Cena I

Palco em escuridão completa.

VOZ DO NARRADOR

Senhores, eu sou aquele que é. A testemunha e o narrador dos acontecimentos que acontecem realmente. Mas que, assim rezam os registros dos arquivos, jamais aconteceram. Se as histórias que compõem a História são os documentos oficiais, as minhas histórias, senhores, compõem a realidade e são os documentos verdadeiros. Não são escritos, nem registrados, mas não mentem, nem têm censura.

Um foco de luz acende, em resistência, sobre o Narrador.

NARRADOR

Os mortos não têm censura, senhores. Não podem ser presos, não podem ser torturados, nem podem ser calados. Já morreram. Estão além. Acima das vaidades, das vontades e dos poderes de todos os que pensam que são eternos. O que os mortos fizeram, senhores, a vida que viveram e os atos que praticaram já não pertencem a ninguém. Agora, que estão mortos, pertencem só a eles. Para nós, senhores, ficou apenas a memória. E a verdade. A condição de compor os discursos e os epitáfios verdadeiros. Mas isto, senhores, a obrigação da verdade e nada mais do que a verdade, só se consumará se vós assim quiserdes. Os meus documentos são verdadeiros, senhores, mas a leitura deles será vossa. De vós, e só de vós, dependerá a autenticidade do presente e a definição do futuro. Eu sei que muitos dirão, se a responsabilidade vai ser nossa, então deixemos como está. Se sempre foi assim, por que não há de ser agora? Eu sei que sempre foi assim. Mas, por sempre ser assim, é que nós somos o que somos, senhores. É que nós estamos onde estamos. Mas se esta certeza ainda não vos basta, eu vos digo: para além de todos os motivos, para além de todas as razões, e, acima de tudo, para além de todas as vontades, há uma verdade que ninguém pode desmentir. Por mais eternos que se julguem, todos os homens morrem, senhores. Portanto, bom será que penseis nisto. Se até hoje os carimbos oficiais vos sustentaram o passado, chegou a hora, senhores, de encarar o futuro e ler, sem medo, os documentos verdadeiros. Porque, não vos enganeis, senhores, se mais uma vez fugirdes da verdade, os vossos filhos herdarão, apenas, o vosso medo e a vossa covardia. Senhores, os documentos oficiais só são História enquanto vive quem os assina. Depois de mortos, senhores, os vossos filhos cagarão nos vossos túmulos e vós sereis, apenas, o pó que restou de um monte de papéis. Que ninguém mais lerá. Que ninguém mais lerá, senhores, porque os vossos filhos cagaram nos vossos túmulos e vós sois, apenas, o pó que restou de um monte de papéis.

Acende luz geral. Na frente das estátuas, mutiladas e sujas, estão homens, imóveis e quase nus. No meio do jardim, um canhão aponta para o lado esquerdo da cena. O ambiente é desolado.

NARRADOR

Vede, senhores. Estes homens, imóveis, malvestidos e sombrios, agora, apenas olham em silêncio as estátuas dos heróis. Nesta cidade, senhores, tudo morreu. Tudo parou. Parou o ar, parou a tempo, pararam até os pensamentos destes homens semimortos que apenas olham em silêncio as estátuas dos heróis. Nesta cidade, senhores, agora, não há nada. Nem sequer uma saudade. Estes homens imóveis, malvestidos e sombrios, que apenas olham em silêncio as estátuas dos heróis, não se olham mais uns aos outros, nem há relva debaixo dos seus pés. Agora, senhores, só o silêncio se escuta na solidão das esquinas sem ninguém. Não há calor, nem alegria, e os peitos dos homens estão ocos, como estão secos os seus gestos paralisados. As árvores e as fontes também secaram e o pó cobre o chão endurecido dos jardins. Nesta cidade, senhores, agora, só os grifos das igrejas de pedra antiga ainda riem nos seus nichos. Mas eles riem porque as suas gargalhadas são de pedra e os seus olhos de pedra não vêem os corpos que tombam, obrigados a morrer. Deus não existe mais nesta cidade, senhores, nem os namorados passeiam no chão endurecido dos jardins. O pó caiu sobre tudo e cobriu tudo. Até a vontade destes homens, a quem, agora, só resta olhar em silêncio as estátuas dos heróis. Por isso, senhores, eles estão assim: imóveis, malvestidos e sombrios, apenas esperando que o fim da longa espera chegue de uma vez. Para eles, senhores, agora, nada mais importa. Nem as crianças, nem os pássaros, nem os jardins ou as flores. Nem até que existam, ainda, outros homens que juram desconhecer o que está acontecendo. Para estes homens, senhores, imóveis, malvestidos e sombrios, agora, nada mais importa. Nem a verdade, nem a morte. Estes homens, senhores, agora, apenas olham em silêncio as estátuas dos heróis. E esperam que o fim da longa espera chegue de uma vez. Eles não tiveram opção, senhores. Não puderam ler os documentos verdadeiros. Mas vós podeis. Vós ainda podeis, senhores. E em verdade, em verdade vos digo: se o não fizerdes hoje, amanhã serão os vossos filhos que estarão nesta praça, imóveis, malvestidos e sombrios, apenas olhando em silêncio as estátuas dos heróis. E amaldiçoando, para sempre, o vosso medo e a vossa covardia!

 

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