Joana Ruas lê a sua palestra na 8ª Bienal.
Foto TriploV
::::::::::::::::::::::JOANA RUAS:::::::::::::::::

Aproximar o  distante — Do Estranho ao familiar
Duas Experiências : Timor-Leste  e Guiné-Bissau

Palestra proferida na 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará. Fortaleza, 12-22 de Novembro de 2008

INDEX

a) A Herança dos Conquistadores

b) O duplo imperativo contraditório presente em dois contos: "Folhas Vermelhas" de William  Faulkner e "O Meu Tio o Iauaretê" de João Guimarães Rosa

c) Almamundo - uma  experiência com o povo de  Timor-Leste.
 
d) A Luta é a minha primavera - a minha experiência na Guiné-Bissau.

BIBLIOGRAFIA

O duplo imperativo contraditório

Partindo da constatação de que tratando-se de gente de raças diferentes coabitando no mesmo espaço, o contacto relacional não significa nem união das pessoas nem obra comum, abordarei o tema da 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará, A Aventura Cultural da Mestiçagem, em duas obras que considero fulcrais na análise da problemática da experiência do Outro, individual ou colectivo, ainda em fase de elaboração de uma linguagem mutuamente inteligível: Red Leaves (14) do escritor norte-americano William Faulkner  e  Meu tio  o iauaretê (15) do escritor brasileiro  João Guimarães Rosa.

Na Nova-Guiné, Gregory Bateson (1904-1980), observou o rito da troca de papéis entre homens e mulheres, afim de se comunicarem através de experiências mútuas, rito que esteve na base de uma sua obra intitulada Naven. Naven é uma cerimónia destinada a que cada um dos participantes interiorizasse a necessidade de viver com a sua própria realidade e contingência e com a realidade e contingência  própria do outro. Posteriormente, depois da Segunda Guerra Mundial, Gregory Bateson(16) , já em Palo Alto, voltou-se para o estudo do alcoolismo e da esquizofrenia no Veterans Administrating Hospital, tendo desenvolvido, com outros pesquisadores, a teoria do duplo vínculo ou duplo imperativo contraditório. O fenómeno do duplo vínculo ocorre quando uma pessoa se acha simultaneamente  diante de mensagens contraditórias de aceitação e rejeição. Nessa situação, as comunicações interpessoais colocam uma pessoa  na incapacidade de poder raciocinar, tornando-se numa presa com fracas hipóteses de escapar ao imperativo do duplo vínculo. Na situação de presa,  as mensagens que lhe chegam da fala dos seus perseguidores, apenas lhe permitem perceber o estado da situação em que se acha, e essa mensagem está integrada no uso do perseguidor, na sua complexa trama de interesses e valores.

Folhas Vermelhas de William Faulkner

Em 1930, William  Faulkner publica  Folhas Vermelhas, título que foi buscar às folhas do ácer ( acer rubrum L.), árvore nativa do continente americano cujas folhas  no outono se coloram de vermelho. Neste conto, as folhas vermelhas são uma metáfora  do outono dos Índios Chickasaw, da catástrofe que acomete o povo índio cujo  mundo se afunda no inominado: «O mundo está a cair aos bocados, está a ser arruinado pelos brancos», sentencia um dos Índios. Faulkner  contextualiza neste conto traduzido para português pelo escritor  Jorge de Sena, o conflito racial entre brancos, índios e negros num país onde o branco é senhor. A acção do conto centra-se num meio social em que cada grupo está fechado sobre si próprio e  em que a palavra  está sujeita ao  sistema de representações da comunidade dominante.  Cada grupo está, por assim dizer, encerrado no campo de concentração do seu inconsciente colectivo, tornando difícil a  comunicação entre homens de raças diversas. Nos Estados Unidos da América de então, o negro não se integrava nem no mundo dos brancos nem no mundo dos índios. Entre brancos e índios, a linguagem de nada servia  e sendo cada uma delas inacessível aos outros, tornava-se impossível estabelecer a ordem entre os homens, o  que levava  a que cada um dos grupos  perdesse o sentido do real, o que inviabilizava, a curto prazo,  a concretização de uma   nação coesa, posto que a nação  supõe a etnia mas ultrapassa-a. É no contexto da  constituição de um capitalismo central que permitisse que a formação nacional assumisse consistência que as campanhas contra a abolição da escravatura se inserem.

