JOÃO SILVA DE SOUSA
A Feira na Idade Média

                                     «La foire ou le marché est le rendez-vous périodique
                                     de vendeurs et d’acheteurs, en des lieux fixes, avec
                                     les garanties d’une organisation spéciale». (Huvelin)

1. Quando Luigi Illica e Giuseppe Giacosa, baseados no livro de Henry Murger, escreveram o libreto para Giacomo Puccini, para a sua obra-prima La Bohème, puseram em cena, no II acto, Rodolfo, Marcelo, Colline, Schauhard, Mimi e Museta com Alcindors, envolvidos pelo movimento e arrastar de vozes melódicas, no Café Momus, no Quartier Latin, um bairro boémio de Paris.

Numa das primeiras cenas do referido acto, aproxima-se um mercador das pessoas que estão na rua e de outras sentadas às mesas do café, com uma montra de madeira que carrega às costas, cheia de panos e lenços, e brinquedos de madeira que fazem as delícias de adultos e crianças. Discutem-se preços e qualidades. Os miúdos estão com os olhos esbugalhados, naquela fria noite de Natal, olhando os bonecos. Um quadro que poderíamos seguramente transpor para uma feira quatrocentista europeia e portuguesa, onde as boticas móveis ou não, mais não prefiguravam que cordas esticadas onde se dependuravam panos e lenços, e uma pequena bancada de madeira com bonecada e utensílios domésticos para crianças e adultos. E quanto mais estes certames de oito ou quinze dias se afastavam dos grandes centros urbanos e se internavam no País, mais rústicas e inacabadas eram as barracas que se levantavam naqueles dias festivos. A par, poderia ainda haver o mercado semanal. E lojas, embora poucas, também as havia.

A casa podia ter uma tripla função: a zona central do edifício, muito rudimentarmente construído, diga-se, era a área de habitação. A parte traseira pode destinar-se à feitura de objectos necessários à vida das pessoas que habitam o imóvel, ou para vender, depois, em dias certos ou com banca aberta todos os dias da semana, na terceira parte daquela que fica na dianteira. Uma ou mais arcas com os géneros e objectos, uma banca para exposição de alguns exemplares e uma corda esticada de ponta a ponta, de onde se dependurava tudo o que se quisesse: panos e peças de roupa se fosse o caso, lenço, lã, bragal, linho… É uma imagem que não nos é difícil descrever, quer pelos dados que historiadores e arqueólogos já descreveram, seja por visitas nossas às terras do Interior do País, onde ainda se perfiguram casas pobres ou mesmo sobradadas e com mais de um piso e apresentando esta tripla função, sem nos esquecermos da tradicional quintã que mais ou menos alargada se nos mostra trabalhada e produtiva, em termos agrícolas.

IMAGENS

2. Na Península Hispânica, nunca houve feiras que tivessem atingido o grau de desenvolvimento das de Brie e da Champagne, por exemplo, que tomavam lugar em Provins, Meaux, Reims, Bar-sur-Aube, Lagny-sur-Marne, Brouges e Troyes, dando azo à comunicação com as cidades italianas, principalmente, as da Lombardia e com as de toda a região flamenga: Thourout, Lîlle, Gante, Bruges, Ipres, Antuérpia, Roterdão, Amesterdão… que estabeleceram um intenso comércio com o Atlântico, o Mar do Norte e o Báltico. Criaram-se indústrias importantíssimas, como a dos tecidos de lã e diferentes artigos que atraiam comerciantes com outros produtos, vindos de todas as áreas do mundo conhecido e formando circuitos comerciais, de transporte, venda e troca, que se sucediam de modo a tomarem conta do ano inteiro, num círculo quase perfeiro (1).

Não podemos esquecer que, desde os movimentos cruzadísticos, toda a Europa se transformou num continente em expansão, numa nova dimensão e ritmo, primeiro com os Portugueses e, a seguir, com Castela e, depois, já Espanha, a par de outros países que contribuíram, forte e visivelmente, para a determinação de importantes modificações, sobretudo na passagem do Século XV para o XVI, como veremos mais adiante.

