ADAUTO NOVAES
O intelectual, hoje
APRESENTAÇÃO DO CICLO DE CONFERÊNCIAS
" O SILÊNCIO DOS INTELECTUAIS"
http://www.cultura.gov.br
Já se disse, de maneira reiterada, que vivemos hoje uma crise sem precedentes . Política, cultura, valores morais, estética, noções de espaço e tempo, relações entre o público e o privado, paixões, enfim, não há atividade humana que não passe por revisão. A grande novidade em relação às crises anteriores é que, desta vez, torna-se quase impossível imaginar o futuro. É como se fosse impossível deduzir algo do passado uma vez que o presente se dá como 'inteiramente novo', reconstruído aparentemente sem referências. Abole-se aquilo que o poeta e ensaísta Paul Valéry definiu como as duas maiores invenções da humanidade, o passado e o futuro, em nome de um "presente eterno", abrindo espaço para uma nova Civilização que não sabemos nomear ainda. Quando tudo aquilo que uma civilização cultivou como 'virtude' na ordem do pensamento, do senso comum, dos sentimentos e da política transforma-se em seu contrário, em um 'mal', essa civilização não se reconhece mais. Assim escreve Valéry: "Vimos, com nossos olhos, o trabalho consciencioso, a mais sólida instrução, a disciplina e a aplicação mais sérias adaptadas a espantosos desígnios. Tantos horrores não teriam sido possíveis sem tantas virtudes. Foi preciso, sem dúvida, muita ciência para matar tantos homens, dissipar tantos bens, aniquilar tantas cidades em tão pouco tempo; mas foram necessárias também não menos qualidades morais. Saber e dever, sois portanto suspeitos?"

Mais do que atribuir moralmente todos os males ao criador de "saberes e deveres", Valéry quis localizar o intelectual como parte de uma crise que ele mesmo ajudou a criar.

É preciso deixar claro que ao propor um ciclo de conferências centrado na figura do intelectual não pretendemos fazer uma crítica moral a esse trabalhador, difícil de ser definido, que foi - e é - muitas vezes ridicularizado. Esse novo ciclo não faz coro com a moda 'antiintelectualista' do momento. Trata-se de entender qual foi o papel histórico desse personagem e quais são suas funções hoje, o que equivale, de certa forma, a tentar responder a questão: estaríamos vivendo hoje um segundo momento daquilo que Julien Benda definiu, nos finais da década de 20, como a traição dos clérigos, isto é, a morte do intelectual desinteressado e o surgimento desse 'novo clérigo' submisso à vontade de potência, ao dinheiro, ao prestígio e ao poder?

O que é o intelectual?
“...uma parte de nós mesmos que não apenas nos desvia momentaneamente de nossa tarefa mas que nos conduz ao que se faz no mundo para julgar e apreciar o que se faz” - Maurice Blanchot
Antes, é preciso definir quem é o intelectual.

Sabe-se que ele não é, necessariamente, o homem de letras, o artista, o político, o historiador, o filósofo, o escultor, o sábio etc., ou seja, sabe-se que nem todo homem de letras, nem todo artista, nem todo político etc. é intelectual, o que não significa que um deles não possa vir a ser. Penso, aqui, na definição de Maurice Blanchot: o intelectual é “uma parte de nós mesmos que não apenas nos desvia momentaneamente de nossa tarefa mas que nos conduz ao que se faz no mundo para julgar e apreciar o que se faz”. Não existe, portanto, essa figura do intelectual em tempo integral ou inteiramente intelectual. Para transformar-se em intelectual, o ser deve desdobrar-se, acumular momentaneamente nele mesmo outras funções, deixar de lado os saberes particulares para se dedicar ao trabalho da crítica e à luta pelos ideais universalizantes: Razão, Justiça, Liberdade e Felicidade. Daí o intelectual se caracterizar pelo desvio a todo determinismo e lidar com potências indeterminadas. Ele não é o teórico, muito menos o homem da vida prática e do saber objetivo: pode-se dizer, mais precisamente, que ele encarna o espírito crítico, capaz ao mesmo tempo de reconstruir o passado e construir idealmente o futuro. Já no seu surgimento no século XIII, “momento decisivo na história do Ocidente”, como nos lembra Alain de Libera, o intelectual medieval seria definido pela contraposição: “o intelectual é o ator da mudança social; o universitário, um espectador indiferente”. Uma contraposição primordial que deve ser vista com nuances, no entanto: “o intelectual não se renega pelo simples fato de ser universitário, e não basta ‘tomar suas distâncias’ em relação à universidade para ser um intelectual”. Essa é uma das fragilidades do conceito gramisciano de “intelectual orgânico”, funcionário a serviço da Igreja, do Estado ou do Partido. Entre o bispo e o príncipe, o intelectual cria o seu espaço. Em relação à Igreja, marca sua diferença quando o homem abandona a idéia de que Deus pensa em nós, anunciando o começo do fim de uma inteligência impessoal. Em relação ao príncipe, ele estabelece novos vínculos políticos com a comunidade.

