Depois da queda do Império, Stendhal decidiu fixar residência em Milão. Em 1819, o escritor, num daqueles momentos de aborrecimento que tanto detestava, tirou do pó da estante um caderno do seu Diário de 1806 e acrescentou, em nota de rodapé, que estava «mad by love», ele que até então apenas havia sido um amante do amor. O escritor pensava em Matilde Dembowski a quem amou apaixonadamente sem ser correspondido.
Matilde Dembowski (1790-1825), cujo apelido de solteira era Viscontini, quando em 1818 conheceu Stendhal na Piazza delle Galline em Milão, através do advogado e grande amigo do escritor, Giuseppe Vismara, estava separada de seu marido, o oficial Jean Dembowski, nascido em 1770 em Gora, na Polónia, mas servindo nas tropas italianas do reino da Itália desde 1806. Matilde, segundo nos conta o escritor, acusava-o de ter um carácter brutal. Esta faceta do marido e a má reputação que ela tinha na sociedade — Stendhal considerava que essa má reputação se devia à inveja suscitada pela sua superioridade intelectual —, tiveram sobre ela um poder inibidor. A má reputação de Matilde devia-se à suspeita que sobre ela recaía de pertencer à Carbonária. O Carbonarismo expandiu-se como sociedade política em França e, na Itália, sobretudo a partir de 1816 e, tendo contribuído para a queda temporal do Papa e de alguns principados e ducados, o Papa, a 13 de Setembro de 1821, lançou a sua excomunhão sobre os Carbonários e também sobre todas as sociedades congéneres.
O escritor, que admirou na vida um único homem — Napoleão —, sentiu por Matilde uma paixão tão intensa e criadora que operou na sua escrita uma mudança no seu estilo, mudança que ele próprio definiu como a passagem da simples prosa para o diálogo! No assédio a Matilde foram travadas verdadeiras batalhas mas as tácticas de conquista amorosa que ele concebia de forma algo militarista não produziram efeito algum nesta mulher igualmente amante da Liberdade e certamente já bastante experimentada neste terreno devido à sua vida conjugal e ao carácter e profissão do marido. Para esta mulher liberal, estas estratégias de conquista amorosa eram tidas como próprias de conservadores, sempre inclinados a esmagar as realidades sentimentais às conveniências sociais e económicas ou á vontade de domínio por parte do homem. A passagem da simples prosa para o diálogo de que nos fala o escritor, revela-nos a sua imperiosa necessidade de comunicar com a mulher amada afim de abolir a distância que os separava e eliminar o ruído feito à volta dela pela sua actividade política clandestina e que lhe não possibilitava um acesso aos seus pensamentos íntimos. Stendhal queria que entre ambos, pelo diálogo, se construísse um amor ideal e platónico e o desespero de Stendhal, em relação a Matilde, radicava na suposição de que só com ela esse ideal amoroso poderia vir a ser concretizado. A verdade é que ela sempre recusou entregar-se-lhe o que o feriu profundamente. Mas que espaço haveria para o amor na vida de uma mulher tão exposta como Matilde? B. Pincherle, na sua obra «Métilde nel processo dei carbonari», numa alusão à sua vida secreta , define-a como uma carbonara convicta que, intimamente, amava mais a acção política do que o amor. Da subtileza da escrita stendhaliana a respeito dela, também podemos inferir que Matilde se inclinaria para o epicurismo pois que para os discípulos de Epicuro, o discernimento é necessário à fruição do prazer. Dotada de uma inteligência clara e concisa, ela confessara-lhe um dia : «Não há uniões para sempre legítimas senão as que são comandadas por uma verdadeira afeição e uma mulher pertence de direito ao homem que a ama e que ela ama». Para ela, só o amor mútuo tornava legítima a mútua pertença entre um homem e uma mulher, tais foram os conceitos que ela lhe transmitiu e que ele anotou fielmente no seu Diário. Os liberais, tal como Bonaparte que era partidário