::::::::::::::::::::::::::::::::ADELTO GONÇALVES
Anastácio da Cunha: vida breve e marcante
JOSÉ ANASTÁCIO DA CUNHA: OBRA LITERÁRIA
Maria Luísa Malato Borralho e Cristina Alexandre de Marinho (edição). Porto: Campo das Letras, v. 1, Poesia (com inéditos do autor), 2001, 261p.;
v. 2 (com inéditos do autor), 2006, 393 p.
E-mail: campo.letras@mail.telepac.pt

Cinco anos depois de lançar o primeiro volume da Obra Literária, de José Anastácio da Cunha (1744-1787), a Campo das Letras, do Porto, acaba de colocar nas livrarias o segundo volume com inéditos do autor, num minucioso e magnífico trabalho de pesquisa das professoras Maria Luísa Malato Borralho e Cristina Alexandra de Marinho, ambas da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Segundo as autoras, ainda está previsto o lançamento de um terceiro volume, que incluirá, entre outros trabalhos, a polêmica em torno da matemática que Anastácio da Cunha travou com o ex-jesuíta José Monteiro da Rocha (1734-1819), que viveu muitos anos em Salvador, na Bahia, e ficou famoso por sua contribuição para a reforma da Universidade de Coimbra e, em particular, pela criação do Observatório Astronômico da Universidade de Coimbra.

Será, com certeza, o coroamento de um trabalho que começou em 1999, quando a professora Maria Luísa Malato Borralho encontrou composições inéditas do autor em Braga, num manuscrito que pertencera ao conde da Barca, e prosseguiu até 2003, quando descobriu nos arquivos londrinos do King´s College cópias que lhe permitiram preencher lacunas ou rasuras de cópias portuguesas.

Anastácio da Cunha foi poeta e tradutor, além de militar e professor de Matemática da Casa Pia de Lisboa. Vítima de perseguição que o levou aos cárceres da Inquisição e a uma reclusão penitenciária na Congregação dos Oratorianos, morreu amargurado, depois de uma breve vida marcada por episódios dramáticos.

Filho de pais humildes, foi educado pelos padres da Congregação do Oratório na Casa das Necessidades, de Lisboa, onde hoje está instalado o Ministério dos Negócios Estrangeiros, que desenvolvia uma notável ação pedagógica, tendo à frente os padres Joaquim de Foios e Teodoro de Almeida, que também exerceram influência sobre outro grande poeta setecentista, Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805).

Ainda jovem, Anastácio da Cunha chegou ao posto de tenente do Regimento de Artilharia do Porto, aquartelado em Valença do Minho, lá permanecendo de 1764 a 1773, tempo em que teria se iniciado nos mistérios maçônicos e na leitura de autores proibidos como Voltaire. Depois, exercendo funções docentes em Coimbra de 1773 a 1778, pode ter exercido influência decisiva na instalação de uma loja maçônica coimbrã, como se lê em História da Maçonaria em Portugal: das origens ao triunfo, de A. H. de Oliveira Marques, v. 1, p. 43 (Lisboa, Editorial Presença, 1990).

Em julho de 1778, seria detido pela Inquisição, acusado de fazer “leituras e traduções de autores ímpios”. E do auto-de-fé, o último a ser realizado em Portugal, sairia condenado, entre estudantes e militares ou ex-militares de Valença. Proibido de voltar a Valença e a Coimbra, viveu três anos de reclusão na Congregação dos Oratorianos, seguida de quatro em Évora, além de ter tido seus bens confiscados, inclusive seus livros.

Sem nunca ter tido a oportunidade de sair de Portugal, Anastácio da Cunha sabia ler em castelhano, italiano, francês, inglês, latim e grego. Mas não teve o seu talento reconhecido pelo mundo oficial: a Academia Real das Ciências de Lisboa, fundada em 1780, nunca o convidaria para seu sócio honorário ou correspondente. Solteiro, morreria de doença provavelmente contraída no cárcere, deixando a mãe na indigência, a viver de esmolas. As suas obras, copiadas pelos amigos, não as chegaria a ver em letra de imprensa.

A edição da obra literária de José Anastácio da Cunha, preparada pelas professoras Maria Luísa Malato Borralho e Cristina Alexandra de Marinha, é a terceira que saiu à luz até hoje e reúne, no seu primeiro volume, não só o corpus das edições anteriores, mas também textos que permaneceram inéditos ou andavam dispersos. Além do ensaio biográfico de 50 páginas escrito por Maria Luísa Malato Borralho, que dá à luz com pesquisas de arquivo muitas novidades, o volume contém as composições em verso do autor, inclusive textos originais.

Já o segundo volume reúne agora traduções, como “Notícias Literárias”, ensaio em prosa, e “A Voz da Razão”, composição apócrifa que alguma tradição lhe atribui, e poemas de autores alemães. Embora não soubesse ler alemão, é provável que os tenha lido em inglês ou francês e dessas línguas traduzido. Segue um trecho da tradução que fez de um poema de Salomon Gessner (1730-1788):

Eu amo, eu amo, minha bela Doris,

Daquele mesmo modo que se amava

Antes que a boca suspirar soubesse ,

E que o mundo avistasse horrorizado

Do juramento falso a cruel arte. (...)

Segundo as autoras, ainda que algumas composições, como “Carta a Doris”, nunca tivessem sido descobertas e outras, como a tradução da tragédia “Mahomet”, tenham sido editadas sob anonimato, este segundo volume não pode ser considerado como de menor importância em relação ao primeiro.

Compreende-se a preocupação das autoras, pois há ainda quem considere a tradução um trabalho menor, já que o que se lê é, em última análise, um texto de segunda mão. Até hoje, a tarefa da tradução é trabalho mal remunerado, o que, muitas vezes, leva editoras, de olho nos custos, a contratar tradutores pouco capacitados.

No século XVIII, porém, essa idéia de mercado não existia. Nem havia grande rigor e fidelidade ao original, pois o que os tradutores mais talentosos o que faziam era um trabalho de recriação. Muitas vezes, chegaram a superar em beleza o texto original. São os casos de Bocage e Anastácio da Cunha.

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br