Alessandro Atanes
De Barcelona para Barcelona
I

A historiografia brasileira tem bastante registrada a ligação de trabalhadores portuários de Santos com o anarquismo do início do século XX e a onda de greves iniciada em 1917. O professor Adelto Gonçalves transformou um episódio desse momento no romance Barcelona Brasileira (2002, no Brasil; 1999, em Portugal), que opõe aparato policial a trabalhadores em plena luta de classes (1). O grande lance da história é que ela é narrada pelo ponto de vista de O Poeta, o protagonista, um escritor e médico da cidade inspirado no poeta santista Martins Fontes (1884-1937), um burguês de alma libertária.

O uso do jargão bem marxistão até que cai bem em uma história de greves de 1917, mas muita água passaria pelo estuário da história até que o autor fosse escrevê-la no início dos anos 1980, ainda que só a publicasse no Brasil já no século XXI, em 2003. Uma obra repleta de cargas históricas: o conflito social encoberto pela Belle Époque, a redemocratização dos anos 80 e, perdoe a expressão, a social-democracia-financeiro-tucano-lulista do fim de século neoliberal.

Na história literária, o tempo decorrido entre essas três historicidades – as tais das cargas históricas – testemunhou o romance realista em sua fase final, a ascensão do modernismo, a crise do romance com a publicação de Ulysses, de James Joyce, na década de 20, e outras obras inovadoras, “abertas”; outras conseqüências são a maturação do jornalismo literário e até o realismo mágico, ainda que gênero distante da ação que acompanhamos em Barcelona Brasileira.

II

Mas devo aqui me concentrar no que está no título, o empréstimo do nome de um local por motivos políticos, processo que passa a ser designado aqui por toponímia ideológica, uma brincadeira conceitual usada para designar os nomes de caráter ideológico de um lugar (topos).

E isso acontece por duas vias: a das relações históricas entre Santos e outras cidades portuárias (Nova York, Buenos Aires, Barcelona, Hamburgo), ou a das relações simbólicas entre Santos e cidades que lhe fornecem apelidos ideológicos, pelos quais a cidade se transforma em território de internacionalização das lutas operárias. Participando da batalha ideológica ou tecendo um painel histórico, os autores da literatura portuária realimentam esse imaginário.

Além do título do romance de Adelto Gonçalves, Santos também foi chamada de Moscou Brasileira, Cidade de Prestes, Cidade Vermelha (tanto contra como a favor) e, numa chave política mais conservadora, Cidade da Liberdade e da Caridade. Há até a versão reduzida Moscouzinha Brasileira, a qual une a promessa de revolução à garantia do aconchego brasileiro que o uso do diminutivo garante à expressão, uma clara manifestação das relações cordiais do brasileiro, ao estilo de Sérgio Buarque de Holanda.

Dois trabalhos históricos já analisaram esse aspecto do imaginário da cidade. As obras Operários sem Patrões: Os trabalhadores de Santos no entreguerras, de Fernando Teixeira Silva, e Porto vermelho: A maré revolucionária (1930-1951), de Rodrigo Rodrigues Tavares, avaliam as estratégias do movimento sindical, dos intelectuais e do aparato repressor em invocar o nome destas cidades para tratar de Santos.

Outro exemplo de episódio histórico levado para a ficção foi a decisão tomada por estivadores de não embarcar café em um navio nazista cujo destino era a Espanha governada por Franco. A passagem é um dos principais eventos narrativos do romance Agonia na noite (1954), de Jorge Amado (1912-2001). É ela que motiva a ação e as situações de conflito entre trabalhadores e repressão.

O internacionalismo operário se reflete também na obra literária do escritor estado-unidense John dos Passos (1896-1970). No romance 1919 (1932), os personagens são jovens, na maior parte de esquerda e pacifistas, que se engajam durante a Primeira Guerra Mundial em serviços como a Cruz Vermelha, representações políticas, o jornalismo ou a burocracia administrativa. O espaço desse engajamento é aquele formado pelo circuito de viagens entre os portos do Mar Mediterrâneo e os da costa atlântica da América, um território desde o fim do século XIX disputado com o imperialismo, e, logo depois, pelas ideologias totalitárias. Já durante a Segunda Guerra, o mesmo contingente, ainda que mantivesse o horizonte da revolução, já era de caráter bem mais nacionalista.