do divórcio, apreciavam a Nouvelle Héloise de Rousseau (1712-1778) e Paul et Virginie de Bernardin de Saint-Pierre(1737-1814), autor também muito apreciado em Portugal pelos românticos e traduzido para o português pelo poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage. Tendo meditado profundamente sobre as relações entre os homens e as mulheres em contextos socio-políticos em que o conservadorismo do antigo Regime se confronta com os progressos das Luzes, Stendhal viria a retratar esta dinâmica em «A Cartuxa de Parma», através do personagem do Conde Mosca, um liberal que, tendo-se arruinado pela causa do Liberalismo, com a derrota desta corrente ideológica, para se salvar e recuperar a sua fortuna esbanjada, coloca-se ao serviço do príncipe Ernest IV de Parma. O cargo de ministro da Guerra, da Polícia e das Finanças, permite ao conde Mosca della Rovere Sorezana não só salvar as vidas dos genuínos mas naufragados partidários da causa liberal mas igualmente meter a ferros e liquidar os falsos correligionários, isto é, todos os conservadores que se haviam feito passar por liberais para arruinar esta causa. Nesta obra, Stendhal analisa com lucidez o modo como alguns liberais prosperaram e enriqueceram fazendo carreira sob o absolutismo Cartuxa de Parma, obra que foi acolhida friamente pelo público e pela crítica mas que foi saudada por Balzac como uma obra-prima, começa com a chegada dos Franceses a Milão. Na sequência da abdicação de Napoleão, um dos factos que mais marcou os Milaneses foi o massacre em Milão do conde Giuseppe Prina, ministro das finanças do Reino de Itália, na sequência de uma revolta organizada pelo general Pino, então ministro da guerra, acontecimento que ditou a sorte deste reino e assinalou o fim da época napoleónica. Para os liberais derrotados, apanhar na sua rede os conservadores era a oportunidade para as maravilhosas punições das santas vinganças como lhe chamou Riobaldo, o personagem de Grande Sertão:Veredas, obra prima do imortal escritor brasileiro, meu João Guimarães Rosa. Porque o sertão está em toda a parte e dentro de nós, Joca Ramiro morreu como o decreto de uma lei nova: à tortura e morte dos vencidos substituíra o julgamento, o que equivalia a garantir um direito a qualquer homem, mesmo vencido.
Para Mosca, também se justificavam todos os artifícios para conquistar o coração da mulher amada, daquela que o despertou para o amor deslumbrando-o com a sua beleza. Stendhal, numa carta a sua irmã Pauline, revela-lhe ter sido o retrato que fez da Sanseverina copiado do efeito produzido na sua alma pela pintura de Corregio. Contudo, mais do que a beleza física da duquesa, o que sobretudo apaixonou Mosca foi o ardor e a audácia com que ela arriscava a vida e comprometia a sua posição social por amor do jovem Fabrice, enamorado de Clélia. Fabrice, devido ao sono mágico do amor que lhe não permite ainda compreender a grandeza do amor dela nem os milagres de que este amor é capaz para o proteger ou salvar, achava-se, no seu contacto com a sociedade, fragilizado pela sua paixão por Clélia. Mosca presta assim uma homenagem sincera a alguém que como ele, na juventude, dissipa a sua fortuna e a sua posição na sociedade por um ideal social e de realização humana que não existia ainda mas que podia em qualquer momento passar a existir e achar uma concretização no plano das consciências, das instituições e da sociedade.
Dos três grandes desesperos de Stendhal, o deste seu amor não correspondido, foi o mais fecundo de todos quantos ocorreram na sua vida íntima pois tornou-se num manancial de inspiração, dando desde logo origem a «De L’Amour», uma obra constituída por anotações extraídas do seu Diário e referentes à sua relação com Matilde. Por amor de Matilde «recusou ser amante da mais amável das mulheres que até aí conhecera, e tudo isto para merecer, aos olhos de Deus, que ela o amasse».
