Nos tempos relhos, frigoríficos não havia. Nem gelo. Faltavam ao Alentejo cumes altos onde se condensassem águas. E só pelos meados do anterior século é que as casas abastadas começaram de receber uns monstros a que o vulgo chamava de frigidére, como referência à marca que se fez mais comum: a linguagem tem destas coisas, como pelo Porto ainda hoje se designa o café de máquina a partir da referência do instrumento – o famoso cimbalino.
Ora, não havendo como conservar os produtos, o que fazer? Os antigos tinham recursos: a salga, o fumado. Mas não só. No Alto Alentejo, inventaram o cachafrito, parente do beirão refrito e do nortenho rojão. O excelente cachafrito de coelho, que ainda se descobre por Marvão, tem a ver com o segredo doméstico de conservar carne para a largura do ano: coelho morto, esfolado, cozido com cebola, conservado no pote da banha que se escondia na arrecadação da cozinha. Cozedura simples e levemente temperada, para ficar escondida para as necessidades de carne, sobretudo em tempo de festas ou de abrir portas da casa a convidados de alguma consideração: que exigiam os modos que, por então, se apresentasse do melhor que a pobreza consentia.
Em tais circunstâncias, a dona da casa sacava na tulha: retirava o coelho aconchegado na gordura, trazia-o à fritadeira de barro; enquanto a banha derretia, o coelho voltava a fritar, apaladava-se de alho e de louro. Na Beira Baixa, o cabrito tinha fritura antes do gordurento repouso – daí o nome, refrito.
Agora, é raro encontrar-se este pitéu que deixa a carne quase a desfazer-se na boca. Convirá trazê-lo à lembrança das papilas, recolhendo-o da sabedoria dos mais velhos. É que se merece a memória, merece a homenagem, como lhe fiz aqui há uns anos na pousada de Marvão, nos tempos em que por lá parava mestre Fernandes. Fiquei cliente: que bem sabia repimpar-me com o cachafrito, embalado pelo calor do sobro a crepitar enquanto os olhos vadeavam a serra, algumas vezes assombrado pelas trovoadas espanholas. Bons tempos. Atentai, amigos: que se acompanhe o progresso, mas que se perdurem as coisas que sempre embelezam a vida e projectam no tempo nosso a antiga sabedoria.
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