AS PULGAS
Cunha de Leiradella
13-12-2004 www.triplov.org

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MADEMOISELLE

Papai...

MADAME

Silva, o Monsieur é do turfe.

MONSIEUR

Do turfe? O senhor é do turfe? Ah, então o senhor vai gostar da minha biblioteca.

MADEMOISELLE

Vai, sim, Alberto. Não vai, mamãe?

MADAME

Ana Maria, tenha modos! O Monsieur sabe o que quer.

MADEMOISELLE

Ah, sabe, Alberto? Que bom!

MONSIEUR

Tudo autores importados.

MADEMOISELLE

E todos no original. Não é, mamãe?

MONSIEUR

Ah, sim! Todos no original. Se eu faço questão, é questão de originais. Para o senhor fazer uma idéia, além de Shakespeare, só de Bíblias eu tenho mais de cinqüenta originais.

MADAME

Cinqüenta e um, Silva. Dez austríacos, sete alemães, nove italianos, quatro espanhóis, seis franceses, três ingleses, quatro americanos...

MADEMOISELLE

Cinco suíços...

MADAME

E três gregos. Aliás, uns gregos horríveis. Ninguém entende em que língua estão escritos.

MONSIEUR

Realmente. Mas, apesar disso, são originais apreciáveis, Ifigênia. Verdadeiramente apreciáveis, apesar de você não gostar. (A Lemos.) Aliás, na minha opinião, nada melhor do que o original para se encadernar um bom livro. Infelizmente, aqui no Brasil, hoje em dia...

LEMOS

Monsieur, o mal, no Brasil, é que ninguém lê originais.

MONSIEUR

Talvez o senhor nem saiba, mas o senhor disse uma das minhas grandes verdades. Realmente, professor, o grande mal do Brasil é ninguém ler originais. Fala-se de tudo. Fala-se da política, fala-se da economia, fala-se da religião, fala-se do futebol, fala-se do carnaval e do governo, fala-se de tudo, mas ninguém fala do original. Se eu fosse ministro da Educação, o senhor sabe o que eu fazia? Mandava ensinar original em todas as escolas.

LEMOS

Monsieur, com o original como matéria obrigatória, o Brasil seria totalmente independente.

MONSIEUR

O senhor sabe apreciar, realmente.

MADEMOISELLE

Eu não falei, papai? Eu falei!

MADAME

Ana Maria, tenha modos! O Monsieur já sabe apreciar. Continue, Silva.

MADEMOISELLE

Ah, já sabe, Alberto? Que bom!

MADAME

Ana Maria! Continue, Silva.

MONSIEUR

Terminei.

MADAME

Silva.

MONSIEUR

Não sou ministro da Educação, Ifigênia.

O relógio bate quatro horas, com sons diferentes.

LEMOS

Quatro horas? Já?

MONSIEUR

Ainda não. Por enquanto, são saudades da Inglaterra. Talvez o senhor não saiba, mas este relógio veio da Inglaterra. É inglês. (O relógio bate duas horas. Depois, toca o toque militar de Sentido. Lemos perfila-se.) O senhor é...

LEMOS

Não, não, Monsieur. Fui.

MONSIEUR

Eu também. E deixe-me que lhe diga, professor. Às vezes, me dá uma saudade. Se eu não fosse quem sou...

MADAME

Silva, o Monsieur é dos Lemos.

MONSIEUR

Lemos? Mas, Ifigênia, nós não...

MADAME

Silva!

MONSIEUR

Eu sei, Ifigênia. Mas nós não...

MADEMOISELLE

Mas, papai...

MONSIEUR

Eu sei, minha filha. Eu sei. Mas Lemos...

MADAME

De Bauru, Silva!

MONSIEUR

Mas, Ifigênia, nós não somos de Bauru.

MADAME

Mas o Monsieur é, Silva.

MADEMOISELLE

Dos Lemos, papai!

MONSIEUR

Dos Lemos? Mas isso é ótimo! É ótimo!