Em Novembro de 1835, Stendhal inicia a redacção da sua obra Vie de Henry Brulard, com uma vista panorâmica sobre Roma. É do alto de uma posição privilegiada, metáfora do ponto de vista a partir do qual se desenrola esta obra, que o escritor nos vai assinalando a posição de igrejas e de outros monumentos da capital do mundo cristão que, tal como escreveu, não lhe oferecia nada para além das suas ruínas e túmulos. Nesta obra, há como que uma vista de conjunto lançada sobre as pessoas que povoaram com significado a sua vida. A escolha deste panorama de uma cidade a partir da sua arquitectura, é como se Stendhal estivesse colocando o leitor diante de um cemitério grandioso para, perante ele, estabelecer a sua cronologia do coração, recordando familiares, as mulheres amadas e alguns dos seus amigos, como se cada uma dessas recordações presentes à sua memória tivesse uma alma. Esta introdução a uma obra intimista deve-se ao seu conhecimento da evolução da pintura italiana desde os seus primórdios. Nesta obra que causa a perplexidade de quantos a abordam, há um diálogo constante com o leitor, sempre presente, e não hesitando o escritor em interpelá-lo. O escritor sente como que o nada do seu futuro, e, perante essa circunstância, cria o personagem de Henry Brulard, um ser no Tempo e ocupante de um espaço na vida que é a sua própria vida e vida de um escritor. Vie d’ Henry Brulard é uma obra que , tendo partido de uma visão de conjunto , passa para uma narrativa em que à imagem visual se alia o realismo da intimidade, arte introduzida por Giotto (1266-1336), que, aliando, nas suas obras, as sensações visuais às recordações tácteis, exalta os valores tácteis dados às impressões retinianas.
Em Vie d’ Henry Brulard, ao recordar os seus queridos mortos, o seu coração ainda estremece de saudade e amor:«Quem se lembra de Lambert, hoje, a não ser o coração deste seu amigo! Irei mais longe, quem se recorda de Alexandrine, morta em Janeiro de 1815, há vinte anos? Quem se recorda de Matilde, morta em 1825? Não me pertencem elas mais a mim que as amo, mais a mim do que a todos os outros, a mim que penso apaixonadamente nelas dez vezes por semana e muitas vezes duas horas de seguida?».Este Lambert tão emocionadamente recordado é Vincent Lamberton que morreu em 1793. Moço de sobrancelhas espessas e negras, era criado de quarto do avô de Henry Beyle e seu particular amigo e único confidente . Stendhal recorda a dor que sentiu em criança pela morte de Lambert :«A dor pela morte de Lambert foi uma dor como jamais senti outra igual em toda a minha vida, foi uma dor reflectida, seca, sem lágrimas nem consolação.» Desesperado com a morte que, arrebatando-lhe Matilde lhe rouba também a possibilidade de reverter a seu favor o estado sentimental em que quedara essa relação amorosa, incapacitando-o de alcançar o seu coração que a morte tinha tornado inacessível, Stendhal, num acesso de ciúme, não deixou de registar que, apesar de tudo, a amava mais morta que infiel. Acrescenta ainda, no seu Diário, que só depois de arranjar uma amante é que a recordação de Matilde deixou de lhe ser dilacerante, tendo-se ela tornado para ele num fantasma terno e profundamente triste que, quando lhe aparecia, o dispunha às ideias boas, ternas, justas e indulgentes. Foi Clémentine Curial quem mitigou os efeitos desastrosos da sua paixão por Matilde. Contudo, para se curar do afastamento de Clémentine, o escritor deitou mãos ao trabalho compondo Armance, um romance de um humor sombrio que reflecte não só uma perda de ordem sentimental como de ordem política uma vez que em acto parlamentar havia sido debatida e depois votada a lei de indemnização a pagar aos emigrados.
