Joana Ruas lê a sua palestra na 8ª Bienal.
Foto TriploV
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Aproximar o  distante — Do Estranho ao familiar
Duas Experiências : Timor-Leste  e Guiné-Bissau

Palestra proferida na 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará. Fortaleza, 12-22 de Novembro de 2008

INDEX

a) A Herança dos Conquistadores

b) O duplo imperativo contraditório presente em dois contos: "Folhas Vermelhas" de William  Faulkner e "O Meu Tio o Iauaretê" de João Guimarães Rosa

c) Almamundo - uma  experiência com o povo de  Timor-Leste.
 
d) A Luta é a minha primavera - a minha experiência na Guiné-Bissau.

BIBLIOGRAFIA

Timor-Leste: a  almamundo

Ao abordarmos o problema da identidade do povo timorense, temos de nos reportar a uma continuidade que pertence ao domínio da cultura ( antropologia e etnologia) e a uma descontinuidade que  é do domínio da história. No que à sua cultura se refere, o povoamento da Oceânia fez-se há 3000 anos AC, quando os habitantes do litoral do sul da China atravessaram o estreito e se instalaram em  Taiwan espalhando-se depois pelas Filipinas, Celebes e Timor e de lá para as outras ilhas do arquipélago indonésio. O reino hindu-budista de Sriwijaya da dinastia Cailindra que data de 672 deixou vestígios de escrita pâli nas ilhas da Sonda ou Sonda Menor e entre os Batak de Sumatra onde tinha, em Palembang, a capital. Ao longo dos séculos, os juncos chineses provenientes de Fukien e Kwangtung visitavam a ilha de Timor periodicamente  aportando ao porto de Suai onde se abasteciam de sândalo. Em 1432, a mando do imperador, o almirante chinês Cheng-Ho, na sua sétima visita às terras habitadas na periferia da China, estabeleceu relações de suserania em Timor sem pretensões de domínio ou de colonialismo.

Lifau, cuja palavra significa Mar de Gente, era um porto do Oekussi, situado nas margens da foz da ribeira Lifau e seria outro porto  chave na rota do sândalo.O salutífero e cheiroso sândalo como o adjectiva Luís de Camões em Os Lusíadas, era  também comerciado em Lifau. Salutífero porque a raíz do sândalo era usada como medicamento e cheiroso porque era queimado nos templos hinduistas e budistas. Segundo as contas dos Jesuítas, por volta do século Vll ou Vlll, chegaram às praias de  Lifau, oriundos do reino de Bé Hali, cinco forasteiros:  Tá'e Baria, Liulai Sila, Somba'i Sila, Afo'an Sila e Benu Sila, todos irmãos menos o primeiro. Eles dividiram entre si, na melhor concórdia, toda a ilha de Timor. Benu Sila ou Ambenu ligou o seu nome ao território que ficou conhecido como Ambeno. Séculos depois dos Silas, chegaram os portugueses e holandeses. Em terras de Silabão, que quer dizer  a terra dos cinco silas ou mandamentos budistas, recordava-se Achoka, o primeiro rei que num edicto histórico proibiu a guerra por a considerar incompatível com a condição humana.