LEMOS

Monsieur...

MONSIEUR

Claro que eu conheço os Lemos de Bauru. Passei lá a minha mocidade.

LEMOS

Madame já me...

MONSIEUR

Ah, já? Então o senhor já está dentro da família!

MADAME

O Monsieur é do ramo daqui, Silva.

MONSIEUR

Ótimo ramo. Um excelente ramo, não há dúvida. Mas quer dizer, então, que o senhor é de Bauru. Pois olhe, se o senhor não dissesse, ninguém diria.

MADAME

O Monsieur é do turfe, Silva.

MADEMOISELLE

É, papai.

MONSIEUR

Ah, é do turfe?

MADEMOISELLE

É, papai! Não é, mamãe?

O relógio bate três horas.

MONSIEUR

Quer dizer, então, que o senhor é do turfe. Pois, olhe, estimei muito conhecê-lo. Muito mesmo. (Levanta-se.) Em Epson...

Todos se levantam. O relógio bate seis horas.

LEMOS

Monsieur.

MONSIEUR

Monsieur.

LEMOS

Madame.

MADAME

Ó Monsieur.

LEMOS

Mademoiselle.

MADEMOISELLE

Oh, Alberto!

MADAME

Ana Maria, tenha modos! (A Lemos.) Ó Monsieur, pode repetir o cumprimento?

LEMOS

Mademoiselle.

MADEMOISELLE

Lin...

MADAME

An...

MADEMOISELLE

Monsieur.

O relógio bate uma hora. Todos se sentam. O relógio bate duas horas. Depois, bate quatro. Monsieur olha atentamente o relógio de bolso. O relógio bate cinco horas.

MONSIEUR (Guardando o relógio)

Nem o pateck de lorde Nelson!

MADAME

Silva, lá está você diminuindo as nossas coisas! (Toca a campainha James entra.) James.

JAMES

Oui, Madame.

MADAME

Dê corda ao relógio.

JAMES

Oui, Madame. (Dá corda ao relógio.) Comme il faut, Madame.

MADAME

James.

JAMES

Oui, Madame.

MADAME

Pode ir.

JAMES

Oui, Madame.

James sai.

MONSIEUR

Trouxe este mordomo de Londres.

MADEMOISELLE

Foi quando trouxemos o relógio, sabe, Alberto? Vieram no mesmo barco. Não foi, mamãe?

MADAME

E até hoje são inseparáveis.

MONSIEUR

É como eu sempre digo: os relógios suíços e os mordomos ingleses são a perfeição das perfeições mais perfeitas.

LEMOS

A própria Inglaterra é uma perfeita perfeição, Monsieur.

MADAME

Quando passamos nas Canárias...

MADEMOISELLE

Adorei os passarinhos!

MADAME

Ana Maria, tenha modos! O Monsieur é professor.

MADEMOISELLE

Ah, é, Alberto? Que bom!

MADAME

Quando passamos nas Canárias, eu disse ao Silva, Silva, vamos levar um mordomo. Mas dos legítimos. Ó Monsieur, se tem coisa que eu detesto é mordomo com sotaque!

LEMOS

Madame, James é impecável!

MONSIEUR

É por isso que eu sempre digo: para mordomos, só os ingleses. Mesmo endividados sabem se vestir.

LEMOS

E são a própria mordomia, Monsieur.

MONSIEUR

Mas não é possível! O senhor só pode ser dentista, não é possível! Escutou, Ifigênia? Os mordomos ingleses sabem se vestir e são a própria mordomia. (A Lemos.) O senhor é dentista! Tem que ser!

MADAME

Silva, o Monsieur é dos Lemos.

MONSIEUR

Mas tem que ser dentista, Ifigênia. Tirou as palavras da minha boca!

MADEMOISELLE

Oh, papai!

MADAME

Silva.

MONSIEUR

Mas há Lemos dentistas, Ifigênia.

MADAME

Silva!

O relógio bate uma hora e toca De Profundis - canto gregoriano.