No séc. XII, cada uma das feiras arrastava-se por cerca de seis semanas, mediando, entre si, tão-só o tempo para o transporte das mercadorias da que cessava para aquela que ia ter início (2); nem com as da Hansa – liga criada pelos burgueses de Lübeck, uma aliança de cidades mercantis que estabeleceram e mantiveram um monopólio sobre quase todo o Norte da Europa e o Báltico, a saber, entre muitas outras: Hamburgo, Nuremberga e Bremen... (3) - nem com as feiras italianas: Veneza, Pisa, Ferrara, Pavia, Modena, Verona, Milão e Génova – com elevada preponderância nas ilhas de Creta e Corfu e, na Itália, numa grande parte da planície do Pó – onde arribavam os produtos preciosos da Índia e de outras paragens do Extremo e do Médio Oriente, como jóias, perfumes e especiarias, trazidos também de Alexandria, da Síria e de outros lados, onde as embarcações venezianas os faziam carregar para a Península Itálica; ou escravos, couros, peles, carnes e cereais que vinham da Rússia; e os canhões e outras armas, algumas autênticas jóias e peças de arte, procedentes de Génova, a qual soube reunir uma grande esquadra com o que lhe foi possível alargar o campo dos negócios externos, através do estabelecimento de feitorias e da assinatura de contratos no litoral do Mar Negro, no Mar Egeu e na costa norte-africana. Era, a princípio, a “estrada” terrestre, através dos Alpes, a que servia de escoadouro a este tráfico; depois, passou a adoptar-se a via marítima, com a grande vantagem de os navios venezianos transportarem, na derrota, os cereais de Leão e Castela, a cortiça, o mel e o sal de Portugal, os tecidos flamengos, as lãs e o estanho da Inglaterra e da Irlanda, as madeiras desta ilha e da Borgonha, as peles e o trigo dos países do Norte. A comprovar está o facto de as restantes cidades italianas poderem acompanhar Veneza na febre dos seus múltiplos e variadíssimos negócios, caso de Florença, com couros, tecidos de lã, veludos e sedas que se tornaram conhecidos e requisitados por toda a Europa. A esta associaram-se Nápoles, Pisa e Siena, como dos mais activos mercados industriais e comerciais, produtores e aquisitivos de matérias com as quais se tornaram industriais especializados e grandes exportadores. Os argentarii italianos, que surgiram a par dos notarii, tabularii e tabeliones, incumbiam-se do registo dos contratos, cada vez em maior número, em documentos escritos, como modo de guardarem a palavra dada. Os argentarii eram uma espécie de banqueiros que obtinham dinheiro através de empréstimo para particulares, elaborando o contrato mútuo e registando em lugar próprio o nome completo e o título e/ou profissão, se o ou a tiver do devedor. Os referidos banqueiros italianos, graças à sua habilidade e aos capitais avultados de que podiam dispor, dominaram as finanças de toda a Idade Média, principalmente desde a segunda centúria. Os “estados” alemães seguiram idêntico trilho, com a feira de Leipzig, fundada em 1170; de Hamburgo, em 1189 e Ratisbona, de 1230 (4).

Estes exemplos mais não permitiam à Península Ibérica do que criar os seus centros de troca de modo tímido, bem à dimensão da “Espanha”, apenas se integrando nos circuitos externos, pela necessidade de importar cereais e exportar sal, o produto mais volumoso, sobretudo em Portugal. Em Leão e Castela, pontificavam as de Valladolid (1152), Sahágun (1153), Cáceres (1229), Mérida (1300) e Burgos (1339), numa dimensão muito semelhante a algumas das portuguesas que punham em ligação – quando muito – a nossa costa ocidental, o Minho e o Algarve com o hinterland luso-leonês/castelhano (5). 