Em finais do século XV, o império budista de Madjapahit caiu sob o poder dos maometanos árabes de Marrocos, tendo-se os budistas refugiado nas Ilhas da pequena Sonda ou Sonda Menor como Lombok, Flores, Timor e Ceram onde prevaleciam ainda as religiões arcaicas dos povos autóctones.  Estes núcleos de budistas e mais tarde também  de cristãos, viveram até finais do século XIX entre estes povos. Em 1511, Afonso de Albuquerque conquista  Malaca  e ao dominar os estreitos de Malaca, acabou com a talassocracia árabe no Oceano Índico. João de Barros, na sua obra intitulada Ásia, conta que  criados por Afonso de Albuquerque com o propósito de estabelecerem uma ponte com as comunidades locais, os casados desligavam-se do estatuto de soldados e armavam os seus próprios navios. Estes soldados  e navegadores  portugueses de Malaca, Goa  e Macau, casados com mulheres timorenses, deram origem aos luso-descendentes, então chamados de portugueses negros ou   Tupasi. Estes  mercadores portugueses que contraíram matrimónio com mulheres da Ilha de Timor, deram origem a numerosas famílias, entre as quais   se salientaram  os Costa, os Fernandes e os Hornay que viriam a desempenhar ao longo da história de Timor papéis de grande relevo, quer combatendo os corsários holandeses durante o domínio de Portugal pelos Reis de Espanha, quer no longo período que precedeu a instituição do poder civil, no início do século XVIII sob o comando do governador  pernambucano António  Coelho Guerreiro, que segundo o seu biógrafo, Gregório Pereira Fidalgo, «cometeu feitos dignos de memória desde Pernambuco onde nasceu até à Pérola do Oriente(como ele designava Timor)».Os Tupasi constituíam uma burguesia ligada ao comércio do sândalo e que falava o português e o Teto no seu dia a dia. O vocábulo Tupasi ou Topasses é oriundo do dravidiano e significa simultaneamente, intérprete e cristão, isto é, alguém que possui a capacidade de estabelecer a comunicação, não só entre povos diferentes como entre grupos religiosos distintos. Quando os Portugueses chegam a Timor, surgem aos olhos dos povos das ilhas da pequena Sonda como aliados capazes de assegurarem, pelo potencial bélico e pela inventividade, a sua defesa. Pela distância a que se achavam, os Tupasi organizaram-se militar e administrativamente do que resultou um permanente conflito de interesses que ao longo dos séculos os opôs à Coroa de Portugal e à Coroa da Holanda.  Dois eurasiáticos, António de Hornay e Mateus da Costa eram dois dos concorrentes à liderança. A rivalidade criada para conseguirem a liderança, alastrou aos soldados portugueses, aos comerciantes macaenses, aos desertores holandeses e aos contrabandistas chineses. A administração militar portuguesa só muito tardiamente, em 1912, conseguiu pacificar uma população mestiçada cuja elite quis, ao longo de séculos, tomar as rédeas do comércio do tabaco, do café e do sândalo nas suas mãos e que se habituara a governar um território em que os centros de decisão se achavam a maior parte das vezes, muito distantes: em Goa, Macau, Brasil ou Lisboa.

Tendo em conta que apenas uma pequena parte da experiência humana se volve em consciência, a experiência retida sedimenta-se na memória como entidade reconhecível e recordável. Esta sedimentação intersubjectiva torna-se propriedade do «socius» quando objectivada num sistema de símbolos transmissíveis de geração em geração sob a forma de linguagem. Através da linguagem, a experiência adquire a sua dimensão acessível a todos, incorporando-a num amplo corpo de tradições. A língua  Teto pertence à grande família austronésiana que vai de Madagáscar a oeste, prolongando-se num grande semicírculo que rodeia metade do globo incluindo a Ilha de Páscoa, a este. Hoje divide-se num ramo oriental e num ramo ocidental. As línguas austronésianas orientais são as dos Melanésios, dos Micronésios e dos Polinésios do Pacífico; as ocidentais são as dos Indonésios, dos habitantes das Filipinas e da Malásia e também dos povos autóctones de Taiwan, do Champa, do Centro-Vietnam,  assim como dos Malgaches. A língua   Teto recebeu em Timor vários préstamos não só do português como do tupi-guarani que ali chegou na época do império luso-brasileiro.

 Chegaram ao longo dos séculos à Ilha de Timor várias línguas escritas : o sânscrito e o árabe. Quando o domínio dos mares da região deu ao portugueses o domínio do comércio em todo o sudeste asiático, ali chegou também o alfabeto numa altura em que  o português já era uma língua franca não só no arquipélago malaio mas também na Índia, Ceilão, Malaca, Macáçar, Amboino, Ternate e Macau. Os Tupasi não se preocuparam em escrever os feitos da sua vida de comerciantes, o que ficou escrito deve-se aos frades dominicanos que, tendo chegado a Timor depois dos comerciantes, entre 1597 e 1600 ensinaram o português e o latim no seminário de Solor a cerca de 60 alunos. Também os anónimos durubaças que exerciam a função de auxiliares e embarcadiços e que mais tarde formaram uma classe de funcionários, contribuíram para a difusão da língua portuguesa. A presença portuguesa desempenhou um papel na criação de sistemas linguísticos —  os crioulos de base portuguesa. As línguas crioulas não possuíam na maior parte dos casos, uma tradição escrita e, consequentemente, uma ortografia própria, por se tratar de línguas essencialmente orais. O malaio-português de Batávia e Tugu (descritos por Schuchardt) foram a excepção já que no século XVIII e ao longo do século XIX se publicaram  nestes crioulos: dicionários, gramáticas e  livros de orações. Toda esta produção destinava-se ao uso de estrangeiros, viajantes, administradores coloniais e missionários. Apenas a literatura religiosa encontrava leitores crioulos, o que pressupunha a alfabetização de alguns estratos desta comunidade crioula o que é confirmado pela publicação, em Colombo, de vários periódicos em língua crioula durante a segunda metade do século XIX. A literacia era excepção e não a regra nas comunidades crioulas. Os holandeses usavam tanto o crioulo português como o malaio e as primeiras gramáticas de crioulo português no sudeste asiático foram compiladas pelos holandeses.

