TITO IGLESIAS

Um naco onomatopaico,
inspirado no som da máquina de modelar próteses poéticas (*)

In: Revista da Academia Brasiliense das Letras, Brasília, nº 14, 1995

Aquela Vénus de Milo tinha a boca cheia de rimas inaudíveis e de invisíveis grainhas de uva. Porque as cuspia - a cada cinzelamento do nervoso escultor - de braços não carecia... Assim, eram os decepados braços cúmplices do vôo das grainhas. E também, antes e após cada golpe, se escutavam, ritmicamente, as escondidas rimas.

Mas por que esborrachei eu cinco formigas sobre o branco tampo marmóreo por onde corriam? E por que só essas cinco, no ziguezague do acuso, na laboriosa fila? Teria ocorrido pelo contraste da cor, ou pela sua irritante mobilidade perante a sempre sólida e fria impassibilidade do mármore? Mistérios numéricos ocultos no interior da mente e acionando os inconstantes dedos do instinto...

Absortos, alguns filósofos gregos limpavam os seus dentes incisivos, à sombra do Partenon, com os palitos obsessivos das ideias, Mas não os caninos, para os quais reservavam, coerentes, um osso hedonista,.. Criação consiste - ó bárbaros e passivos povos, espectadores de TV - em palitar os dentes brancos de uma página em branco, na brancura de um livro, com ideias agudas! E, como exemplo, em umedecer e plantar, no nada, as fecundas sementes caídas da imaginação de lusos surrealistas (Cesariny, Cruzeiro Seixas, António Maria Lisboa & Poucos Mais, pois vários outros apenas embusteiros flibusteiros terão sido!).

Um urso pesado, do porte de um granadeiro, calcou, para sempre, há muitos lustros, a débil planta jovem que seria o primeiro pinheiro de Natal, da idade adulta, de minha tia. Tia tristíssima para toda a vida, sabedora que a pata do passado esmagara o que seria a sua verde arvorezinha privativa. E tia para sempre séria, formando docilmente fila para a sua ração diária de melancolia.

Mas não sejamos torrenciais, neste "cadavre exquis", ó meu irmão siamês! No parágrafo que a mim me cabe, a seguir, tornar-me-eí sintético: sobre a alvura de uma calvície (definição de cogumelo), eis um chapéu-de-chuva conservadoramente preto.

Ao entardecer, ratos ociosos vinham às amuradas do sótão e às bibliotecas municipais de Lisboa, após consultar e roer as páginas amarelas, tocar violino. Rato (mas só mentalmente) rima bem com o verbo roer. E aqueles ratos sábios roíam cordas até se fartarem, mas não eram os ratos do rei da Rússia. Mas certa aluna - aquela mulher jovem e branca, de cabelos negros - era qual violino, ondulado pela volúpia, que o velho professor de música não sabia tocar. Nem roer. Autocrítica (apalpando o tecido de veludo do verbo tocar): com algum requinte linguístico, tanger soa mais canoramente. E é mais peculiar de violino. Mesmo para quem só, como eu, efectua, como artífice, ninhego e galego, simples obturações de poemas antigos. Mas que nunca pretende ser articida.

Naquele cantão com brasão, em todos os vigésimos sextos dias de cada mês, atrás de um biombo pudico permitiam locar bombo sobre o chapéu-de-coco do Presidente (com todo o respeito) da República. Bosta deveria ser escrita sempre com letra maiúscula! - digam-no à míope, ou melhor distinguindo, míope ratazana Eustáquia, que circula pela Baixa com pretensões de jornalista. E o vocábulo ratazana, no meu entender, por seu asqueroso pêlo molhado, próprio dos esgotos ulissiponenses (nunca uma cloaca atraiu para suas águas adjetivo de tamanho esmero) bem poderia ser acentuado. Assim: ratazana, perfidamente esdrúxula... Zénite, zircónio, zoófago e zoógrafo são palavras acentuadas pelo z, ou pelo acento ngudo? E, perante tal modo de zunir, ou de zurrar, melhor não seria "azentuadas"? - interrogo-me, com modéstia, meditando na minha tardia arte de bem inventar a toda a sela.

Surrealismo, ó académicos de peludas mãos vendadas e de brancos joelhos ocultos, nãoé, admitam-no, piromania! E, num arquipélago próximo, seria Gauguin um doente no percurso finnl? Ou, afinal, não um paciente mas um pincel? Pincel bebendo, como um cavalo, na sua paleta. Ou pincel molhado em cores quentes? Ó puristas, com vossas gigantescas borrachas de apagar erros ortográficos do proletariado, debaixo do braço! As minhas sinistras assdciações de ideias forçaram-me a fundar, na Polinésta, a Associação dos Leprosos Mentirosos...

Continuo marchando, a passo de ganso, obliquamente, pelo passeio, sobraçando uma régua compridíssima, em direção à rubra frente de batalha. Mas que farei eu com esta verde boina de pára-quedísta sobre o crânio, senão agarrar-me a ela - cheia já de ar - no momento da queda? E não quero proteger-me, eu juro, com as boinas das idéias feitas, nem arrastar-me, coxeando, pelas bermas da literatura, com o auxilio das muletas dos lugares-comuns. Mas, na verdade, prosseguirei eu, solitário, embora a duas mãos, escrevendo este texto sem policiamento? - o potente motor da motocicleta do surrealismo. E não constituirá já esta íntima interrogação -xinquiridora - um súbito desvio do puro jorro de criação artística?