Em Barcelona Brasileira, esse espaço internacional é percorrido pelo personagem Ángel Blanco, líder operário do cais santista, espanhol criado no cais de Barcelona, ladrilheiro, anarquista desde criancinha, militante, preso pela primeira vez aos 18 anos, exilado. Foge para Buenos Aires em um navio argentino e, no meio do caminho, prefere descer em Santos para não complicar o comandante, seu amigo. Na descrição, Blanco é talhado desde criança para a luta de classes:

Apareceu outra vez em Santos numa madrugada de chuva, quando os operários do armazém 12 decidiram não realizar o trabalho de descarga de um navio italiano, o Benevento, que, seis anos antes, havia levado muitos deportados para a Espanha [outro exemplo literário do internacionalismo]. Tinha 35 anos, mas sofrera tanto nas mãos da polícia que parecia muito mais velho. [...]

Criado no porto de Barcelona, crescera ouvindo as aventuras dos homens do mar que se reuniam à tarde na pequena bodega que seu pai mantinha em frente do Mediterrâneo. [...]

Aos cinco anos, já demonstrava o mesmo impulso de crescimento do pai, homem corpulento, trabalhador e pouco educado, mas conhecido no porto por sua honestidade. [...]

Foi por essa época que assistiu pela primeira vez a uma manifestação popular, quando os trabalhadores de Barcelona organizaram uma passeata em homenagem aos famosos mártires de Chicago [o internacionalismo, novamente]. Sentiu um prazer incontido ao ver o povo nas ruas, gritando frases que ele ainda não compreendia, mas achava bonitas. [...]

Como o pai e a mãe, aprendera a falar apenas o catalão, mas o que o atraía mesmo era o castelhano, porque era em castelhano que estavam escritos os livros e as revistas que o mercador expunha nas ramblas ao lado das gaiolas com pássaros e pequenos animais e das bugigangas. [...]

Aos 18 anos, quando sofreu sua primeira prisão, passou a ser respeitado por todos, porque, uma semana depois de ter sido levado para o cárcere central de Barcelona, fugiu. Ninguém soube como, mas o certo é que, uma noite, irrompeu uma reunião da organização dos trabalhadores e fez um discurso que ficou famoso porque disse que o dever de revolucionário não era pedir indultos nem mendigar anistias; se perseguido, não se devia deixar prender; se preso, devia fazer o possível para fugir. Magoou alguns militantes que haviam sido beneficiados pelo indulto do ano anterior, mas arrancou aplausos de jovens como ele. E, assim como surgiu, desapareceu: nessa época, estava mergulhado na clandestinidade. [...]

Começou a colaborar com a imprensa anarquista, assinando artigos com o seu nome maçom, Andrés. Tempos mais tarde, por causa de um artigo publicado no jornal libertário La Huelga General, em que contestava os socialistas autoritários, afirmando que não existia ditadura do proletariado, mas apenas ditadura, acabou expulso da Federação Regional Obreira da Catalunha. 

É a descrição de um homem que luta. Em Santos, envolve-se até com um atentado. Sua luta política nos dois lados do Oceano Atlântico preenche o espaço internacional entre Barcelona e Barcelona Brasileira como um local de conflito.

III

Não é o que acontece com os personagens de outro romance do porto de Santos, Navios Iluminados. Nessa obra de 1937 de Ranulpho Prata, esse mesmo espaço é descrito como local de resignação, de uma miséria que não se altera independentemente de qual ponto do planeta o pobre sofra. Exemplos dados foram a passagem que descreve o relato da viagem clandestina entre Nova York e Santos de outro personagem espanhol, Pepe Riesco.

As aventuras do espanhol pelos portos do mundo são assunto recorrente pelas ruas do bairro portuário de Santos. Ele havia passado por Nova York, Cuba e Barcelona, onde fora preso – o narrador não nos apresenta a razão, ainda que o texto insinue a militância política como motivo.

A única história que Pepe gostava de contar era a de sua chegada em Santos depois de uma viagem como clandestino. Desempregado e receoso do inverno que começava a atingir Nova York, Pepe aplica seus últimos 27 dólares para conseguir um espaço nos porões do Southern Cross, transatlântico que tinha Buenos Aires como destino, cidade onde tinha amigos e na qual mantinha a esperança de conseguir trabalhar novamente.

No porão do navio, ele encontra Walfredo Muller, um agricultor alemão empobrecido pela I Guerra Mundial, exemplo às avessas do internacionalismo lutador:

O companheiro de Riesco era um alemão a quem a guerra, além de aleijar uma perna,

empobrecera, reduzindo-o de lavrador abastado da Baviera a mendigo internacional.

