Nova Série

 
 

 

 

 

 

Pedro Foyos........

Augusto Cabrita, o repórter do silêncio

A antiga Alameda Augusto Cabrita, no Barreiro, adquiriu o belo nome de Passeio Ribeirinho Augusto Cabrita. Li num jornal há tempos que a população barreirense está feliz com este espaço da zona ribeirinha do Tejo — um espaço aprazível, repousante, onde apetece de facto passear. Onde me apeteceria passear com o meu velho amigo Augusto Cabrita, o artista e o repórter, ambos com um sentido instintivo do mundo enquadrado no formato 30 x 40, de preferência horizontal, porque é o mínimo que devemos conceder ao voo de uma gaivota. Julgo não errar afirmando que ninguém fotografou e filmou tanto o Tejo — e as gaivotas! — como Augusto Cabrita. Em quantidade e sobretudo em qualidade.

Na transição do século passado para o atual extinguiu-se da memória coletiva a geração dos grandes românticos da fotografia portuguesa. Os últimos foram precisamente Augusto Cabrita e José Antunes. Outros nomes (cito tão-só os que já partiram) como Fernando Vicente, António Paixão, Manuel de Sousa e Amadeu Ferrari, entre outros, talvez nada digam às gerações mais novas. Contudo, anteciparam-se a padrões artísticos futuros – modernos, hoje – e as suas obras continuam a ser uma festa quando revivem numa ou noutra retrospetiva que alguém se lembre de empreender.

Não pode falar-se dessa geração sem evidenciar ao mesmo tempo o espírito de remarcada simplicidade que a caracterizava. Homens solidários, generosos, leais, quase pediam desculpa por nos deslumbrarem com o seu talento. No apego profissional, o seu dia-a-dia pautava-se por uma extrema modéstia. Ensinavam os mais novos com a felicidade de quem lega frações da própria vida e faziam-no com a alegria humilde dos grandes. Os jovens chamavam-lhes "mestres", uma expressão caída em desuso porque, entretanto, os jovens tornaram-se suficientemente jovens para saberem tudo. 

Augusto Cabrita foi um dos últimos desaparecidos dessa escola veterana e porventura o que mais se notabilizou pela sua sensibilidade e uma obra imensa com raízes na fotografia e ramificações inovadoras no cinema e na televisão.

Quando Ramalho Eanes, enquanto Presidente da República, o distinguiu com uma comenda, Cabrita, no final, comentou com alguns dos seus pares em surdina bem-humorada: «Encomendado já estou… Só me resta aguardar o momento da expedição...»

Aconselhava os novos a exercitarem o olhar e os reflexos. Angustiava-o ver jovens repórteres enredados em aparatosos equipamentos, com grandes teleobjetivas, filtros, tripé... «Carregam tanta coisa», dizia, «que não sobra espaço para a emoção». 

Também ajudou a revigorar a mudança de rotinas e procedimentos discricionários nas Redações. Seria impensável nos dias de hoje que uma reportagem fotográfica aparecesse publicada sem menção do autor. Os jovens repórteres deverão saber que nem sempre foi assim. Apenas no último quartel do século XX começou a aceitar-se, num processo iniquamente ronceiro, o fim do anonimato a que estavam condenados esses profissionais nos jornais e revistas. Em tempos mais recuados observaram-se exceções, porém confinadas às "grandes vedetas". Orgulho-me de ter sido um dos primeiros jornalistas em Portugal na luta tenaz e repleta de episódios indizíveis contra diretores e chefes cujas pias cabeças embrutecidas por estéreis rotinas repeliam com sorrisos broncos a ideia de o fotógrafo figurar numa reportagem a par do nome do redator. Antecederam-me nesse pioneirismo, ainda na transição dos anos cinquenta para sessenta, o excelso Augusto Cabrita e outros repórteres d'O Século Ilustrado, então dirigido por Francisco Mata (nomeio apenas Augusto Cabrita porque em justiça importa ficar lavrado ter sido ele – testemunhei – o primeiro a bater o pé). Nessa época eu praticava a subtileza de escrever no final dos textos, entre parêntesis: (Fotografias de Salvador Ribeiro) — era o fotógrafo que invariavelmente me acompanhava. Mas teria de ser no fim, porque se acaso figurasse no início daria muito nas vistas e o chefe Artur Inez não consentia. Destaco outro renomado camarada, João Ribeiro, por meio de um texto saboroso de Maria Leonor Nunes: «Nem impositivo, nem exigente, com a subtil "malandrice" que gostava de confessar, dizia sempre em falinhas mansas ao gráfico: "as fotografias têm pai, filho", reclamando a assinatura das suas imagens». 

Algumas vezes assisti encantado ao mutismo de Augusto Cabrita enquanto trabalhava. Não falava nem ouvia ninguém. À reportagem e à criação artística entregava-se com um estilo silencioso. «O mais importante é, primeiro, olhar. Depois, pensa-se e escolhe-se.» Sustentava que as imagens, fossem fotográficas ou fílmicas, deveriam impor-se sem recurso a qualquer outro sentido que não fosse o da visão. O som, por meio de palavras ou de música, era para ele uma excrescência: «O silêncio é a mais poderosa das artes, a arte do olhar.» Uma personagem de um dos meus romances medita a páginas tantas: «O silêncio, sim, é poderoso, a ele não se pode tirar a palavra.» Inspirei-me aqui em Augusto Cabrita.