A causa da libertação de Timor-Leste   galvanizou o Portugal democrático sem que, no entanto, nos empenhássemos no  conhecimento da sua especificidade e sem nos questionarmos sobre as origens históricas da sua tragédia no longo e complexo processo de formação da sua nacionalidade. A Resistência Timorense não começou em 1974 com a invasão indonésia mas, no que à expansão portuguesa no Oriente diz respeito, essa resistência teve início cerca de cinquenta anos depois da chegada dos primeiros portugueses a Larantuca. No que toca às populações melanésicas como às polinésicas, segundo a análise de Marcel Mauss, as lutas travadas contra a administração colonial  deveram-se  à despossessão fundiária que se seguiu à chegada dos Europeus, o que  constituiu  um fenómeno essencial pois o surgimento da propriedade fundiária acarretou uma redistribuição da propriedade lá onde ela era desconhecida. Neste contexto, em 1731 , a Casa Real de Bé-Hali que era um bastião do hinduismo,  empreendeu, a partir de Suai, a conquista da ilha de Timor, enfrentando ao mesmo tempo o poderio português e holandês.

Em contacto com o povo de Timor-Leste, já na sua causa de libertação nacional, compreendi que, como cada um deles, eu era parte de uma  almamundo. O episódio que mo revelou passou-se do seguinte modo: preparando uma conferência sobre identidade e luta de libertação nacional, a minha abordagem incidiu sobre os seus poetas que se exprimiram em língua portuguesa.  Um desses poetas, Jorge Lautém, mereceu a minha especial atenção não só pelos seus poemas impregnados de uma cultura profundamente oriental, hinduista, mas sobretudo pelo facto de Jorge Lautém  ter sido um dos que desapareceu durante a invasão para não mais ser visto. Fiquei com essa dor no coração, a dor pelo seu sofrimento e pela sua morte, pelo seu génio tão precocemente ceifado. Na esperança de ter notícias suas, sempre que me encontrava com timorenses perguntava por ele e obtinha deles esta resposta enigmática: Jorge Lautém é você. Como é normal entre nós,  eu desfazia o engano afirmando a minha identidade. Como insistissem , encarei esta atitude como um enigma posto não só à minha inteligência, como ao meu sentimento e à minha cultura. Uma vez,  ao lembrar o assassinato de Sebastião Gomes Rangel, um estudante de 18 anos cujo funeral desencadeou o massacre de Santa Cruz, espantou-me que muitos deles me respondessem, o Sebastião sou eu. Como não podia deixar de ser, esta atitude obrigou-me a repensar a problemática do Eu tal como a nossa cultura judaico-cristã o vivencia e outra, a de uma identidade plural no plano mais alargado de uma cultura oriental. Para fugirem à neutralidade vazia que caracteriza o homem reduzido  pela abjecção à errância, ao exílio, à fome, ao medo e  à doença, havia em muitos timorenses uma identidade flutuante em busca de uma  ancoragem. Ao absurdo   dilaceramento da sua  condição de homem espoliado e perseguido, para aceder a uma existência mesmo que por empréstimo, cada um deles  respondia vestindo uma identidade refúgio. Havia gente que em busca de uma concretização girava à volta de um centro vital, um centro de atracção onde, numa forma de existir morrendo sem fim,  não se anda nem se permanece. Em L’ Entretien Infini, a propósito da obra L’Espèce Humain de Robert Antelme, um sobrevivente dos campos de concentração nazis, Maurice Blanchot escreve que « o homem dos campos de concentração, o deportado, sente toda a sua impotência. Todo o poder humano está fora dele, como está fora dele a existência na primeira pessoa, a soberania individual, a palavra que diz ser. É verdadeiramente como se ele não tivesse outro Eu senão o dos dominadores aos quais está entregue sem apelo, como se o seu próprio Eu, tendo-o abandonado e traído reinasse entre os predominantes deixando-o como uma presença anónima sem palavra e sem dignidade.» Assim, fui confrontada com os horizontes do meu passado histórico enquanto cidadã de um país que dominou Timor-Leste durante cerca de quinhentos anos. O Portugal democrático empenhava-se na libertação do povo de Timor-Leste, mas esse povo que lutava com tanta coragem pela causa da sua autodeterminação, esmagado na sua integridade,  dependia ainda de um outro poder, de um outro povo e cada um deles de uma outra pessoa. Segundo Claude Lévy-Strauss, produz-se uma crise de identidade quando hábitos seculares desabam, quando modos de vida desaparecem, quando velhas solidariedades se esboroam. Quer a experiência  do colonialismo português quer a da integração na Indonésia comportavam  ainda vários  elementos destruidores  impeditivos de se integrarem no fluxo da existência, no seu movimento vivo, numa independência plena que se pudesse exprimir também literariamente.

