HELENA FIGUEIREDO:
AO SABOR DA PELE

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A menina de negro
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Leva-me contigo, pastor
Enleio
Tentação
Ninguém
Tabu
Poema sentido
Um dia sem ti
Vendaval

A MENINA DE NEGRO

Era Julho, quase Agosto, quando morreste. Lembro-me do teu olhar, quando no caminho junto ao campo, te despediste de mim. Preparavas a rega da tarde e eu preparava-me para a profissão de fé. Tempos longos, de calor sossegado nas músicas de um pequeno rádio a pilhas e dos serões na soleira da porta, vendo constelações de estrelas e o trajecto dos satélites.
Meu querido pai, como te recordo, a minha mão pequenina no teu bolso de gigante, os meus pés gelados entre as tuas pernas, nas noites de Inverno.
Contigo comecei a ler e a escrever as primeiras palavras. Contigo comecei a amar os livros, o cheiro das bibliotecas, aqueles romances acabados de chegar e que enchiam a nossa casa de sonhos, à luz de um candeeiro a petróleo.
Estava calor nesse dia…
O médico veio, mas nem a porta que só se abria para a entrada de Cristo pela Páscoa, te quis salvar. Teimosamente, continuou fechada, numa história contada toda a vida, vezes sem conta, como se de um clássico se tratasse.
Morreste, de repente, ao entardecer.
Não sei quantos castelos caíram, quantas torres desabaram e se novamente as cortinas do Templo se rasgaram (as lágrimas molham-me as palavras, soltas agora, depois de tanto Inverno).
A casa encheu-se de seres sem rosto, que espreitavam pelas janelas abertas, cochichando as razões da tragédia. O ar circulava quente, entre a sala onde te deitaram e o quarto onde a mãe quase morria. O meu coração dilacerava entre a sala e o quarto, entre a morte e a agonia., como se a salvação daquele quadro estivesse em mim.
Não sei se beijei o teu rosto gélido, não me lembro.
A sala ficou com o armário, as chávenas penduradas nos ganchos, algumas moedas escondidas e o vazio…
O quarto forrou-se aos poucos de lamentos incontidos, gritos de amor, onde as lágrimas escorriam na parede, e o vestido branco pendurado no cabide…
Uma legião de conselheiros, achou por bem eu receber o Sacramento.
E, nesse dia, senti Deus nas vestes douradas do sacerdote. Lembraram-me o Céu, tão distante…
A fotografia, tirada na escadaria da igreja. Mas quem era aquela criança, que de negro manchava a brancura do retrato? Era eu, pai. Aumentaram a minha dor e vestiram-me de preto como mandava a tradição. (Acreditas que nunca mais vesti luto por ninguém?)
Passo os dedos pelo álbum amarelecido e sinto a mesma dor.
E o vestido branco continua pendurado no cabide…

Helena Figueiredo nasceu em 9 de Março de 1959, numa pequena aldeia do concelho de Carregal do Sal, distrito de Viseu. É licenciada em Educação de Infância, e desde os 21 anos que trabalha com crianças entre os 3 e os 6 anos. Entre 2003 e 2006 prestou assessoria ao Conselho Executivo do Agrupamento de Escolas de Carregal do Sal.
Entrada no TriploV: Abril de 2008