Nuno Rebocho

As “lições” de Alves Redol

Encontrava Alves Redol nas caves do Café Império, à hora de almoço, antes dele seguir para a empresa de seguros onde trabalhava, ali ao alto da Alameda D. Afonso Henriques. Tinha os meus 16 anos, acabara de chegar a Portugal, vindo de Moçambique, para concluir o meu sétimo ano do liceu e me preparar para a universidade. Embora tivesse grandes mestres no Liceu Camões (na altura, a mando do “Cabeça de Martelo”, o Sérvulo Correia, reitor), deles fugia a sete pés: Virgílio Ferreira e Mário Dionísio, que foram meus professores, nunca despertaram em mim paixões pela escrita, se bem que Mário Dionísio fosse um excelente docente. Que me desculpem: eu sentia-me atraído pelas alunas da Escola António Arroio, então ao lado, e por via disso condenei-me a reprovar o ano, por faltas…

Foi Redol que me encaminhou para os livros. Eu conto: vinha de Benfica, onde morava, acompanhado de meu “primo” Vitor Meira (hoje juiz reformado, então meu colega de turma no liceu) e passava pela Damaia de Baixo, a prestar honras ao Antunes da Silva, que com Redol foi um dos meus primeiros tutores em coisas literárias. Por norma, aconselhava-me uma leitura, emprestava-me um livro, discutia comigo umas tantas páginas. Foi assim que eu “desemburrei”.

Depois desta “lição”, seguia para o liceu e, por volta do almoço, seguia para a minha segunda “aula”, com o Redol, que tinha comigo – com os meus arrotos de novato aprendiz – uma infinita paciência, que se perdeu quando, sem eu saber o que queria, me derricei, durante as tardes, à mesa da Veneza (julgo que era assim que se chamava, na Avenida da Liberdade), com o Ferreira de Castro. Houve dura controvérsia quando me viu com “Terra do nosso Pão” debaixo do braço, com dedicatória de Antunes da Silva (exemplar que, mais tarde, ficou expropriado pela PIDE) e foi a rotura quando me achou com “Emigrantes” do sertanejo. O que feria Redol não eram os autores que eu lia. Era a mistura de leituras que me caíam no prato e que colidiam com qualquer orientação que ele aprovasse, uma doutrina, fosse ela qual fosse, mas que tivesse princípio, meio e fim. Que fosse coerente.

Sempre me rebelei contra tutelas e a teimosia que levava a opor-me ao autor de “Avieiros” era uma manifestação desse espírito livre. Reconheço hoje que deveria orientar-me pelos conselhos de Redol ou de Antunes da Silva. Mas sobretudo enalteço o desvelo que eles punham nesses contactos com os jovens, teimando em conduzi-los nesses primeiros passos, coisa que hoje muito desejava deparar nos autores modernos – que estes ousassem ter coortes à sua volta. Não o vejo. E tal seria óptimo para as novas gerações.

O mesmo espírito de cooperação achei no liceu em Mário Dionísio, que aceitou que eu continuasse a assistir às suas aulas (fazendo as respectivas provas), marcando-me as necessárias faltas para que, no fim, apenas fosse aprovado a OPAN (impingida disciplina de Organização Política e Administrativa da Nação – assim se chamava), necessário para que eu pudesse autopropor-me a exame do sétimo ano.

Tempos antigos!

Nuno Rebocho

 
 
 

Nuno Rebocho - Nascido em 1945, em Queluz (Portugal), viveu em Moçambique desde os três meses de idade até 1962. Jornalista, poeta e andarilho – bastou-lhe ter estado preso por cinco anos na Cadeia do Forte de Peniche (por cinco anos, motivos políticos), para recusar ser animal sedentário. Viveu a imprensa regional (Notícias da Amadora, Jornal de Sintra, Aponte, A Nossa Terra, Jornal da Costa do Sol, Comércio do Funchal, entre outros), foi redactor da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, das revistas O Tempo e O Modo e Vida Mundial, em diferentes diários e semanários, e é chefe de redacção da Antena 2 da RDP. Colaborador de Acontece en Sorocaba (Brasil) e Liberal (Cabo Verde). Autor de “Breviário de João Crisóstomo”, “Uagudugu”, “Memórias de Paisagem”, “Invasão do Corpo”, “Manifesto (Pu)lítico”, “Santo Apollinaire, meu santo”, “A Nau da India”, “A Arte de Matar”, “Cantos Cantábricos”, “Poemas do Calendário”, “Manual de Boas Maneiras”, “A Arte das Putas” (poesia), “Estórias de Gente” (crónicas), “O 18 de Janeiro de 1934”, “A Frente Popular Antifascista em Portugal”, “A Companhia dos Braçais do Bacalhau” (investigação histórica), está representado em diversas antologias e colectâneas em Portugal, Espanha e Brasil. Tem colaborado em catálogos para exposições de artes plásticas: Ramón Catalan, Deolinda, Carlos Eirão, Alfredo Luz, Edgardo Xavier, João Alfaro, Maria José Vieira, Ricardo Gigante, Ana Horta, Isabel Teixeira de Sousa, Nuno Medeiros, Viana Baptista, Teresa Ribeiro, Rico Sequeira, João Ribeiro, José Manuel Man... Comissariou a Bienal do Mediterrâneo, Dubrovnik (Croácia), em 1999.