Procurei apreender o que seria viver sem mutilar a memória. Se, eu, era ele, o poeta desaparecido, o Jorge Lautém, restava-me  acolher a sua memória. Ao ler os escassos poemas que nos legou deparei com uma nítida influência mística oriental que privilegia a descrença num eu autogénico, separado, que acorrenta os homens à vida fenoménica tal como o descreve o Dharma. Em Buda  a vida flui e é directa. Todos os métodos budistas visando a obtenção da libertação concentram todos os seus esforços na abolição da crença de um eu, fonte de todas as paixões. Para o adepto das doutrinas de Buda não é possível alcançar o verdadeiro significado das Quatro Verdades Nobres se não se compreender a impersonalidade da existência pois a vida é apenas uma  passagem no rio do tempo , fonte  de nascimentos e de mortes e de desaparecimento de fenómenos físicos e espirituais. Toda esta filosofia interdita a emergência de um eu permanente. Da confluência entre a condição do homem dada pela cultura ocidental e a ancestral sabedoria oriental, para a cultura timorense, cada humano que morre tem por si uma testemunha que toma sobre os seus ombros a sua memória, não  como se fosse apenas uma sombra errante mas  como uma presença viva . Afinal, não somos eternos no coração uns dos outros?

JOANA RUAS. Escritora portuguesa. Obras:

Na Guiné com o PAIGC, reportagem escrita nas zonas libertadas da Guiné em 1974, edição da autora, Lisboa, 1975;no jornal da Guiné-Bissau , Nô Pintcha, redige, em 1975, a página de literatura africana de língua portuguesa. Traduz textos inéditos de Amílcar Cabral escritos em língua francesa e recolhe na aldeia de Eticoga (ilha de Orangozinho, arquipélago dos Bijagós), a lenda da origem das saias de palha; Corpo Colonial, Centelha, Coimbra, 1981 (romance distinguido com uma menção honrosa pelo júri da APE; traduzido em búlgaro); Zona (ficção), edição da autora, Lisboa, 1984 (esgotado); O Claro Vento do Mar, Bertrand Editora, Lisboa, 1996; Amar a Uma só Voz ( Mariana Alcoforado nas Elegias de Duíno), Colóquio Rilke, organizado pelo Departamento de Estudos Germanísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,  Edições Colibri, Lisboa, 1997 e publicado no nº 59 da  revista electrónica brasileira AGulha (www.revista.agulha.nom.br;  A Amante Judia de Stendhal (ensaio), revista O Escritor,  n.º 11/12, Lisboa, 1998; E Matilde  Dembowski ( ensaio sobre Stendhal), revista O Escritor, nº13/14, 1999 ; A Guerra Colonial e a Memória do Futuro, comunicação apresentada no Congresso Internacional sobre a Guerra Colonial, organizado pela Universidade Aberta, Lisboa, 2000; A Pele dos Séculos (romance), Editorial Caminho, Lisboa, 2001; tem publicação dispersa em prosa  por vários jornais e  suplementos literários. Participou  com comunicações nas Jornadas de Timor da Universidade do Porto sobre cultura timorense e sobre a Língua Portuguesa em Timor na S.L.P. A sua poesia encontra-se dispersa por publicações como NOVA 2 (1975), um magazine dirigido por Herberto Helder; o seu poema Primavera e Sono com música de Paulo Brandão foi incluído por  Jorge Peixinho no 5º Encontro de Música Contemporânea promovido pela Fundação Gulbenkian e mais tarde incluído no ciclo Um Século em Abismo — Poesia do Século XX realizado no C.A.M.;  recentemente  publicou poesia nas seguintes publicações : Antologia da Poesia Erótica, Universitária Editora; Cartas a Ninguém de Lisa Flores e Ingrid Bloser Martins, Vega ; Na Liberdade, antologia poética, Garça Editores; Mulher, uma antologia poética integrada na colecção Afectos da Editora Labirinto; Um Poema para Fiama, uma antologia publicada pela Editora Labirinto; excertos do seu romance inédito, A Batalha das Lágrimas foram publicados em Mealibra,  revista de Cultura do Centro Cultural do Alto Minho.Na revista Foro das Letras foi publicado o seu  Caderno de Viagem ao Recife.