1. Homem e autor fáustico
Fausto, o sábio prodigioso, alquimista, feiticeiro e o esconjurado, enquanto mito, a partir de Goethe, assumiu-se símbolo da própria humanidade porque condensa, em si, a força realizadora da vontade humana. O homem fáustico questiona-se e questiona o mundo, não se apazigua a saberes, aliás o conhecimento torna-o exigente consigo e com os outros, arrastando-o para uma eterna procura.
Conheço Cunha de Leiradella tal como ele me conhece: partilhando o divisível e o indivisível que sabemos de nossas existências. Leiradella é um homem fáustico, aliás, e se dúvida houver, vejamos que assim se oferece quinzenalmente, enquanto cronista, na página 4 deste periódico.
Todavia, o autor Cunha de Leiradella, povoense de Brunhais por nascimento, residência e afecto, enquanto romancista, contista, dramaturgo, roteirista de cinema e televisão e ensaísta é, pelo seu universalismo, também um autor fáustico. Este autor vive em cada uma destas linguagens, formas e plataformas a busca da verdade para actos humanos, a par da recorrente e irónica incomunicabilidade humana.
2. O processo de criação
“Apenas Questão de Gosto”, editado pela editora Ciência Moderna (Rio de Janeiro, Brasil, 2005), apresenta-nos, na sua acção central, uma aparente intriga policial (digo aparente porque este romance vai para além do clássico romance policial). A personagem central e narrador é o detective Eduardo da Cunha Júnior, um homem idêntico àqueles que cruzam o nosso dia-a-dia na rua, no trânsito ou nos nossos empregos, pois é um ser que procura simplesmente garantir a sua sobrevivência e a satisfação dos seus desejos e prazeres, seja um whisky Ballantine’s, o seu Porsche Turbo 3000 ou uma realização sexual.
Quanto ao tempo, os factos decorrem durante sete dias a partir daquela “ terça-feira, 15 de janeiro de 1985, lua minguante do plantão do anjo Aladiah e dos santos Miquéias,(…)”, dia que, na História brasileira, é marcado pela chegada à Presidência de Tancredo de Almeida Neves que recebe o epíteto metafórico de “cavaleiro da Távola Sempre-Em-Cima-Do-Muro”, isto para caracterizar a sua esperteza saloia e o seu oportunismo político. É, neste mesmo dia 15 de Janeiro, que o detective Eduardo tem a oportunidade de subir mais um degrau no seu palmarés detectivesco, recebe uma cliente – Raiolinda de Menezes Forfait – que o incumbe na investigação de uma possível relação adultera protagonizada pelo marido, Zózimo Forfait, um produtor e director de cinema. Eduardo passa, então, a usar o disfarce de jornalista da “Revista da Cidade”, usando o nome de Adauto Simplício, para acompanhar as filmagens de “O Grande Cidadão e a Lenda do Cururu Voador” até chegar ao seu pertenço objectivo: um flagrante que satisfaça a cliente e lhe permita uma recomendação para trabalhos futuros.
Durante sete dias, o detective Eduardo passa pelo burlesco que envolve a sua relação com o universo do cinema, política e sociedade brasileiras, daqui ao cómico, à ironia e à sátira é um passo, a este propósito é significativo o capítulo seis onde o autor, seguindo a estrutura formal da epístola bíblica, faz um compêndio dos termos cinematográficos importados da língua inglesa porque, incompreensivelmente, parecemos ter pejo em usarmos a nossa língua, daí a pergunta: “Trial Divan – Não seria verdadeiro dizer-se teste do sofá; pois não começa com o candidato (male or female) na posição vertical e termina na posição horizontal depois de experimentadas todas as posições do Kama Sutra?”
Nos seus fluxos de consciência, que entremeiam os diálogos, deparamo-nos com um cuidado trabalho linguístico, com passagem pelo neologismo e pela refundação de máximas populares como: “quem rouba uma galinha é ladrão e quem rouba galinheiro vira deputado ou senador”. Em tudo, Leiradella parece renovar a ironia, porque esta não se reporta a fenómenos ou actos individuais, mas sim a toda a existência/realidade que se torna estranha ao seu sujeito.
No final, o detective descobre que Zózimo traía sua mulher com o seu stand-in (o substituto dos actores nos testes de filmagens) e o motivo de adultério era a sua homossexualidade. É então que Eduardo mostra ter solução para tudo, basta que o cliente pague: encena uma relação entre o produtor/director e Florismália, a sua actriz mais bela, recebe da cliente inicial, Raiolinda, e de Zózimo que, assim, esconde o que não deseja assumir.
“Apenas Questão de Gosto” mais que um enredo policial caracteriza-se pela sua metatextualidade e com a expressão observo o facto de, em muitos aspectos, o texto transbordar para outros leitos (ou tipologias). Repare-se que a intriga assume também afloração de conflito dramatúrgico, uma vez que Eduarto, pelo que tem de anti-herói, é uma personagem em conflito (confronto) consigo e com o mundo. Este facto é tanto mais evidente quando nos deparamos, pelo menos, com duas possibilidades de leitura: lendo apenas os diálogos, passando sobre as divagações de Eduardo, privilegiando-se o contacto directo com a intriga e a relação do detective com os outros ou lendo simplesmente os fluxos de consciência e entranhando-nos, então, na visão do mundo e de si mesmo por parte do narrador. Ambas são tentadoras, logo todas merecem ser tentadas.
José Oliveira
jose_pereira_oliveira@clix.pt
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