A matéria do intelectual são, pois, dois abismos, a ordem e a desordem do mundo e das coisas. O intelectual é, enfim, aquele que tenta infatigavelmente construir a si mesmo e a todas as coisas através de atos articulados do espírito. Mais: por encarnar os ideais universais, procura reunir em si o que está disperso, “Dispersão e junção, essa seria a respiração do espírito, o duplo movimento que não se unifica, mas que a inteligência tende a estabilizar para evitar a vertigem de um aprofundamento sem fim”. O intelectual seria, pois, uma espécie de “matemático que trabalha com símbolos e os combina com certa coerência sem nenhuma relação com o real”. Assim, ele está, como lembra ainda Blanchot, tanto mais próximo da ação e do poder, quanto mais não se mistura com a ação e com o poder político. Ao mesmo tempo, ele não pode ser um desinteressado da política: “Afastado da política, não sai dela, mas tenta manter esse espaço de afastamento e esse esforço de retirada para aproveitar essa proximidade que o distancia a fim de se instalar nela (instalação precária) como um guardião que está lá apenas para velar, manter-se alerta, por uma atenção ativa onde se exprime menos o cuidado de si do que o cuidado dos outros”.

Talvez a clássica divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual não dê mais conta da complexidade do tema. Divisão datada do século XIX, quando a função do intelectual começou a ser reconhecida, em grande parte como conseqüência do affaire Dreyfus, a partir do qual escritores passam a ter grande papel político tanto pelo renome, quanto pelas obras: Victor Hugo, Zola e Lamartine devem ser lembrados. Destacadamente, Marx, que dedicou boa parte de sua reflexão à divisão do trabalho e à definição de um conceito pouco discutido, hoje, nos meios acadêmicos, que, em tempos de domínio da tecnociência, merece nossa atenção: a alienação, chave da diferenciação entre intelectual e trabalhador intelectual. Como isso se dá? É evidente que o trabalhador intelectual distingue-se do trabalhador manual pela maior educação formal, pelos títulos acadêmicos e pela sua posição nas divisões de classe e trabalho, enfim, ele é o “servo vaidoso”, como escreveu um pensador americano. Podemos, por exemplo, identificar o trabalhador intelectual na figura do publicitário, que vende uma marca de sabão ou um candidato político. Então, nessa tarefa, ele difere muito pouco do trabalhador manual que, por dever de ofício, não domina a totalidade da produção, ou seja, é um especialista, e isso diferencia ambos, em essência, do intelectual que procura, permanentemente, fazer relações com as demais áreas da atividade e da existência humana. Ao contrário deste, a marca mais forte do trabalhador intelectual está na separação consciente entre meios e fins, isto é, a separação entre a ciência e a técnica, de um lado, e os valores, de outro. É comum ouvi-lo dizer: pensei a bomba, mas quem a detonou foi o militar ou o político. Ele é o cultor do mito da ‘neutralidade’ científica, que o permite abandonar os ideais universais em troca da defesa dos interesses imediatos e práticos. Essa questão se põe até mesmo no insuspeitável campo da filosofia, como afirma, em tom amargo, o filósofo Jacques Bouveresse: o que se tornou impossível ou inaceitável não é a filosofia, mas o que os ‘especialistas’ fizeram dela.