Para este renascimento económico e administrativo ad hoc na “Espanha” cristã, após os séculos XI e XII, contribuiu, indubitavelmente, o desenvolvimento sempre em crescendo das peregrinações a lugares Santos: a Santa Maria, a Santiago. Pela rota do Caminho de Santiago, chegavam à nossa Península muitos peregrinos que pretendiam dirigir-se ao túmulo do Apóstolo e, juntamente com eles, um bom número de mercadores e artesãos que se iam fixando, com certa permanência, nas cidades, vilas e outros centros urbanos, mesmo pequenos, localizados ao largo da rota da peregrinação. Eram Franceses, Ingleses, Alemães, Italianos e Flamengos, migração dita franca para Aragão e Navarra, ainda na direcção de Leão e Castela, Galiza e Portugale. Facilmente se compreende o inevitável desenvolvimento demográfico, mercantil, industrial e urbano dessa zona extensa do Setentrião da Península. D. Teresa, mulher do Conde D. Henrique, ao outorgar foral a Viseu, fala dos seus mercadores, por certo, estabelecendo a ligação da cidade e da Casa da rainha com o Norte da Península, Borgonha e com o Magrebe. nestes termos: “Et mercatores mei qui morauerint in uiseo dent suum censum et illis nullam iniuriam faciant. Totum autem quod seperius resonat ego regina tarasia concedo et concessum semper esse firmiter mando”, ou seja “E os meus mercadores que morarem em Viseu paguem o respectivo censo e não lhes façam nenhum mal. Eu, rainha Teresa, concedo quanto acima consta e mando que o concedido seja firme para sempre”.

Que pretenderíamos nessa época, com os almocreves, marceiros e recoveiros, nomes por que os comerciantes ambulantes eram chamados?

Queríamos, naturalmente, o mesmo que os outros, isto é, importar panos da Flandres (tecidos de Bruges), e diferentes objectos, como nos leva a concluir uma tarifa aduaneira da portagem paga à entrada de Jaca e Pamplona, fixada pelo rei navarro-aragonês Sancho Ramírez. Armas e telas francesas, panos flamengos e outros artigos importava a “Espanha”, através de mercadores que faziam a ligação com a França, ultrapassando os altos penhascos dos Pirenéus. Pagava-se com ouro muçulmano (os párias) ou com tributos cobrados ao ano que se satisfaziam aos governantes peninsulares pelos reis das Taifas. Era ouro islâmico que, desta forma, passou para o Ocidente peninsular. Que exportávamos? Objectos de cobre, cativos de guerra, peles e mercadorias de luxo do Andalus, como, por exemplo, peças de seda e tapetes.

 

Á feira, á feira, igrejas, mosteiros,
pastores de almas, Papas adormidos,
comprae aqui panos, mudae os vestidos,
buscae as çamarras dos outros primeiros
os antecessores.
Feirae o carão que trazeis dourado;
Ó presidentes do crucificado,
lembrae-vos da vida dos sanctos pastores
do tempo passado.
[…] À feira da Virgem, donas e donzellas,
porque este mercador saiba que aqui traz
as cousas mais bellas.

(Gil Vicente, Auto da Feira)

3. E falámos do mercador. O renascimento comercial e urbano, desde os inícios do século XII, originou a reunião anual de comerciantes em algumas localidades. Ele começa por seguir uma certa rota regular. Também a época em que ele chega às povoações é a costumeira, ou seja, ela passa a corresponder ao dia, mais ou menos, em que o fez no ano anterior e que pode coincidir com o da celebração da festa de um santo, e com uma romagem a um lugar de peregrinação anual. Aliás, as datas as escolher deviam coincidir com certos dias festivos mais importantes: a Páscoa, o período de tempo logo após a Quaresma. Com Santa Maria de Julho, de Agosto ou de Setembro, o Corpo de Deus, Santo António, Santiago (Julho), S. João e S. Pedro, S. Miguel de Maio e de Setembro, Santa Iria e S. Bartolomeu; Domingo de Ramos, S. Cipriano, S. Martinho, Santa Madalena, S. Lucas, S. Gonçalo, Santo André, Santa Vera Cruz de Maio. Realizavam-se muitas delas, nas proximidades de uma capela de um Santo venerado pelo Povo: tenha-se em conta o pedido endossado a D. Afonso V pela vila de Almendra – decorria o ano de 1441 – para obter uma feira franca, aquando da romaria que se fazia – por tradição, diga-se – à milagrosa “casa muy solempne de sancta Maria” onde iam “em cada huu anno no mês de Setembro […] muytas jemtes por muytos milagres que faz E tambem por gaanharem mjl e tantos dias que teem de perdom” (6). Aproveitavam-se, de amiúde, arraiais. São os casos de Santo Agostinho, de Santa Vera Cruz e os que tomavam lugar bem perto das milagrosas capelas de Santa Marinha e de Santa Maria de Setembro, onde se cortavam e salgavam as castanhas e o vinho brilhava nas canecas de barro, ou em S. Miguel de Setembro, em Tarouca, quando se comia o Bazulaque, introduzido, em Portugal, pelos Gaels, uma das mais importantes tribos celtas, muitos séculos antes, nome que lhes era dado, nas suas estirpes irlandesa e escocesa, donde advêm o adjectivo e o substantivo Gaelic, “gaélico” (7).