Stendhal admirava Matilde pelos seus sentimentos nobres e espanhóis. A Espanha era para os românticos uma terra de paixões mas a admiração de Stendhal pelo génio espanhol, o seu espanholismo, segundo V. Del Litto, seria um legado da sua tia-avó, Elisabeth Gagnon. Ao adoptar o pseudónimo Brulard, nome que foi buscar ao Padre Jean-Jacques Brulard, primo coirmão do seu avô materno, o escritor rejeita toda a sua pertença aos Beyle, apenas reconhecendo como legítima a sua ascendência materna. Foi devido a esses sentimentos nobres e característicos do temperamento e do carácter espanhol que Matilde, a quem só lhe haviam conhecido um amante, foi duramente desconsiderada pela sociedade milanesa que, segundo o escritor, assim se vingava da superioridade dela. Stendhal considerava que o que paralisava a sua reabilitação e impedia a sua vitória sobre os seus inimigos se devia ao facto dela não ter sabido intrigar nem manobrar contra eles e nem mesmo desprezá-los. Stendhal exigia demasiado do temperamento e do carácter da mulher amada. Tão alto a colocava no seu conceito que a julgava com força e expedientes capazes de manobrar contra as intrigas e calúnias de um inimigo encarniçado e invejoso que se não denunciava publicamente. A verdade é que a situação dela era extremamente delicada, razão porque nenhum dos seus admiradores se abalançou em defendê-la abertamente na medida em que tal defesa se revelaria, por certo, ainda mais prejudicial à sua já tão atingida reputação! Amavam-na mais quando a sentiam atacada mas nenhum encontrou o caminho certo para o seu coração ou ousou libertá-la. Nem o génio de Stendhal que « pensava maduramente e profundamente em Matilde», encarou uma saída para tão humilhante e destruidora situação. A resposta a esta situação talvez esteja numa observação feita pelo próprio Stendhal sobre essa época de conquista de prazeres, quando, mal tendo acabado de chegar a Paris, a propósito do fraco acolhimento do público à comédia de Louis de Boissy (1740) «L’ Homme du jour», anota no seu Diário que a sua «intriga devia agradar muito no tempo em que ter uma mulher era uma grande felicidade!» . E acrescenta que «a peça desgostava devido a uma infinidade de sentimentos falsos que os personagens debitavam». Ainda que a recordação dela lhe fosse dolorosa, a verdade é que não só o inspirava como trazia à memória do seu coração ardente uma plenitude mais próxima do repouso da felicidade que do arrebatamento que a lembrança de Angela Pietragrua lhe provocava. E ao recordá-la, escrevia: «Que nada fazia mais pela adoração da senhora Dembowski do que as críticas que os prosaicos de Milão lhe dirigiam. Posso nomear esta mulher encantadora, mas quem pensa nela hoje? Não serei apenas eu, onze anos depois que ela deixou a terra?». O amor de Stendhal por uma mulher desconsiderada pela sociedade e rodeada de intriguistas e invejosas revela-nos os tesouros da sua sensibilidade amorosa e o mérito infinito de um coração sincero. E revela-nos também como os mais insignes espíritos da época enfrentaram, com rara coragem, a moral social e se debruçaram, com um grande sentido da liberdade humana, sobre o universo ético decorrente da vida sentimental, opondo-se muitas vezes a uma sociedade que hipocritamente pugnava por valores considerados como os pilares de uma civilização quando, na realidade, se achava desviada deles e moralmente falida. O retrato desta sociedade foi-nos magistralmente descrito pelo escritor em A Cartuxa de Parma. Na época, os costumes sociais em matéria de sexo e amores eram em extremo permissivos. E cabe aqui a pergunta: então porque exercia a sociedade milanesa sobre esta mulher inteligente e culta uma tão grande rejeição? ´É que na sociedade daquele tempo, os casos de sexo tornados públicos só eram considerados criminosos e passíveis de censura pública em pessoas íntegras que assumiam os riscos de uma liberdade pessoal que não alienavam, e era essa postura assente na liberdade de consciência, dignidade e integridade que uma sociedade corrupta