Ora, se a situação do intelectual hoje é complicada, se sua condição está em cheque, é porque ele fez uma série de escolhas que o conduziram a isso. Vejamos, de maneira sucinta, algumas delas:

A primeira e uma das mais importantes é a apontada pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk: pensando a revolução, o intelectual contemporâneo errou de alvo: ela estava sendo conduzida não pelo proletariado, mas pela técnica. No fim, o jogo foi feito, a revolução aconteceu e os intelectuais revolucionários não perceberam o que se passava. Muitos elementos nos levam a crer, escreve Sloterdijk, que deixamos o espaço das revoluções políticas para entrar no das revoluções técnicas e mentais – o que obrigatoriamente põe fim ao papel clássico do intelectual. Sloterdijk acerta no diagnóstico, mas deixa muitas dúvidas quanto ao significado do termo ‘intelectual’, uma vez que, para ele, “o revolucionário profissional hoje é o designer ou o consultor, e suas missões não têm nenhuma relação com o antigo estatuto do revolucionário profissional no seminário de filologia e de sociologia”. No mesmo sentido, Jacques Derrida vai mais longe: para ele, a “alta tecnologia” ou a tele-tecnologia faz de cada trabalhador, “cidadão ou não”, um ‘intelectual’: “Deduzo, a partir daí, que, exceto traindo sua ‘missão’ (nova traição dos clérigos), um intelectual reconhecido jamais deveria escrever ou tomar a palavra publicamente nem ‘agir’ em geral sem pôr em questão o que parece dispensar explicação, sem procurar associar-se aos que se vêem privados do direito à fala e à escrita, sem exigir isso para eles – diretamente ou não. Daí a necessidade de escrever em outros tons, de mudar os códigos, os ritmos, o teatro e a música... Não acredito dever abrir mão das responsabilidades, dos deveres e dos poderes que ainda me são, a título de ‘intelectual’, reconhecidos”.

Pode-se verificar, hoje, a ‘segunda traição dos intelectuais’ na relação que esses têm mantido com os novos meios de comunicação, em particular os audiovisuais, aos quais costumam atribuir equivocadamente sua própria crise e a do pensamento. Tal postura é no mínimo uma indelicadeza dessa ‘República’ que deve grande parte do seu prestígio à relação que mantém com a televisão. Relação essa que, em si, não é o problema, mas que se transforma nele quando o intelectual se submete à lógica dos meios, traindo os princípios universais de luta da Razão, da Liberdade, da Justiça e da Felicidade. Ao contrário, quais são os temas que os intelectuais são convidados a discutir, hoje? Poder, luta de interesses, economia doméstica, jogos amorosos... Lemos na introdução ao Tratado da natureza humana, do filósofo David Hume, uma passagem que define perfeitamente a questão: “As discussões multiplicam-se, como se houvesse apenas incerteza. Em toda essa agitação, não é a razão que ganha, é a eloqüência; encontram-se defensores do proselitismo para as mais extravagantes hipóteses se forem bastante hábeis para pintá-las com cores favoráveis. A vitória não é garantida pelos soldados em armas... mas pelas trombetas, tambores e músicos do exército”. Não é preciso dizer quem são os músicos. Em um texto sobre as razões de certa ‘decadência’ da filosofia, que, em última análise, é um libelo sobre a decadência intelectual, Jacques Bouveresse escreve: “Os intelectuais não perdem a ocasião de relembrar que a escravidão e outras instituições consideradas hoje como inteiramente inaceitáveis foram durante muito tempo descritas e aceitas como ‘naturais’ e inevitáveis. Mas a idéia de que as injustiças e as desigualdades por vezes escandalosas que reinam na sua própria sociedade resultem simplesmente da natureza das coisas habitualmente não os incomoda. É a razão pela qual os intelectuais de esquerda que enchem a boca com as palavras ‘democratização’, ‘descentralização’, ‘autonomia’, ‘multiplicação dos centros de decisão’ etc. achem, no final das contas, inteiramente normal, no seu próprio domínio, que o essencial do poder seja concentrado nas mãos de algumas dezenas de ‘intellocrates’”. Os ideais de igualdade e justiça e o direito à crítica são sempre bons para as outras profissões, nunca para a própria.

