LUCILENE MACHADO

VERTICAL

Há um certo prazer em ouvir o ruído da noite instalando-se aqui dentro. Na parede, as marcas das tardes que vêm morrer na janela. Escondo o corpo na verticalização das tábuas, mas se olharem pelas fendas laterais, verão meu possível destino esticado entre as matajuntas. Fendas que eu mesma abri com golpes de mão direita nos dias de grandes batalhas. Homens viviam aqui. “Vá cozinhar farinha de trigo com ovos que amanhã eu vou pescar”. O verbo ir era a parte mais sutil do discurso. A possibilidade de encaixar a palavra liberdade à frase fazia retumbar a minha alma. Mas não consegui a exata arquitetura dos vocábulos. As construções foram ambíguas e a estética desajeitada. Prossegui a preparar iscas para peixes. À medida que a massa ganhava consistência, via-se o fundo da panela reluzindo. Dava uma vontade de limpar o mundo do horror das gentes ásperas. Achava a vida tão bonita, mas cheia de gente dura. Gente de ferro que falava alto e dava murros na mesa. Gente que me fazia mastigar com a língua e engolir aquela farinácea gosmenta que me estufava as vísceras. Só de pensar, dá uma dor de lado. Estômago e intestinos grudadados. Neurônios cristalizados. Conceitos esvaziados. Fui meu próprio inferno. Mas há qualquer coisa de admirável em tudo o que eu fui. Fui corpo palavra. Modelo intemporal contorcionando frases inarticuláveis. Não eram frases gramaticais, eram pedidos de socorro. Um dia me sacudi das sensações de culpa e das advertências autoritárias e disse que não tinha mais medo de viver ou morrer. Mas se vivesse haveria de ser com intensidade. Eu menti, porque tinha medo sim. Um medo que horóscopo não resolve. Psicologia não minimiza. Medicina não cura. Um medo caseiro, medo destelhado que me expunha ao mundo. Comecei a ler romances. Eles têm muito a recomendar aos que estão em conflitos, aos que vivem entre trapos e trapaças. Sade, Shakespeare, Schopenhauer, Montaigne, Maquiavel, Borges... Queria ser dona de mim. O juiz entendeu, mas não economizou nas perguntas. Eu não falava nada para que minha falta de coragem não transbordasse. Meus batimentos doíam diante de um par de olhos coléricos a observar-me. O pensamento era repetitivo e letal: amanhã morrerei. Sinais queimarão em segredo. Não ficarão pistas. O sangue umedecia o pensamento como uma esponja. Faltava saliva na boca, muita sede. Não aprendi a técnica de doer pouco. Doía até a última célula. Dor sem apoio, sem mureta pra recostar. Dor nos ossos. Cruel como uma confissão antes da morte. Quanto tempo da minha história, vivi com os olhos fechados? Pelo menos a metade da vida. Depois de assinar os papéis saí só pelas ruas enluarada de insetos. Morrer me foi tão simples quanto nascer. Foi preciso morrer pra poder viver. Nunca mais peixes na travessa. Mas o medo continua colado no meu corpo. Medo de não agasalhar minhas reações. Tenho certo instinto de grito a romper-se mediante o menor ruído. Mas hoje deixo a porta aberta. Quem sabe alguém sem medo de tropeçar no meu medo? Daqui a pouco não existirá qualquer resquício, apenas essas matajuntas preservando histórias que ninguém contou.