se esforçava por colocar em regime da mais estrita severidade sob a sua vigilância. Com os novos tempos essa vigilância já não era nem policial nem eclesial mas exercida por pessoas que estavam próximas da pessoa visada e que se prestavam a estes degradantes serviços pelo lucro de pequenos benefícios. Stendhal, num dia em que, sem autorização prévia ou simples conhecimento dela, na ânsia de estar com ela a seguiu até Volterra ( que se tornou posteriormente num lugar sagrado para o escritor), experimentou a cólera de Matilde que o acusou de a perseguir por vontade deliberada de a comprometer. Tal era a vulnerabilidade de Matilde, a quem a desconsideração social condicionava. Como escreveu Beaumarchais, sem consideração social não há admiração e, sem admiração, não há amor! Haverá melhor forma de um marido despótico conservar a esposa aprisionada a um passado comum e posta eventualmente numa reserva para o seu futuro do que a que deriva do afastamento dos seus possíveis pretendentes por se achar essa mulher sem prestígio aos olhos do mundo? Haverá igualmente melhor forma de banimento de uma rival do que se achar esta exposta à censura pública e ao melindre social? Haverá melhor forma de alguém se subtrair à censura da sociedade do que aquela que pela calúnia desvia de si os olhares, usufruindo do delito a ocultas e carregando de culpas uma inocente? Para enfrentar esta situação, a Matilde não restava senão a virtude e o distanciamento da sociedade, lugar onde se encontram e cultivam relações, amores e até amizades. Stendhal queixou-se amargamente do papel de vigilante desempenhado junto de Matilde por Francesca Milesi, esposa do advogado Traversi. Trata-se não só da queixa de um apaixonado perante um obstáculo como a percepção de um espirito lúcido que topou na Milesi uma dessas espias em cuja vigilância Matilde consentia, por temor ou, tendo em conta a sua cultura e inteligência , para delas obter, por seu turno, informações sobre as intenções dos seus inimigos pessoais e políticos. A senhora Traversi, a funesta prima e amiga de Matilde como lhe chamava o escritor, detestava os Franceses e constava em Milão que ela estaria com o marido entre os instigadores do assassinato do ministro Prina. Stendhal talvez achasse, sinceramente, que aquela espécie de reclusão não seria o melhor caminho para vencer aquela sociedade, que era até uma forma de respeito que a dita sociedade, já corrompida de ideias e decaída em costumes, não merecia de maneira nenhuma, pois para se conquistar a tão almejada consideração social bastava alimentar as pequenas vaidades e os grandes vícios e, sobretudo, ser hipócrita em tudo. Chocavam-se aqui dois comportamentos perante uma sociedade revanchista que ambos combatiam: Matilde, integrando a Carbonária milanesa, resistia mas preservando a clandestinidade dessa associação, enquanto Stendhal, que fizera a campanha da Rússia em 1812 e que frequentara a Corte de Napoleão, embora opondo-se-lhe como genuíno jacobino que então era, que se insurgira contra as indemnizações dadas aos emigrados que no exílio tinham conspirado contra a Revolução, estava habituado ao confronto de opiniões e de comportamentos. A contra-revolução, contudo, sub-repticiamente embora, tinha avançado desde a primeira hora, e, de tal maneira que em Janeiro de 1806, o Journal de l’Empire tornava pública a notícia de que, para que uma dada obra fosse imprimida, fora exigida a sua aprovação por uma censura não oficial. Esta notícia chamou a atenção de Napoleão que, segundo nos dá conta a Gazette National ou Moniteur Universel, surpreendido por este acto censório da polícia, declarou que não existia censura alguma em França e que nenhuma obra podia ser suprimida e nenhum autor perseguido:
«Caíamos numa estranha situação se um simples comissário se arrogasse o direito de impedir a impressão de um livro ou de forçar um autor a cortar ou a acrescentar-lhe alguma coisa. A liberdade de pensamento é a primeira conquista do século. O Imperador quer que ela seja conservada...»