Na guerra da Secessão, os Índios Chickasaw lutaram ao lado dos confederados que eram  partidários da escravatura. Faulkner alude à origem asiática dos índios como sendo semelhantes a estátuas do Sião ou Sumatra. Em Folhas Vermelhas, o romancista não deu nome ao moço  negro  que é o personagem à volta do qual o conto gira, porque na época a que este conto se reporta, o negro não era considerado uma pessoa, não entrando, por essa razão,  na ordem social dos grupos instalados. Oriundo da Guiné, o moço negro que viera cativo dos Camarões por um traficante, é descrito pelo  escritor como tendo as  faces semelhantes a máscaras mortuárias de macacos. O moço negro fazia parte do rebanho de escravos negros que eram propriedade dos Índios. Recoletores, os índios não sabem o que fazer ao rebanho de negros e para lhes darem uma serventia, obrigam-nos a cultivarem os campos  como faziam os Brancos,  não os encarando, no entanto,  como instrumentos de trabalho, mas como animais   integrados no seu universo religioso. Faulkner contextualiza, desde logo,  a insegurança social e ontológica dos negros. Na cosmogonia índia, o chefe é imortal e deve levar para essa outra vida os animais que o acompanharam de perto. Joseph de Maistre na sua obra Eclaircissement sur les sacrifices, observa  que, entre  as vítimas animais, eram escolhidas as que possuíssem, em relação ao homem, pelo instinto e pelos hábitos, algo de humano. O moço negro, como escravo do chefe, comia do seu prato. Agora que o chefe morrera,  tal como o cavalo e o cão, ia ser abatido para o acompanhar no além. Para não ser sacrificado, fugiu. A sua perseguição processa-se numa grande lentidão, naquela sem pressa implacável que caracteriza os índios para quem, segundo Faulkner, o tempo é agora e agora é hoje. A sua fuga era para nenhures pois  não tinha para onde ir naquela terra onde era um estranho para os dois grupos dominantes. O moço negro ainda quis  ir ter com os outros escravos negros à mata, onde eles estavam tocando  os tambores, mas   não achou entre os seus quem o ajude a escapar. Os outros negros também não o recebiam senão na sua qualidade de vítima,  posto que nas culturas dos vários povos negros que constituíam aquela comunidade, era desse modo que se tratava a vítima  de um sacrifício ritual.