A Igreja, aliás, teve um importantíssimo papel para fazer e desfazer certames como estes. Se contribuía para a realização de festas litúrgicas com as quais deviam coincidir, iam evitando, por outro lado, que o Domingo, dedicado ao serviço de Deus – missa e sermão – e ao repouso semanal, fosse o dia de realização de qualquer centro de troca. Opondo-se a este facto, também o rei de Portugal fala da mudança do dia da feira de Leiria, por exemplo, que se fazia “aa segunda feira E que por tempo pouco E pouco se começara de fazer ao domjnguo E que fez assy alguus annos E que uendo os homees da dicta villa Como nõ era bem de sse a dicta feira fazer ao domingo ordenarom j de sse fazer aa terça feira”(8).

Diziam que havia aí, nas igrejas, “muytos ódios E mal querenças […] que desto se seguia a mor parte por sse a dita feira fazer ao dia de domingo. O que era pouco seruiço de deus E Nosso”(9). Em 1332, por ordem do bispo de Lamego, D. Fr. Salvado Martins, foi proibido também fazer mercado naquele dia e, em 1408, D. João I transferiu para a primeira segunda-feira de cada mês a feira dominical de Aguiar da Beira, porque o bispo de Viseu, D. João Homem [V], a havia interditado, dado que – dizia ele – “Nos auemos por bem desse [sic] nom fazer a dita feira ao Domingo, e de sseer guardado, como a Egreia manda”(10).

Excepções, contudo, também as havia: conhecemos o caso da feira de Vila Nova [de Famalicão?], de 1205 e a de Sernancelhe, de 1295, transferidas para um domingo, pois os seus vizinhos “diziam que lhes era assy mais proueitoso” e a de Vila Flor, de 1294, que se realizava, mensalmente, no primeiro domingo de cada mês (11). Só era necessário que o Pároco não levantasse problemas.

Naquela mesma linha, o direito canónico influencia a outorga régia com uma Paz temporária, isto é, a necessária protecção a quantos às mesmas se deslocassem, o que concorria, deveras, para o seu desenvolvimento. Mais uma, na senda da Paz do Rei, da Paz da Casa… São casos, acima de outros, a segurança, a isenção da penhora dos bens e os encoutos.

Naturalmente uma feira teria um documento a instituí-la. É comummente designado por Carta de Feira. Assim, estes certames eram fixados pelo soberano que ouvia ou não os vizinhos e moradores dos lugares, que atendia às solicitações destes e ainda às necessidades das povoações, por motivos muito variados e, se os elencássemos, até mesmo por razões contraditórias. Podemos, contudo, afirmar que o objectivo principal do rei e dos habitantes do lugar terá sido, desde sempre, a tentativa de, por este meio, implementar o desenvolvimento do lugar, da vila ou da cidade…

Foi D. Afonso III quem trouxe de França, em finais de 1245, quando ainda era conde de Bolonha, e assumiu a regência do Reino, este instituto, o qual não podia ser implementado por cá com as mesmas características que detinha lá por fora. No entanto, numa época de grande esforço centralizador, foi, pelo menos, uma forma de veicular outros meios variados, tendentes à consolidação do seu poder, quer pelo que dizia respeito à população do espaço territorial sob o seu imperium, como ainda pelo incremento dos seus recursos financeiros. Era preferível, por vezes, quando advindos das arbitrariedades e despotismos dos particulares, os moradores e vizinhos sujeitarem-se ao fisco do que aos senhores feudais que, com violento esbulho, lhes extorquiam toda a sorte de impostos, justificados e estabelecidos pela sua fértil imaginação secular. Tenhamos em conta o facto de haver cartas de feira de origem concelhia – diríamos, a pedido ou mesmo por imposição municipal, como Vouzela, Aguiar da Beira, Monsanto, Borba, Prado…- por motivos óbvios: o aumento da população, das receitas também, para que o local fosse melhor povoado, porque ficava longe de estrada, porque havia uma feira muito próximo, que lhes impedia o desenvolvimento, ou, pelo contrário, porque à beira de caminho, reunia boas condições.