Na sua obra Souvenir d’ Égotisme cuja escrita iniciou em 1832 e que destinou a ser publicada pelo menos dez anos depois da sua morte por delicadeza para com as pessoas ali mencionadas, recorda Matilde nestes termos:«Esta alma angélica escondida num tão belo corpo, deixou a vida em 1825». Depois, recordando a sua partida de Milão, em 1821, devido à prisão dos Carbonários acusados de republicanismo, sobre a sua acidentada viagem em que ficou sujeito às grosserias dos postilhões com quem conversava para se distrair do sofrimento que a separação de Matilde lhe causava, escreve:«Uma doce melancolia sucedeu pela primeira vez a um desespero seco, eis pois no que se tornam as belas coisas aos olhos dos homens grosseiros, tal és tu, Matilde, no meio do salão da senhora Traversi».O escritor confessa ainda que nessa ocasião resistiu com dificuldade à tentação de dar um tiro na cabeça, no que foi impedido pela curiosidade política pois em Milão, a Áustria condenava severamente as pessoas acusadas de conjura ou sedição, o mesmo acontecendo com o novo regime instalado em França. Quando, em 1827 regressa a Milão, foi na fronteira impedido pela polícia de entrar em Itália tendo-lhe sido ordenado que abandonasse sem demora os Estados Austríacos. Nesta etapa da sua vida em que se sente desadaptado não só em relação ao seu país natal como a Milão, o escritor confessa que cada vez que escrevia uma cena de amor da Cartuxa pensava automaticamente em Matilde, acrescentando:«A pior das infelicidades seria que estes homens tão secos, meus amigos, no meio dos quais vou ter de viver, adivinhasse a minha paixão por uma mulher que nem sequer possuí». Como acontecia com os personagens das suas obras, a Matilde sonhada vivia na sua carne como um fogo.
Quanto ao episódio de Volterra é fácil adivinhar que Stendhal se deu conta que a impetuosidade que pusera nos seus actos, ditada pela paixão e em si mesma inofensiva noutro contexto, buscava uma satisfação que para a mulher amada teria um preço bastante elevado pois provocava nela a indizível angústia da punição pelo agravamento da sua situação social. Matilde ia com frequência a Volterra para visitar os seus dois filhos, Carlo e Ercole ali internados num colégio. Matilde não amaria mais a acção política que o amor. Talvez achasse prioritária a acção política para que a mulher pudesse com liberdade plena realizar-se no amor sem perda de direitos em relação à tutela dos filhos. Ao contrário de Angéline e Mélanie que viviam na periferia da sociedade, no arriscado país dos comediantes, como mulher de um oficial, Matilde tinha um estatuto social determinado. A Angéline bastava aquecer-se ao sol do seu próprio amor enquanto Matilde, mais varonil, queria mudar a sociedade para que o amor pudesse enfim revelar a criatura humana em todo o seu esplendor, para que as lutas travadas em seu nome se tornassem numa forma de engrandecimento dos seus protagonistas e, nessa medida, contribuíssem para a renovação dos conceitos de Ética em política. Uma plêiade de escritores de ambos os sexos assim como uma geração de revolucionários liberais realizaram a mais preciosa e delicada das conquistas: a da aquisição, para o nosso universo moral e mental, de uma consciência sentimental.