Os seus  dois  perseguidores índios, reconheciam que ele jamais suara nos campos trabalhando como os outros negros, e que tendo comido do prato do chefe fora um privilegiado. Quando o moço negro, escondido, contemplava o cadáver do chefe morto, sentia-se dividido pois reconhecia-se   simultaneamente um familiar do dono que com ele partilhara o prato, e  um escravo considerado um animal pela tribo. O escritor exprime a opressão do duplo imperativo contraditório  com a frase do moço negro: «ouvia duas   vozes, a sua  e a de si mesmo». Aquela frase do moço negro era a expresão do  ponto em que alguém se perde dentro de si mesmo, ainda sem se achar,  dissipando a sua energia psíquica no esforço simultâneo de decifrar a sua realidade e interpretar a realidade do mundo social que o envolve. O movimento da sua fala não se dirige já ao mundo mas a si mesmo. Trata-se de uma vida que está a ser vivida em dois planos. É a limitação da sua existência a dois termos  opostos, o do seu Eu e o do Mundo. Para ele, o futuro era a morte pois só no passado ele sentia que estivera vivo.  Enquanto  acossado, o seu presente apenas o intuía como um abismo em que se afundava. Os índios nunca o maltratam e, no entanto, vão matá-lo. O escritor denuncia  a violência criminal do sacrifício, envolvendo-se nessa denúncia como parte de uma civilização em que  a violência  para com os outros povos,  pode ser considerada em termos de sacrifício, que não obedecendo a qualquer rito religioso, apenas visava a ocupação do território e a espoliação dos seus recursos. Uma civilização é  considerada como tal se nela houver trabalho e escrita.O negro, pelo trabalho e pela mestiçagem com o branco, vai prosperar e interiorizar os valores humanos e de cidadania. Através do trabalho, os negros integraram-se na civilização do Branco enquanto o Índio, pelo contrário, dele se afasta como o escritor amplamente regista na sua obra O Urso, publicada em 1942. Em O Urso, o homem apenas sobrevive esmagado e a mestiçagem, sendo condenada pelos Brancos  não o é entre negros e índios. O mestiço de índio e escrava negra, Sam Fathers, tornou-se caçador de ursos. É prisioneiro da sua própria história sem a conhecer.Como notou Michel Butor, a identidade de nome apenas se produz no interior de uma mesma família e implica a existência de um único modo de comunicação.Com a morte de Sam,  a raça índia extingue-se e a ordem antiga que ligava o homem à floresta e aos seus animais, termina. Roger Bastide estudou o movimento mitográfico no interior de fenómenos históricos, reais, como os que dizem respeito à resistência e adaptação das culturas «negras» no Novo Mundo.

 Finalmente, quando já está rodeado pelos seus perseguidores, estes :«Antes de chegarem ao negro, pararam, porque ele começou a cantar. Acocoraram-se em silêncio a certa distância, até que ele acabasse. Cantava algo na sua própria língua, de rosto erguido para o sol nascente. A voz era clara, cheia, de uma qualidade selvática e triste». O moço negro, ao  cantar na sua língua nativa estava de volta  ao mundo donde, aos quatorze anos, o haviam arrancado, e, tomando posse  da unidade da sua pessoa, apresentou-se aos seus perseguidores como alguém  que vai morrer como homem. E, já senhor de sua pessoa, embora o não fosse  da sua própria vida que está prestes a acabar, quando os índios lhe oferecem  de comer e de beber, rejeitando aquela familiaridade com que outrora o dono o privilegiava como a um simples animal, o seu corpo, unido ao seu espírito, recusa a comida e esta cai-lhe da boca, assim como lhe cai da boca a água que lhe vai escorrendo pelo peito. A memória das origens torna-se, então, no espelho de uma manipulação que reorganiza os vazios. Lembrar-se significou  reconstruir o sentido social das suas próprias acções, mas errando ainda entre as ruínas do afrontamento cultural.

Meu tio  o iauaretê de João Guimarães Rosa

O homem não é apenas preconceito também é imaginário e esse imaginário,  susceptível de transformação, foi a aposta dos românticos de todas as latitudes geográficas e mentais. Os escritores e poetas que no Brasil se empenharam na criação de uma literatura independente que reflectisse uma nação essencialmente mestiça como foi o caso  do escritor romântico José de Alencar, contribuíram  para a modificação do imaginário brasileiro,  tarefa fundamental  para a constituição de  uma base de coesão nacional. Embora se tenham interessado pelos conteúdos culturais destes povos, os escritores românticos  brasileiros deram-nos deles uma imagem  idílica que se deveu ao facto  do romantismo ter permanecido formalmente clássico. A sua visão é moderna enquanto os seus personagens acedem a uma existência romanesca escapando à inconsistência da vida. Segundo Maurice Blanchot, foi a Revolução Francesa que deu aos românticos  de vários quadrantes a forma nova que constitui a exigência declarativa, o brado do manifesto, estabelecendo uma troca entre os movimentos políticos libertários e os movimentos literários . Não é pois aos oradores revolucionários que os românticos vão pedir lições de estilo, é à própria Revolução, a essa linguagem feita História.  Em Diários Índios, o escritor-antropólogo Darcy Ribeiro anota, nestes diários em forma de cartas escritas a Berta, sua esposa :«Sim, o ouro da paz social, dos últimos dias felizes de um povo condenado. Uma descrição idílica da vida dos meus índios, ao gosto dos românticos antigos».