Antes do Bolonhês, a actividade mercantil interna exerceu-se, acima de tudo, nos mercados regionais, tendo as feiras, como função principal, a de servirem de centros de distribuição de produtos, os de maior vulto; à época do início deste governo, em 1248 e ss., aumenta o número deste género de certames e ampliam-se os privilégios a dar aos feirantes, tais como a segurança deles e das suas mercadorias em trânsito ou estacionadas. Sobe também o valor dos encoutos, ou seja das coimas a recair sobre corregedores e meirinhos e demais oficiais régios e sobre quantos mais quisessem penhorar bens dos feirantes por dívidas contraídas fora da feira e do período da sua realização. As coimas eram penas em dinheiro que iam deixando de ser leves e pouco representativas para magoarem os que fossem contra este princípio que fazia parte igualmente da Paz da Feira. Com D. Dinis, após 1279, a regulação de quanto diz respeito a este tipo de mercados é alargada e aperfeiçoada, crescendo o número de feiras semi-franqueadas, dado que as vulgarmente chamadas de feiras francas nunca existiram como tal. A sisa foi dos impostos mais aligeirados, pagando os mercadores e compradores metade apenas do seu valor, e pondo-se de parte, na maior parte dos casos, “se pague toda a sisa em cheo”, como se dizia para a feira de Tomar, ao tempo de D. João I e do Infante D. Henrique[7]. Com D. Afonso IV, depois de 1325, por directa influência de sua mulher D. Beatriz de Castela e do genro Afonso XI, reconhecemos a régia bondade para os vendedores e compradores, pelos privilégios que se criaram para os feirantes, quinze dias antes, todo o tempo de duração e quinze dias depois da realização da feira, aplicando o princípio, em Portugal. Com D. Fernando, após 1367, parece perder-se parte deste incremento de benesses bem visíveis e importantes, que se haviam conquistado desde Afonso III e principalmente com D. Dinis. As guerras com Castela prejudicaram o comércio – aliás, como tudo -, os mercados locais extinguiram-se e, dos feirantes pouco se fala. Os estrangeiros recusam-se a vir, os nacionais perdem oportunidades e segurança.

A partir de D. João I, reformulam-se ou reavivam-se as feiras semi-franqueadas, entre 1383 e 1433, de Castelo Branco, Sertã, Amarante, Viseu, Fonte Arcada, Feira, Barcelos, Salzedas, Batalha, Lanhoso, Pena, Tomar, Montemor-o-Velho, para depois os monarcas passarem a fazer o mesmo com outras, como sucedeu com D. Duarte e D. Afonso V.

Teria de ser assim, indiscutivelmente. Com a tomada de Ceuta e o início da exploração da costa africana, o mercador português dirige-se, de preferência, para fora do País e, cá dentro, encontra locais certos de encomenda e de venda de novos produtos, de mais fácil aquisição, em quantidades maiores e, muitos deles, completamente novos e nunca vistos antes. É que a sua actividade é francamente aproveitada como suporte da política das descobertas e estas são, sem dúvida, as bases de reforço de todo o vigor e dinamismo mercantil interno. As garantias e facilidades aos vendedores e compradores ampliam-se e de tal ordem que, muito facilmente, se vêem decalcadas das que os comerciantes e navegadores detinham, desde os princípios de Quatrocentos, dilatadas, consideravelmente, após 1415, com a passagem do Bojador em 1434, e as primeiras investidas de reconhecimento e comerciais no golfo da Guiné, depois de 1440 e 1460. Surgem em grande número as ditas Cartas de Privilégios de mercador e de mercador estrangeiro: cartas em forma.