A recordação de Matilde trouxe à memória do escritor a 22ª estrofe da Elegia do poeta inglês Thomas Gray (1716-1771) , escrita num cemitério campestre. Stendhal anotou-a em sua intenção, embora ligeiramente alterada: «Para aquela que se tornou prisioneira do esquecimento silencioso». Depois, interrogou a amada morta se não lhe seria agradável ver o seu nome pronunciado, ao fim de tantos anos, por uma boca amiga. Esta pergunta a uma morta prova o quanto a sua saudade a trouxe viva para o seu presente. Seria interessante estudar o sentimento que Stendhal guarda daqueles que amou e continua a amar intensamente mesmo depois de mortos. Milagre de amor, talvez o escritor sentisse a presença viva da amada observando-o por detrás do seu ombro, lendo a pergunta que o escritor lhe dirigia através da escrita , a ela, prisioneira do esquecimento silencioso, se não lhe seria agradável VER o seu nome pronunciado, ao fim de tantos anos, por uma boca amiga. Anotemos que Stendhal não escreve Ouvir o seu nome pronunciado mas Ver, como se os seus mortos se comunicassem a ele enquanto escrevia. Este passo dá à arte da escrita um carácter transcendente pois torna-a num veículo de comunicação total entre os vivos e entre estes e os mortos. O escritor permanece uma Voz através dos tempos e essa voz, que está enterrada nos seus livros, espera pelos leitores para se fazer ouvir de novo. O escritor, mesmo depois de morto, é imortal porque permanece entre nós como uma Voz enquanto os mortos, apresentando-se à sua memória, o assistem quando são evocados. Stendhal dá-nos uma imagem completamente dinamizada da relação oculta do escritor com os fantasmas da sua criação assim como com os fantasmas dos seus entes queridos já mortos.
O nome de Matilde estaria proibido de ser pronunciado, mesmo para os filhos, devido ao estigma que a marcara em vida? Não o evocaria certamente o marido de quem estava separada mas não divorciada, o que pressupunha que seria uma presa dele, empurrada para fora da vida e votada ao esquecimento e ao silêncio. Também a não evocaria o único amante que as más línguas lhe atribuíram, Ugo Foscolo (1778-1827) , poeta italiano que inspirando-se em Werther redige um romance epistolar intitulado Ultime Lettere di Jacopo Ortis mas que se celebrizou, sobretudo, com o poema I Sepolcri, obra cimeira do lirismo sepulcral em que o poeta evoca o monumento funerário de Maquiavel na Igreja Santa Croce em Florença. Stendhal admirava-o, tendo-o citado duas vezes na edição de 1826 de Rome, Naples et Florence. Segundo o informou Matilde , Ugo Foscolo estaria loucamente apaixonado não por ela mas por Madalena Marliani, esposa do banqueiro Paolo Bignami. Esta mulher isolada não teria tido, de facto, outro amante que a recordasse de forma amigável. Stendhal, que muito a amou e por ela sofreu a ponto de não poder nem trabalhar na sua obra nem mesmo ler, prestou, através da sua obra «De L’Amour» e através do que deixou escrito sobre ela, um grande tributo à memória de Matilde que havia sido em vida tal como o era depois de morta, vítima de alguém que queria que ela permanecesse para sempre prisioneira do esquecimento através do silenciamento da sua memória. A Matilde também se deve a primeira tentativa romanesca de Stendhal: em 1819 escreveu o Roman de Métilde, obra que chegou até nós como um fragmento que Samuel de Sacy que organizou, prefaciou e apresentou a obra completa do escritor nas Éditions du Seuil, integrou em Romans et Nouvelles. Samuel de Sacy afirma que Stendhal o teria deixado em estado de fragmento, com um único capítulo, na medida em que não podia transpor para o plano romanesco um devaneio autobiográfico uma vez que as recordações evocadas de maneira tão directa e numa data tão próxima da sua experiência só poderiam levar o escritor a um impasse: a realidade não comportava ainda um seguimento, o que o teria obrigado a saltar da realidade para a invenção, técnica que ele ignorava nessa altura. Entre os personagens desta obra figuram a condessa Bianca que é Matilde, Poloski que é o próprio Stendhal e a duquesa de Empoli que representa a senhora