Guimarães Rosa, herda do romantismo alemão o gosto pela obra inacabada e a invenção de uma arte nova: a arte do fragmento. Esta exigência de uma palavra fragmentária, longe de ser um obstáculo à comunicação, torna-a, pelo contrário, absoluta. Não foi Novalis adepto de uma escritura plural em que o fragmento, sob a forma de um monólogo, seria um substituto da comunicação dialogada? Fragmentos como estes são sementes literárias, concluiu Novalis, para quem a arte de escrever livros não estaria ainda descoberta na sua época.

Considerado louco, Hölderlin , depois de ter apoiado entusiasticamente os ideais da Revolução Francesa, obrigado a separar-se do grupo de conspiradores de que fazia parte, defendeu-se da sociedade encerrando-se durante os últimos trinta e seis anos da sua existência no sotão da casa do marceneiro Zimmer em Tubinga. Georg Bûchner(1813-1837) que se situou como Holderlin  à margem do movimento romântico do seu tempo, criou personagens vivendo num mundo onde a comunicação é inexistente e a solidariedade impossível . Baseado no Diário do pastor Oberlin que acolheu Lenz em 1777 , cria uma  obra a que dá o título de  Lenz , dando-nos todas as impressões da natureza através do olhar deformante de um homem considerado um doente mental  em que o mundo exterior é dado como vacilando entre o estado de repouso e a alucinação.

O primeiro hospital psiquiátrico do Brasil foi inaugurdo por Dom Pedro II em 1852 no Rio de Janeiro. A primeira lei brasileira que regula o atendimento aos doentes mentais data de 1852 e em 1881 foi criada na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro uma cadeira de doenças nervosas e mentais. Logo em 1882, Machado de Assis publica O Alienista, obra em que  Machado de Assis nos revela a tendência para o isolamento  da psiquiatria do campo da medicina geral, denunciando que o internamento forçado e o isolamento dos doentes se deviam a razões políticas e de ordem pública e económica, antecipando com esta obra  a revolução antipsiquiátrica.

João Guimarães Rosa exerceu medicina num hospício em Barbacena. Ali adquiriu basta experiência das desordens da mente humana. Assim,  em Recado do Morro, conto do volume A Aventura nos Campos Gerais, Guimarães Rosa apresenta-nos vários tipos de homens solitários: Gorgulho, um ermita vivendo numa  gruta no morro da Garça, morro que Guimarães Rosa diz belo como uma palavra; um outro,  apregoando o fim do mundo e a quem o povo chama  Nomindome por falar em nome de Deus; em meio urbano, surge o colector que vivia  ensandecido pelos transtornos e pelas desordens da vida  e que vivia feliz pintando as paredes de cifras. Nos Gerais,  o povo parece ter interiorizado a célebre frase de  Rimbaud: «Je trouve sacrée le desordre de mon esprit».

Guimarães Rosa, no seu conto Meu tio  o iauaretê , incluído  no volume Estas Estórias, ao colocar  o drama da  falta de comunicação entre culturas diferentes, assume o lado  obscuro deste relacionamento, enquadrando-o, portanto,  na problemática da reconstrução da memória colectiva. Guimarães Rosa não recusa o legado romântico, antes o aprofunda  na medida em que o problema romântico é o dos sentidos e o seu campo o conjunto histórico das atitudes humanas, o que nos convida a compreender a história através do conjunto dos seus arquétipos mitológicos. Já Claude Lévy-Strauss em O Homem Nu, afirma: «Os mitos não nos instruem sobre a ordem do mundo, a natureza do real, a origem do homem ou o seu destino. Mas ensinam-nos muito sobre as sociedades donde provêem, eles ajudam a expor os mecanismos  íntimos do seu funcionamento, esclarecem sobre a razão de ser das crenças, costumes e de instituições de cujo alinhamento parecia incompreensível à primeira vista».

