, com rasgos de alucinação e de dispersão.

Na outra, de 1929, vê-se a seriedade com que Pessoa tinha a sua obra, o que, de certa maneira, deixa antever que, de alguma maneira, intuía o lugar que a posteridade reservava para a sua obra. Mas, ao mesmo tempo, mostra o quanto vivia abandonado a si mesmo, a uma vida intelectual e mística, ao seu isolamento, que, de fato, marcou toda a sua existência.

 

IV

Professor titular aposentado da Universidade de São Paulo, Massaud Moisés foi professor visitante nas universidades de Wisconsin, Indiana, Vanderbilt, Texas, Califórnia e Santiago de Compostela. Vários de seus livros dedicados à Teoria Literária constituem referência obrigatória para estudantes e estudiosos de Literaturas Portuguesa e Brasileira e têm obtido edições sucessivas, que o tornam um autor erudito de best sellers, muito diferente de autores que igualmente vendem muito, mas que não merecem ter sequer o nome citado num espaço de respeito como este. Basta ver que em A Literatura Portuguesa Através dos Textos, de 1968, obteve a sua 28ª edição em 2001, o Dicionário de Termos Literários, de 1974, ganhou a sua 12ª edição revista e ampliada em 2004 e A Criação Literária, de 1967, chegou à 19ª edição em 2005, entre outros.

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br

Textos em: Academia Brasileira de Filologia Abrafil (www.filologia.org.br)