Traversi . Roman de Métilde começa quando em casa da condessa Bianca acaba o serão com um baile. Stendhal descreve admiravelmente o estado de paixão violenta em que se encontrava naquela reunião social:« ele estava diante dela (Bianca) num estado violento: mergulhado em silêncio; e, no entanto, parecia-lhe que todos os olhos liam o seu amor nos seus; ou, se queria falar, o fogo que o devorava passava para as suas palavras dando-lhes quase os caracteres da loucura. Era, de todos os caracteres, aquele que podia chocar mais a condessa. Apenas chegada à flor da idade, uma série de desgraças tinham dado a esta bela criatura todas as aparências da melancolia mais nobre, mais profunda e por vezes a mais terna. Creio que nesta época ela desesperava da sociedade e quase da natureza humana; ela tinha renunciado a encontrar na sociedade e na natureza humana o que o seu coração necessitava». Quanto à duquesa de Empoli, descreve-a como estando dominada por duas necessidades: a de amar e a de dominar.«A duquesa, mulher de espírito que podia ainda inspirar sentimentos, não conheceu, no entanto, o amor. Ela estava em sociedade como a senhora de Genlis nos seus escritos, como inimiga do amor ». Poloski, tendo perguntado ao seu amigo, o barão Zanca, se a Empoli lhe perdoaria o seu amor pela condessa Bianca, este aconselhou-o: «Deixai de amar uma mulher que não pode amar, que é unicamente amor-próprio, que com as ideias de um amor constante que tem, jamais amará um estrangeiro que hoje está em Bolonha, amanhã em Nápoles, e depois de amanhã em Varsóvia e dentro de oito dias, sabe Deus onde estará». O capítulo termina com considerações sobre Poloski que «ainda que lançado cedo na vida social, possuía um carácter quimérico, sonhador e poético, afeito a sentir profundamente a infelicidade do amor. Fora um apaixonado de Napoleão e, como Napoleão, não amava senão os sucessos de ambição».Stendhal julgava que o Roman de Métilde iria ter um epílogo diferente pois segundo o plano traçado pelo escritor, Poloski , resignado e considerando que a Empoli (Traversi) era uma amiga apaixonada e Bianca, uma mulher bela, terna mas indiferente, dirige-se à duquesa nestes termos :«— Fizestes-me todo o mal que podestes, mas eu estou feliz com a simples amizade de Bianca (Matilde), pois no meu coração não há lugar para o ódio e, já que sois sua amiga, eu amo-vos ternamente ». A belíssima estrofe de Thomas Gray que ele recorda a propósito de Matilde soa-nos como uma prece sublime à memória de uma mulher que tinha no coração do escritor a sua morada. Entre Alexandrine e Matilde, Stendhal não recordou Angéline que morrera em 1841.Não lhe tendo até então feito justiça, em setembro de 1835, Stendhal, para fugir do calor e da aria cattiva de Roma, refugiou-se, como era seu hábito, na cidadezinha de Albano Laziale situada a 40 quilómetros a sul de Roma junto ao lago de Albano. Contemplando as águas paradas e sem voz do lago, a sua memória, renovada por correntes subterrâneas oriundas de um universo submerso, tendo reencontrado os seus mortos, devolve-a ao seu coração, deixando escrito: «No outro dia, sonhando com a vida no solitário caminho acima do lago de Albano eu, sentado no banco situado atrás das estações do Calvário dos Minori Osservanti, construído por Barberini, irmão de Urbano VIII, e junto de duas belas árvores cercadas por um baixo muro redondo, como Astarté, achei que a minha vida podia ser resumida através destes nomes cujas iniciais escrevi no pó com a minha bengala “ V…, M…, A…, Anjo, M…, C…”. Victorine Mounier, Mélanie Guilbert, Angela Pietragrua, Angéline Bereyter, Matilde Dembowski, Clémentine Curial». Em 21 de Março de 1842, na véspera de um ataque de apoplexia, o escritor deixou esboçado um plano para uma novela intitulada La Juive. Stendhal, que conhecia agora a dureza do seu confronto com um coração obstinado, sentia não só como fora amado mas também como fora maravilhosa a expressividade do sentimento que despertara em Angéline. Viva ou morta, todos os momentos dela lhe pertenciam pelo que só no coração do Anjo a sua memória encontraria sombra e frescura.