O tema central deste conto é o do contacto entre um branco que tendo-se perdido da sua comitiva, se acha sozinho no mato, e um  mestiço,  filho de uma índia Tupinambá e de um branco. Cerca-os a noite e à volta do casebre rondam as onças. O Índio acolhe-o  e oferece-lhe  como cama o jirau do seu falecido companheiro, um  negro.  Se a hospitalidade significa aceitar o espaço como lugar do encontro sem medo de o perder,  por parte do índio, a sua atitude parece ser de aceitação de uma presença estranha. Vivendo no extremo da solidão humana num estado esquizóide em que  há ruptura nas suas relações com o mundo e também ruptura consigo mesmo,  o índio que preza o contacto, começa a falar e falará cada vez mais à medida que tem pela frente o silêncio fechado do intruso. Guimarães Rosa, através das mudanças no registo da fala do mestiço, vai-nos comunicando todas as perturbações que assolam os protagonistas. Enquanto o índio fala de si dando-se ao conhecimento do outro, o intruso desloca-se no interior da cabana para reconhecimento do território com intuitos de defesa. A sua movimentação e  rebuscamento  dos pertences ali existentes desorientam o seu hospedeiro que o interroga sobre as suas motivações, obtendo como  resposta outras perguntas ou monossílabos que apenas visam obter uma informação útil. Gestuais ou decorrendo dos seus gestos, as interrogações do intruso são sem voz. O convite repetido para que o intruso fale, denota, da parte do índio,  uma ilusão inerente à reconstrução colectiva do passado. Estas ilusões são consubstanciais à própria ideia de uma partilha cultural das memórias individuais. Entre os que  partilham  aquele exíguo espaço, há a memória lembrança e a memória hábito. A memória lembrança e a memória hábito opunham-se pois uma estava dotada do contexto mítico e a outra do contexto histórico  dos lugares onde se produziu a epopeia da colonização das terras índias e que é parte de uma memória e de uma identidade cultural hegemónica, política e económica que se exprime como exercício de uma missão. Comportando-se desde logo como senhor do espaço, o intruso, para o completo  domínio desse espaço oferece cachaça ao seu hospedeiro . A oferta da cachaça não se destina ao convívio pois só o índio bebe, oferecendo-se-nos desde logo o diagrama do pensamento vigilante, consciente e dominador perante o pensamento delirante, mítico e inconsciente do submetido.

Analogicamente, saber é recordar-se, e recordar-se é comunicar com a sua origem. Do seu passado, o índio  apenas recorda o seu lado materno, aquele lado que o vinculou ao povo das onças. Traiu o seu povo quando começou matando as onças, seus parentes,  com a finalidade económica da venda das suas peles. O remorso dá sentido ao seu presente a ponto de pensar o seu futuro como um regresso à origem, à mãe, ao povo das onças, aos Tupinambá vivos. Deixou de ser caçador quando, posto no contacto com as onças e os animais do mato, lhes apreendeu os comportamentos de seres concretos que vivem oscilando entre a necessidade e a satisfação dessa necessidade. O pai rejeitou-o,  isolando-o naquela fronteira de expansão e, para fugir à  violentação das suas raízes, quer internar-se no mato pois conhecendo a inflexibilidade das suas  leis as prefere à arbitrariedade. No seu desespero e solidão, o mestiço sentia necessidade de se tornar visível e reconhecido para poder conservar o seu sentimento de realidade e de identidade. O mestiço queria despertar do pesadelo em que se achava, confiava no intruso, crente que este lhe poderia abrir as portas da prisão em que o seu eu, o verdadeiro eu, estava encerrado. Antonho vai lendo para o intruso o que para  este é invisível: o mundo que a mata  abriga . Toda a mitologia está sub-ordenada a uma cosmogonia e na dos Tupinambá, o jaguar ou onça estaria na origem do fogo doméstico. Claude Lévy-Strauss em o Homem Nu refere que o conjunto do sistema repousa em três oposições: entre o fogo terrestre e a água celeste, a humanidade e o jaguar, entre o cru e o cozido, isto é, entre a cultura e a natureza, a humanidade e a animalidade. 