Outro problema posto aos intelectuais por eles mesmos foi a instauração do reino do relativismo. Certa tendência estruturalista da década de 70 levou a desqualificar, em nome de poderes anônimos, todo trabalho intelectual que buscasse certa universalidade. No famoso texto Os intelectuais e o poder, diálogo entre Foucault e Deleuze, lemos, por exemplo, que os intelectuais descobriram, enfim, “que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muitíssimo bem. Mas existe um sistema de poder que barra, interdita, invalida esse discurso e esse saber”. Mais radical é a tese: “Não temos que totalizar o que só se totaliza do lado do poder, e que só podemos totalizar, do nosso lado, restaurando as formas de centralismo e de hierarquia. Em contrapartida, o que temos a fazer é chegar a instaurar as ligações laterais, todo um sistema de redes, de bases populares”. Luta “não por uma tomada de consciência (há muito tempo que a consciência como saber é adquirida pelas massas, e que a consciência como tema é tomada, ocupada pela burguesia)... mas pelo poder”. A teoria deve ser, pois, local e regional, não totalizadora. E certamente, também, o poder. O texto Os intelectuais e o poder sugere pelo menos dois grandes problemas, além da evidente destituição do objeto do intelectual que são os universais: como definir esse sujeito impessoal (as massas) e como lidar com uma teoria que abole uma das noções fundantes do pensamento clássico, a subjetividade consciente e voltada para a ação? Ora, esse sonho de comunidades autônomas da década de 70 parece não ter prosperado. Mais: a própria idéia de comunidade é desacreditada pelo ceticismo estabelecido e, de certa forma, a recusa contemporânea da razão é uma expressão disso. Nesse sentido, Bouveresse aponta que a concepção reinante hoje “é a de grupos humanos reunidos em um espaço e por um tempo limitados por um sistema de convenções arbitrárias, cambiantes, e funcionando de maneira mais ou menos tirânica. O estruturalismo conseguiu combinar de maneira expressiva os três ingredientes que são os mais susceptíveis de seduzir um homem tão instruído e desabusado como o de hoje: o determinismo psicológico, sociológico e cultural, o relativismo e o cientificismo. É, aliás, em grande parte por causa da impressão que ele dá de ser nitidamente mais ‘científico’ do que seus adversários que o relativismo extremo conhece hoje um sucesso tão considerável”.

O ceticismo é, pois, outro tema posto pelos e para os intelectuais hoje. Dele, é possível selecionar várias expressões: desde o ‘tudo se equivale’ até a manifestação explícita de que não é mais possível dizer o que é verdade. Paul Veyne, historiador de renome, afirma, por exemplo: “As ciências não são mais sérias do que as letras e, uma vez que em história os fatos não são separados de uma interpretação e que se pode imaginar todas as interpretações que se quiser, o mesmo pode acontecer com as ciências exatas”. Conformismo desse tipo não deixa de ser um traço marcante entre os intelectuais contemporâneos.

Mais do que conformismo, a Escola de Frankfurt assinala contradições do intelectual contemporâneo, cujas conseqüências são trágicas: cortado da vida prática, “dedicado às coisas do espírito”, arrisca-se a cair no vazio; ligado à “ingênua e mentirosa importância dada aos produtos intelectuais da indústria da cultura, acrescenta novas pedras que a isola do conhecimento”. Adorno conclui em um dos fragmentos da Minima moralia: os intelectuais são ao mesmo tempo “aproveitadores dessa medíocre sociedade e aqueles cujo trabalho inútil determinará, apesar de tudo, o êxito de uma sociedade liberada do utilitarismo – contradição inaceitável que é preciso superar de uma vez por todas”.

Mais melancólica é a posição de Walter Benjamin: o intelectual tem “preguiça no coração”, tristeza, a “acedia” que o torna mudo porque sabe com quem, necessariamente, entra em relação: o vencedor e seu espólio, que ele define como bens culturais. Qualquer intelectual que professe o materialismo histórico só pode visualizá-lo à distância, o distanciamento de que fala Blanchot. Foi nesse sentido que Benjamin escreveu o célebre axioma: “Não existe documento de cultura que não seja documento de barbárie. E a mesma barbárie que os afeta também afeta o processo de sua transmissão de mão em mão. Eis porque, sempre que possível, o teórico do materialismo histórico afasta-se deles. Sua tarefa, acredito, consiste em escovar a história a contrapelo”.

Adauto Novaes foi jornalista e professor. Estudou filosofia na França. Foi diretor, durante 20 anos, do Centro de Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional de Arte/Ministério da Cultura. Organizou – entre outros – os seguintes ciclos de conferência, que depois viraram livros, a maioria editada pela Companhia das Letras, nos quais publicou ensaios: Os sentidos da paixão, O olhar, O desejo, Ética, Tempo e História (Prêmio Jabuti), Rede imaginária – televisão e democracia, Artepensamento, A crise da razão, Libertinos/libertários, A descoberta do homem e do mundo, A outra margem do Ocidente, A crise do Estado-nação (Record), O avesso da liberdade, O homem máquina, Civilização e barbárie e Muito Além do Espetáculo (Editora Senac São Paulo).