A carta de feira de Tomar, de 1420, é modelar, como o fora a de Trancoso (1273): uma verdadeira inovação sob o ponto de vista das imunidades que contém a favor dos feirantes, traduzindo a ascensão da ordem popular na conquista de liberdades, só justificável pelos novos tempos que se atravessam. São inúmeras as que nela se inspiraram. De então em diante, com a de Montemor-o-Velho, Penela, Trancoso, Salvaterra de Magos e tantas outras, instituiu-se uma feira semifranqueada de 15 dias de duração, isentando os feirantes do pagamento de metade da sisa, excepto do vinho que se vendesse atavernado e de carne que fosse adquirida no talho; a todos os que arribassem à feira não seriam tomados seus animais de sela e de albarda, animais de tiro, portanto, para nenhuma carga, nem eles seriam obrigados a qualquer serviço na ida para a feira, enquanto nela andassem, nem quando a suas casas regressassem. Não seriam presos, nem acusados, nem demandados, por nenhum malefício em que se vissem alegadamente culpados, salvo se fosse feito na vila, ou nos seus termos, ou – claro está – na própria feira. Não seriam citados nem demandados por quaisquer dívidas, provenientes de heranças ou outras, excepto se fossem provocadas por compras e vendas que houvessem tido o seu lugar na feira. Os feirantes, forasteiros e os habitantes locais eram também autorizados a andarem armados no recinto para sua defesa pessoal, dos seus e dos produtos à venda, e podiam servir-se de qualquer tipo de montada. Finalmente, preceituava-se que nem os oficiais régios nem os dos concelhos fizessem correição na feira e, se a esta viessem, o fizessem tão-só para comprar ou vender. Foi esta a Ordenação modelar que serviu de padrão, daqui em diante, a um novo Povo, neste nosso País diferente e renovado, virado para as indústrias e o comércio, não esquecendo os trabalhos adentro do sector primário a que, tão fortemente, deitava mãos, mas agora como seres desprendidos e alforriados das amarras convencionais. E mercador não era só o médio burguês. Era-o o clero, a nobreza, o Infante e o próprio Rei. Se estes últimos não iam à feira vender, traziam das colónias e feitorias dispersas pelos vários continentes os novos materiais que ficavam ao comprador pela quinta parte do preço que nos custavam quando íamos às feiras flamengas e italianas comprá-los. Atingindo as fontes de produção e transformação, conquistávamos as riquezas que desinflacionaram os preços e deram movimento comercial ao Algarve (com feiras em Faro e Loulé), ao Tejo e ao Douro. Os circuitos haviam começado para só abrandarem em finais de Setecentos e mostrarem à Europa adormecida até aí, como tudo se fazia e que vias era necessário trilhar. Diga-se, com toda a segurança e ênfase, que fomos, como pioneiros, os grandes mestres do velho Continente que nos seguiam, perseguiam e conquistavam o que havíamos primeiro organizado. Atingíramos, as madeiras, a cana do açúcar, os novos pescados… nos Açores e na Madeira; o Rio do Ouro, o Ouro da Mina, a Costa da Malagueta, as terras dos Escravos, a Costa do Marfim, o comércio muçulmano por Gibraltar e, mais tarde, a Norte de Moçambique; os mercados da Índia, da China e do Japão, depois do Ouro e do Açúcar dos diamantes, esmeraldas e das gemas semi-preciosas do Brasil, e do tabaco e do café das Ilhas de Cabo Verde. Os mercadores nacionais eram insuficientes, tal como os Portugueses que teriam de ser dispensados para suster um Império desmedido e único na História do Mundo Moderno.

(1) M. Boulet-Saetel, “Le Commerce Médiéval Européen”, in Histoire du Commerce, dir. por J. Lacour-Gayet, tomo II, Paris, 1950. E. Chapin, Les Villes des Foires de Champagne, des origins au début du XIVème siècle, Paris, 1937; Robert-Henri Bautier, “Les Foires de Champagnes. Recherches sur une evolution hisrtorique”, in Récueils de la Société Jeanj Bodin: La Foire, 1935; H. Dubois, Les Foires de Chalon et le Commerce dans la valée de Saône à la fin du Moyen Âge (vers 1280 vers 1430), Paris, 1976.