 O discurso do índio traduzia a possibilidade de domesticação das onças. Em  Des Choses cachées depuis la fondation du monde (17), René Girard escreve que  entre os nossos antepassados, a caça era ritual e não  servia para a alimentação dado que o homem, sendo omnívoro é  tendencialmente vegetariano. Para este autor, o que esteve na base da domesticação dos animais não foi a exploração económica mas para serem utilizados como  substitutos humanos de uma vítima que serviria de mediador  entre a comunidade e o sagrado, entre o dentro e o fora. Para domesticar os animais, foi necessário que o homem os instalasse junto de si e que os tratasse como se eles não fossem animais selvagens, como se eles tivessem uma predisposição para viverem na vizinhança do homem e levarem uma existência quase humana.

O hóspede, gordo, bem vestido, não pertencia ao «homo coriaceus» como Guimarães Rosa chama, em Pé-duro, chapéu-de-couro, ao vaqueiro, ao povo do boi, os que surgiram da «idade do couro». Seria talvez um patrão de vaqueiros. O  intruso, como não entende a fala do índio que é em Língua Geral  Amazônica, língua que  com a Língua Geral Paulista, foram as línguas faladas no Brasil até ao decreto do Marquês de Pombal, em 1759, parte do princípio de que aquele falar  é princípio de loucura ou afirmação agressiva de alteridade.  Se o intruso falasse, poder-se-ia criar um espaço de entre-meio   partilhável. O   face a face vai-se  tornando  desigual pois ao delírio do índio o intruso responde amiúde com a bala do silêncio. O diálogo foi assim perdendo os pontos de apoio, a confiança cai, dando-se  a explosão do princípio de individuação a partir do qual é  o pensamento falando e a fala pensando. Diante  do fogo e bebendo cachaça, o ambiente torna-se  propício ao voo falante de um  pajé. O pajé é capaz de penetrar em mundos considerados impenetráveis. O mestiço Antonho vive como um ermita, o que nos recorda a obra que Gustave Flaubert (1821-1880) publica em 1874, La Tentation de Saint Antoine. Nesta obra, o ermita reconhece que :« sentia muitas vezes que algo maior que eu se misturava ao meu ser; pouco a pouco eu partia no verde dos prados ou na corrente dos rios e já não sabia onde achar a minha alma, de tal modo ela era difusa, universal, expansiva». Sinal de uma harmonia e de uma ligação universais, na experiência da possessão como mimésis histérica, o indivíduo parece obedecer a uma força vinda do exterior. Os fenómenos de possessão, tais como  incarnar e expulsar, podem ter um papel de remédio ou de doença e também dos dois ao mesmo tempo, segundo as circunstâncias  e os casos.Quando os ritos se desagregam, os elementos que entram na sua composição tendem uns a desaparecer e outros a emergir sob a forma de entidades independentes e isoladas do seu contexto. O duplo monstruoso apresenta-se no seguimento e no lugar de tudo o que fascinava os antagonistas nos estados menos avançados da crise. O mestiço intuía no seu hóspede uma mesma fascinação pelas onças. No  índio essa fascinação leva-o  a uma metamorfose, não quer ser uma onça qualquer  mas um ser semelhante a uma onça mítica. Antonho, convicto de que, devido à sua metamorfose, já  não haveria constância no seu rosto, pergunta ao seu hóspede se tem consigo um espelho. É o fenómeno da dupla visão em que ele vê a metamorfose a manifestar-se em si e fora dele ao mesmo tempo. Resultante da convergência de ambos no desejo da posse das onças que passam a ser objecto de disputa, a  tensão entre ambos agrava-se .No índio porque condena a caça lucrativa a que o obrigaram, e no Branco porque o índio, na sua recusa, lhe surge como um obstáculo a essa caça. Tal como caçava as onças para o patrão, Antonho, dominado pela cachaça, na sua alucinação, torna-se onça e caça gente para as onças. A erupção dionisíaca a que o índio apela é a ruína das instituições, o afundamento cultural que nos é significado pelo apelo à cumplicidade do seu hóspede no massacre dos companheiros  que este espera pela manhã. O sacrifício dessas vítimas tinha por finalidade a reconciliação. Eram necessárias essas vítimas posto que a presença da superioridade agressora dada pela arma do hóspede instala, entre ambos, um  clima de hostilidade.