Pioneiro da reportagem televisiva em Portugal (guerra em Angola, na Índia e o documentário sobre o terramoto de Agadir), Augusto Cabrita desconcertava por vezes os técnicos da RTP ao exigir que as imagens desfilassem longo tempo sem qualquer som. Mas quem assistiu a essas transmissões inesquecíveis teve oportunidade de corroborar a boa razão do autor: era o silêncio que, na realidade, conferia às imagens uma densidade hipnótica.

Todavia, por uma vez Augusto Cabrita cedeu. Um desafio de João de Freitas Branco e Filipe Branco: Melomanias. Sob este título realizou-se uma série de filmes a preto e branco nos quais assistimos a maravilhosos "bailados" de imagens ao som da música. Arrebatadora exceção à regra.

O silêncio marcou igualmente a relação de Augusto Cabrita comigo, enquanto jornalista. Dirigi durante anos uma revista na qual predominavam as temáticas do fotojornalismo, da fotografia como expressão de arte e do cinema. Incontáveis vezes frustrou projetos de entrevistas, pretextando que nada de importante tinha para dizer. Mais tarde, como responsável pela revista dominical do Diário de Notícias, continuei a insistir, sem êxito. «Que grandessíssima estopada seria para os teus leitores!» – parodiava ele. 

Último quadro, último fotograma destas divagações de quem começa a remansar-se nos apeadeiros-memória de muita-muita viagem calcorreada. Eis:

Augusto Cabrita, além de cultivar a arte do olhar, era um talentoso pianista. Tinha em casa um piano de cauda no qual interpretava admiravelmente peças de natureza diversa. Porém, este homem que amava o silêncio e, ao mesmo tempo, era intérprete musical, ficou surdo. Uma longa e dramática doença roubou-lhe a audição.

Um dia tive de deslocar-me em serviço à RTP e um operador de câmara, amigo comum, disse-me:

— O Cabrita está horas e horas, todos os dias, ao piano.

Não percebi. Sabia que a surdez dele era irreversível.

Então o colega explicou:

— E toca afinado. Não ouve a música mas diz que a vê como se fosse um filme. 

16 março 2013

dia em que se completam vinte anos sem Augusto Cabrita. 

Augusto Cabrita
 

Pedro Foyos (Portugal)

Num percurso de meio século entre os mundos do Jornalismo e da Literatura, passando pelas Artes Visuais, Pedro Foyos alcançou especial notoriedade quando, já reformado do jornalismo diário, começou a dedicar-se à ficção e à crónica de atualidade.

Iniciou muito novo (final de 1960) a atividade jornalística no diário República – único declaradamente de oposição à Ditadura. Durante vários anos conciliou o jornalismo com a vida académica, participando nos movimentos estudantis que recrudesceram no País a partir de 1962. Na condição de jornalista e ao mesmo tempo de estudante foi-lhe possível, com a colaboração dos correspondentes da imprensa estrangeira, transmitir para o mundo, durante quase toda a década de 60, os acontecimentos das sucessivas crises académicas, com realce para as de 1962 (Lisboa) e 1969 (Coimbra).

Depois da revolução de 25 de Abril, no início do chamado Verão Quente de 1975 e na sequência do dramático encerramento do histórico jornal República, dirigido por Raul Rêgo, passou dois meses a correr o País, com o jornalista Vítor Direito, ao abrigo da solidariedade de tipografias democráticas dispostas a imprimir o Jornal do Caso República, publicação clandestina com tiragens de cem mil exemplares e que não podia produzir-se mais do que uma vez no mesmo local. Em Agosto desse ano foi co-fundador do diário A Luta, onde se manteve como redator e diretor de arte até próximo da sua extinção. Ainda nos anos 70 trabalhou em várias publicações da empresa jornalística “O Século”, com realce para as revistas O Século Ilustrado e Vida Mundial. Seguiu-se o Diário de Notícias, onde integrou a chefia de redação, sendo responsável, nomeadamente, pela revista dominical e edições especiais. Empreendeu em simultaneidade vários projetos editoriais no âmbito da Fotografia, Cinema e Artes Visuais em geral, fundando e dirigindo um jornal e duas revistas. Fundou também a coleção Grande Reportagem, consagrada a momentos assinaláveis do jornalismo português, tema que já antes lhe inspirara o livro O Jornal do Dia, e, mais tarde, A Vida das Imagens. Insere-se ainda nesse domínio Grandes Repórteres Portugueses da I República.

De permeio exerceu durante doze anos a presidência da Associação Portuguesa de Arte Fotográfica, tendo fundado e dirigido um Anuário da especialidade. Realizou por essa época várias exposições individuais de fotografia e de foto-pintura.

No campo do ensino e formação orientou estágios profissionais de Tecnologias de Comunicação na especialidade de Psicologia da Leitura.

Interessado igualmente, desde muito novo, pelos temas científicos, fundou o Centro de Estudos das Ciências da Natureza, direcionado em especial para as camadas juvenis, mas que dificuldades financeiras impuseram o encerramento em 2006.

No termo deste ciclo começou a dedicar-se à literatura de ficção, primeiro com O Criador de Letras, um romance inspirado no tema da invenção do alfabeto, tendo como cenário social a vida quotidiana no Próximo Oriente Antigo. A obra seguinte, Botânica das Lágrimas, protagonizada por crianças e cuja acção decorre inteiramente num jardim botânico, mereceu do escritor Miguel Real a qualificação de «romance marcante na literatura juvenil portuguesa.» (in Prefácio à segunda edição e seguintes).


Pedro Foyos é casado com a jornalista e escritora Maria Augusta Silva, distinguida com o Prémio Internacional de Jornalismo, entregue pessoalmente pelo Rei de Espanha no ano de 1993.

(Fonte:http://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_Foyos )