(2) P. Boissonnade, Le travail dans l’ Europe chrétienne au Moyem Age, V-VI siècles, Paris, 1921, pp. 210 e ss..

(3) Cf. A. H. de Oliveira Marques, Hansa e Portugal na Idade Média , Lisboa,  Cosmos,  1959

(4) Henry Pirenne, Les villes du Moyen Âge, Bruxelas, 1927 ;  Histoire de Belgique, Bruxelas, 1929. Ver Tatiana Sander, A Actividade Notarial e sua Regulamentação, Brasilo, Uberaba, 2010, Ano VIII, n.º 650. Ver Google, Portal “Boletim Jurídico”, pdf.

(5) Luís Garcia de Valdeavellano, “El mercado. Apuentes para su estúdio en León e Castilla en la Edad Media”, in Anuario de historia del Derecho Español, tomo VIII, 1931, pp. 201-405; Filippo Carli, Il mercato nell’alto Medio Evo, Pádua, 1934; Il mercato nell’atà del comune, Pádua, 1936.

(6) IAN/TT, Chanc. de D. Afonso V, l.º 2, fl. 108. Vide Virgínia Rau, Feiras medievais Portuguesas. Subsídios para o seu estudo, Lisboa, Editorial Presença, 1982, doc. XV, pp. 188-189.

(7) João Silva de Sousa, “O Vocabulário de Aquilino. Uma só palavra!”, in Letras Aquilinianas.n.º 1, Viseu, 2007, pp. 135-145.

(8) IAN/TT., Chanc. de D. Afonso V, l.º 4, fl. 21.

(9) Ibidem.

(10) Fr. Joaquim de santa Rosa de Viterbo, Elucidário…, tomo I, ed. crítica de Mário Fiúza, Porto-Lisboa, Livraria Civilização, 1965, pp. 441-442.

(11) Veja-se João Silva de Sousa, “As Feiras em Portugal na Idade Média”, in Feiras. A Escola e os Descobrimentos, Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, pp. 7-35.

(12) IAN/TT., Chanc. de D. João I, l.º IV, fl. 11v. Ver Virgínia Rau, Feiras…cit., pp. 187-188.

BIBLIOGRAFIA

Além das obras e fontes manuscritas indicadas em notas de rodapé, chamamos a atenção do leitor para estas seguintes:

AMZALAK, M. B., As Feiras em Portugal, Lisboa, 1922;

CHAPELOT, Jean e FOSSIER, Robert, Le Village et la maison au Moyen Âge, [Paris], 1980.

CARLI, Filippo, Il mercato nell’alto Medio Evo, Pádua, 1934 : Il mercato nell’ età del comune, Padua, 1936.

DEL TREPPO, Mário, Els mercaders catalans i l’expansió de la Corona catalano-aragonesa al sigle XV, Barcelona, Curial, 1976.

DUBY, Georges, “La révolution agricole médiévale », in Revue de Géographie de Lyon, Vol. XXIX, 1954, pp. 361-366.

GARCÍA DE VALDEAVELLANO, Luis, « El mercado. Apuntes para su estudio en León y Castilla en la Edad media”, in Anuário de Historia del Derecho Español, tomo VIII, , 1931, pp. 201-405.

LE GOFF, Jacques, « Au Moyen Âge : Temps de l’ Église et temps du Marchand », in Études Suisses d’Histoire Gánerale, Vol. XVII, 1959.

RENOUARD, Yves, Les hommes d’affaires italiens du Moyen Âge, 2.ª ed., Paris, Armand Colin, 1968.

-----Les villes d’Italie de la fin du Xème siècle au début du XIVè siècle, Vols. I e II, Paris, 1969.

SOUSA, João Silva de, Dos privilégios outorgados por D. Afonso III (1252-1273), sep. da Atlântida, Angra do Heroísmo, 1980.

-----Das isenções do pagamnento de impostos e da prestação de serviços régios e concelhios (1449-1451), sep. da Revista da FCSH da UNL, n.º 5, Lisboa, 1993.

João Silva de Sousa. Prof. da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Académico Correspondente da Academia Portuguesa da História)