Em L’Ordre du discours, Michel Foucault  chama a nossa atenção para «os três grandes sistemas de exclusão que atingem o discurso: a palavra proibida, a segregação da loucura e a vontade de verdade, os quais  se cruzam, se reforçam ou se compensam formando uma rede complexa e mutante».

 Convido-vos agora para  uma digressão  pelo universo mental do hóspede do índio. Aos olhos do hóspede, o nheêngatu surge como uma  patologia da comunicação na língua falada: gaguez, falsa ligação, acentos regionais, disfonia, cacofonia. O duplo imperativo contraditório é uma dupla rede de imperativos contraditórios nos quais os homens mutuamente se encerram. À medida que o seu hospedeiro  parece encarnar uma onça, ele  começa a sentir-se uma presa. Nas tragédias, há uma perda gradual da diferença entre o homem e o animal, situação sempre ligada à violência. Na tragédia de Eurípedes, As Bacantes, Agavé, a mãe de Penthé, tendo visto o seu filho sob o aspecto de um leão, despedaça-o com as mãos. Nas tragédias gregas e neste conto, a metamorfose  induz o crime. O índio, dominando a expansão do seu pensamento, afirma-lhe que não pôs a mão no chão para andar a quatro patas como a onça, que é um homem.

 Assistimos então à metamorfose  de um cidadão que, não tendo interrompido o delírio do outro, antes  tendo-o  provocado dando-lhe cachaça em abundância, se transforma no justiceiro que apaga o delírio, matando o delirante. O branco não consegue intervir culturalmente para parar o encadeamento espontâneo do delírio do índio. O Branco acredita que o seu acto nada tem a ver com o sadismo gratuito pois julga que  não está orientado para a violência mas para a ordem, e que se matou foi  para acabar com a violência. Ora a fabricação da cachaça não está na  tradição do índio, é um  elemento cultural alheio à sua comunidade de origem e do qual deriva um comportamento incontrolável. O Branco, perante as mensagens contraditórias que lhe chegam da sua interpretação da fala do índio, começou a sentir-se invadido pela consciência imperiosa de um estado de urgência.Contudo, a complexidade dos problemas que o assaltam e o  tempo demasiado curto de que dispunha para operar uma síntese viável, paralizam-no. Apesar de sóbrio, por medo do desconhecido onde não ousou penetrar, incapaz de  instalar a passagem para uma identidade comum, a atitude do branco foi um mergulho no irracional. No delírio do índio há racionalidade, a narrativa apresenta-se coerente pois o irracional não é sinónimo de caos. Há maior estabilidade no universo mágico do índio  do que na racionalidade do intruso que  perante os dados do real que lhe vêm do  falar do índio,  implica, na sua decisão, os fantasmas irracionais do seu Outro, na medida em que  cada um deles traz consigo o seu próprio  fantasma ou ideal. São inúmeros os alertas do índio em relação ao revólver. Em La Pensée Sauvage, Claude Lévy-Strauss escreve que  o revólver, engenho fabricado pela indústria, aproxima o homem da condição animal. Para Claude Lévi-Strauss, o pensamento selvagem não é o pensamento dos selvagens. É o pensamento em estado selvagem presente em todo o homem — contemporâneo ou antigo, próximo ou distante — enquanto não cultivado e domesticado a fins de rendimento.