Espiritualmente, eu, que jamais fui a Buenos Aires, apesar da minha permanência e proximidade no Rio Grande do Sul, ia conduzindo pelo braço Jorge Luís Borges (que também - tal como eu - não logrou um Nobel), ao longo da Calle Florida, muy florida. Florida qual aquela longínqua parede de subúrbio, ensanguentada por palavrões. E também por bolas e riscos obscenos. De quando em vez, tropeçávamos nas consoantes, chocávamos contra a afiada esquina das sílabas, onde havia uma barbearia. Para alardearmos descontracção e confiança, íamos Jorge Luís e eu assobiando canções castiças, na penumbra. Não queríamos admitir que ambos estávamos cegos. Pretendíamos, no nosso íntimo, ser o guia um do outro... E que canções continuávamos assobiando pelos ruas e praças de Buenos Aires, inspirada e sentidamente, mesmo sem enxergar, no trajecto, o velho armazém rosado? E não será óbvio? Por Buenos Aires adiante... Não adivinha, leitor circunspecto? Mas que se poderia assobiar na famosa cidade do Rio da Prato senão czardas!

As czardas do escultor dinamarquês Mário de Sá-Carneirol (E como vos deslumbrará esta minha policultura). Moral do naco, mesmo sem molho de onomatopéia: a policultura - que é policresta - produz-me polifagia...

E Camões cogitava, na cidade do Castelo de S. Jorge, numa estátua-ventilador que, sempre que folheassem vertiginosamente "Os Lusíadas", perante as desinteressadas e sonolentas pálpebras reais, varresse, em torno, os inúmeros imbecis da corte... Isto, antes de o poeta ter estátua e de ser praça,..

Antes que se sorteassem, entre as ossadas anónimas, aquelas a transferir para o Mosteiro dos Jerónimos. E que se apunhalassem, em suas carteiras de madeira, indefesos jovens, virtuais amantes de poesia. Obrigando-os a retalhar, anatomicamente, estrofes inteiras em orações gramaticais. Como que aproveitando aquele pulcro corpo de poesia, estendido já sobre o mármore da imortalidade, para efectuar a sua autópsia. Antes que muitas figuras históricas de Portugal fossem pintalgadas de vermelho e outras cores, após Abril, pelos anões da política a da revolução. Parcialmente cego, devido a certeiro golpe desferido pelo materialismo dos seus contemporâneos, pedia Luís de Camões esmola no Chiado, junto à Leitaria Garrett, ambos nomes de poetas posteriores, alimentados pelos fartos seios dos anacronismos...

Hoje, loja trespassada, apenas uma "boutique", onde se entra e não se permanece. Ou um belo sarcófago luso, repleto de recordações dos ex-frequentadores, onde a memória deles permanece envolta em faixas de branco linho e perfumada por desconhecidas ervas aromáticas. Encerrada há muitos anos (lia-se antes, imodestamente, num letreiro: "Esmerado serviço de chás e torradas"), mas, oniricamente, propriedade minha e do Vitorino, o qual muito ali namorou (então, quase ninguém sabia que éramos poeta e cantor). Propriedade também dos alunos de Belas Artes, de Lisboa, hoje pintores conhecidos, como o Batarda e vários mais, que, antes do naufrágio solar, se agarravam à jangada de uma torrada com manteiga.

E quedo permanecia, quase sempre, em sua mesa o João das Baratas - o doutrinador da "Garrett", com sua tímida atração por miúdas e seu humor subtilíssimo. Denominado "das Baratas", porquanto dedicava 0,5% do seu tempo de ócio e de riso à nobre e incompreendida arte de desinfestar casas alheias com um insecticida eficaz contra baratas, cuja fórmula herdara do pai.

"Depois das três da tarde" - insinuavam-lhe sobre as chávenas - "todas as baratas são pardas..."

Camões passava, de novo, à porta, vindo da Rua Ivens. E suplicava: "Troco um soneto por um copo de leite... Ou uma estrofe por uma torrada!"

Praia do Vau, 16/12/1993.

(*) Impossível avaliar-se exatamente as dimensões vertiginosas da geração do "Orpheu" (seja: o Modernismo português) sem a presença do Raul Leal, que relacionou seu nome ao do profeta heterodoxo Enoch e, a par de Sá-Carneiro ou Fernando Pessoa, representa com lucidez a megalomania astral e o mental esotérico, além de qualquer desespero ou mero formalismo. Quanto a Tito Iglesias, também com lucidez e pertinácia voz destacada em poesia, é um espanhol culturalmente lusitano; nasceu em Compostela, vive em Lisboa e, durante os quase dezassete anos que permaneceu no Brasil, empenhou-se em divulgar alguns dos grandes vates portugueses deste século; suas criações possuem nítidas estrias surrealistas.
 
 
Tito Iglesias. Poeta em Português de nacionalidade espanhola, residente em Paço d'Arcos (Lisboa), de teor surrealista, com larga vivência no Brasil. Membro da Academia Brasiliense de Letras.