A água e a comida dos dois companheiros se esgotam no meio da viagem, mas o desespero de dias nos porões escuros da embarcação chega ao seu cúmulo durante uma tempestade:

De repente o mar zangou-se, piorando a situação. O vapor começou a jogar, as ondas quebrando-se de encontro ao casco com ruído de desmoronamento. Ventava rijo e as águas engrossavam sob o açoite da chuva. No porão meio vazio principiou a dança dos volumes que se arremessavam uns contra os outros, rangendo, chiando, atritando-se furiosamente. Pepe olhava-os, receoso de ser esmagado. Não sabia como se defender nem ao companheiro. Para o lado que se lançava, sentia os caixões em movimento, deslizando como coisa viva. O balanço era cada vez mais forte, parecendo que o vapor corcoveava, numa guinada mais violenta, um pequeno volume desprendeu-se de uma pilha de fardos e rolou sobre ele, esmagando-lhe os dedos da mão esquerda. Pepe saltou um rugido e uma praga violenta.

Enquanto fora durou o temporal, lá dentro os clandestinos sofreram até não poder mais. Foram horas infernais, inesquecíveis, as máquinas arfando, o mar a bater no costado com o lençol duro nas ondas e os volumes, que no negrume semelhavam monstros, querendo devorá-los.

Os dois companheiros são descobertos no Rio de Janeiro. Muller é levado ao hospital, onde morre horas depois, e Pepe é forçado a trabalhar no navio até o retorno aos Estados Unidos. Em Santos, porém, ele salta nas águas do estuário e se refugia em uma colônia de pescadores. Recuperado da aventura, toma rumo para São Paulo, mas em poucas semanas voltaria a Santos, que lhe agradara mais:

Depois de experimentar vários empregos, desde garçom de botequim até lixeiro da prefeitura, entrou para a Companhia [Docas de Santos, CDS], graças ao empenho de um patrício que trabalhava na seção elétrica.

O maior exemplo desta situação é a vivida pelo protagonista, José Severino de Jesus, um estivador que contrai tuberculose durante os embarques de carne congelada sob o sol do verão. É dele o lamento a seguir, um postulado do internacionalismo às avessas daquele pregado pelo Ángel Blanco de Barcelona Brasileira:

- Não há canto no mundo onde pobre não sofra. É sina que Deus lhe deu. E toda sina tem que ser cumprida. Quem tem forças pra fugir? Aqui ou lá, é a mesma coisa. Não tem apelo. Sendo assim, o melhor é ficar no lugar onde nasceu.

A inevitabilidade do destino do protagonista de Navios Iluminados revela o caráter trágico do romance, considerado pelo historiador Luis Bueno o estopim do momento da Nova Dúvida na literatura, da qual o principal representante seria Vidas secas, de Graciliano Ramos, publicado no ano seguinte, cujo estilo seco e sem adjetivos aplica no campo narrativo o que a cansada realidade dos movimentos populacionais é para o protagonista, o retirante Fabiano, assim como é também para José Severino na obra portuária.

Não importa se na chave resignada ou na do conflito social, do que as duas narrativas não podem fugir é do motivo literário do porto como local de articulação internacional, uma máquina narrativa (conceito do escritor argentino Ricardo Piglia) que desenvolve seu próprio tipo de histórias. 

Referências:

GONÇALVES, Adelto. Barcelona Brasileira. Lisboa: Nova Arrancada, 1999; São Paulo: Publisher Brasil, 2002.PRATA, Ranulpho. Navios Iluminados. Coleção Brasilis. São Paulo: Scritta/Página Aberta/Prefeitura Municipal de Santos, 1996 (1ª edição de 1937).AMADO, Jorge. Agonia na Noite. Tomo II da trilogia Os subterrâneos da liberdade (15ª edição). São Paulo, Livraria Martins, 1968 (1ª edição:...).

SILVA, Fernando Teixeira da. Operários sem patrões. Os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras. Campinas, Editora da Unicamp, 2003.

TAVARES, Rodrigo Rodrigues. O porto vermelho: a maré revolucionária (1930-1951). Módulo IV - Comunistas. Coleção Inventário DEOPS. São Paulo, Arquivo do Estado-Imprensa Oficial, 2001.

 
(1) Em comentário à primeira versão deste texto, o jornalista Paulo Matos lembrou que Barcelona era o maior centro anarquista do país, sede da poderosa CNT - Confederação Nacional dos Trabalhadores, anarquista. Em Santos, os anarco-sindicalistas tinham grande expressão nos movimentos sindicais originários em 1904, como a Sociedade Primeiro de Maio, a Sociedade Internacional União dos Trabalhadores e, principalmente, Federação Local dos Trabalhadores, fundada em 1907, responsável pela irradiação da ideologia anarquista nos sindicatos e associações de classe.






Alessandro Alberto Atanes Pereira, 34 anos, jornalista, é especialista em História e Historiografia e prepara dissertação de mestrado em História Social na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).
Directório aberto a 21 de Janeiro de 2007