Bachelard já nos prevenira de que: «Desde que a imaginação aérea desperta, o reino do silêncio fechado acaba. Então começa o silêncio que respira. Começa então o reino infinito do silêncio aberto». Guimarães Rosa já havia dado a uma obra sua o título de Ave, Palavra,  pois jamais sabemos aonde nos levam as asas das palavras. A palavra obriga o pensamento a segui-la nesse sonhar alto que é o retomar da sua liberdade. Neste conto, Guimarães Rosa  reconduz a linguagem da gramática ao puro poder de falar, e aí encontra o imperioso e selvagem ser das palavras como escreveu Michel Foucault. A vida social das sociedades pré-urbanas rege-se pelo parentesco. Durante séculos falou-se de um mudo e eis que o escritor recupera a sua linguagem abolida. João Guimarães Rosa, autor e personagem do conto, é o sobrinho do mestiço, ele conta-nos como morreu o seu tio Iauaretê, o tio que pertencia ao povo das onças.

JOANA RUAS. Escritora portuguesa. Obras:

Na Guiné com o PAIGC, reportagem escrita nas zonas libertadas da Guiné em 1974, edição da autora, Lisboa, 1975;no jornal da Guiné-Bissau , Nô Pintcha, redige, em 1975, a página de literatura africana de língua portuguesa. Traduz textos inéditos de Amílcar Cabral escritos em língua francesa e recolhe na aldeia de Eticoga (ilha de Orangozinho, arquipélago dos Bijagós), a lenda da origem das saias de palha; Corpo Colonial, Centelha, Coimbra, 1981 (romance distinguido com uma menção honrosa pelo júri da APE; traduzido em búlgaro); Zona (ficção), edição da autora, Lisboa, 1984 (esgotado); O Claro Vento do Mar, Bertrand Editora, Lisboa, 1996; Amar a Uma só Voz ( Mariana Alcoforado nas Elegias de Duíno), Colóquio Rilke, organizado pelo Departamento de Estudos Germanísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,  Edições Colibri, Lisboa, 1997 e publicado no nº 59 da  revista electrónica brasileira AGulha (www.revista.agulha.nom.br;  A Amante Judia de Stendhal (ensaio), revista O Escritor,  n.º 11/12, Lisboa, 1998; E Matilde  Dembowski ( ensaio sobre Stendhal), revista O Escritor, nº13/14, 1999 ; A Guerra Colonial e a Memória do Futuro, comunicação apresentada no Congresso Internacional sobre a Guerra Colonial, organizado pela Universidade Aberta, Lisboa, 2000; A Pele dos Séculos (romance), Editorial Caminho, Lisboa, 2001; tem publicação dispersa em prosa  por vários jornais e  suplementos literários. Participou  com comunicações nas Jornadas de Timor da Universidade do Porto sobre cultura timorense e sobre a Língua Portuguesa em Timor na S.L.P. A sua poesia encontra-se dispersa por publicações como NOVA 2 (1975), um magazine dirigido por Herberto Helder; o seu poema Primavera e Sono com música de Paulo Brandão foi incluído por  Jorge Peixinho no 5º Encontro de Música Contemporânea promovido pela Fundação Gulbenkian e mais tarde incluído no ciclo Um Século em Abismo — Poesia do Século XX realizado no C.A.M.;  recentemente  publicou poesia nas seguintes publicações : Antologia da Poesia Erótica, Universitária Editora; Cartas a Ninguém de Lisa Flores e Ingrid Bloser Martins, Vega ; Na Liberdade, antologia poética, Garça Editores; Mulher, uma antologia poética integrada na colecção Afectos da Editora Labirinto; Um Poema para Fiama, uma antologia publicada pela Editora Labirinto; excertos do seu romance inédito, A Batalha das Lágrimas foram publicados em Mealibra,  revista de Cultura do Centro Cultural do Alto Minho.Na revista Foro das Letras foi publicado o seu  Caderno de Viagem ao Recife.