CUNHA DE LEIRADELLA
TRAGÉDIA É NÃO HAVER DINHEIRO
PARA UMA CAIXA DE VIAGRA




ESTELA GUEDES - Cunha de Leiradella é uma pessoa ou uma personagem de teatro?

CUNHA DE LEIRADELLA - Eu tenho um romance, O Longo Tempo de Eduardo da Cunha Júnior, que começa assim: Meu nome não é Cunha de Leiradella. Cunha de Leiradella já morreu. Mas, também, Eduardo da Cunha Júnior é só meu nome de batismo. Ora, como eu ainda estou vivo, parece-me que lhe poderia dizer que Cunha de Leiradella é um personagem. Mas não posso porque Cunha de Leiradella sou eu. Então, só me resta dizer-lhe a verdade. Cunha de Leiradella é a junção dos dois. Uma pessoa que cria personagens e que é recriada por eles. Muitas e muitas vezes tenho aprendido mais com os meus personagens do que comigo ou até com os outros. O Eduardo da Cunha Júnior que, dizem, é o meu alter ego só porque protagoniza a maior parte da minha obra, (vendedor de livros em Inúteis Como os Mortos, executivo em O Longo Tempo de Eduardo da Cunha Júnior, dramaturgo em Guerrilha Urbana, jornalista em Cinco Dias de Sagração, engenheiro em O Circo das Qualidades Humanas, gerente de hotel em A Solidão da Verdade, detetive em Apenas Questão de Método, professor em Os Espelhos de Lacan, escritor em Síndrome da Diferença Improvável, etc.) esse, sim, é exatamente como eu, apesar de eu não ser como ele. E eu não sou como ele porque ele consegue ser, ao mesmo tempo, tudo que eu não gosto de ser e sou, e tudo que eu gostaria de ser e não sou. Por isso Cunha de Leiradella é pessoa e personagem. Ninguém me acredita quando minto e também ninguém me acredita quando digo a verdade.

ESTELA GUEDES - Cunha de Leiradella é um escritor luso-brasileiro, já com muita tarimba, entrevista e galardão em cima, mas penso que a sua costela brasileira é mais evidente do que a lusitana. De qualquer modo, temos no TriploV o seu único conto sobre matéria portuguesa e campesina, já que se considera, sobretudo, um autor de temas urbanos...

CUNHA DE LEIRADELLA - Como não sou político, jogador de futebol ou acadêmico, tarimba, entrevista e galardão me parecem mais considerandos das três Graças que envelheceram de tanto rir, do que atributos que me possam ser considerados. Agora, o fato de a minha costela brasileira ser mais evidente do que a lusitana, eu diria que é só questão de ângulo de visão ou de prato de balança. Não dizem que, quando Deus criou a Eva, a tirou de uma costela do Adão? Como não sou Adão nem açougueiro, posso apenas dizer-lhe que, tendo vivido no Brasil quase o dobro do que vivi em Portugal, não será de admirar que o ângulo da costela brasileira tenha um prato de balança muito maior do que a costela lusitana. Afinal, nada como o tempo para contrabalançar os lamirés dos sotaques e definir o tamanho das costelas. O que não quer dizer que, às vezes, eu não pense ora pois, pois, e não diga falou, bicho. Quanto à matéria portuguesa e campesina, de fato Os Homens e os Outros foi o único conto que escrevi, especificamente, sobre a terra onde nasci: os contrafortes da fronteira espanhola em terras da Galiza. No mais, apesar de me ter criado à sombra de contrabandistas e pinheiros (que ainda os havia naquele tempo), sou, realmente, um escritor urbano. Foi sempre do asfalto das cidades que retirei a essência dos meus personagens. Por vezes, eles também se criaram à sombra de contrabandistas e pinheiros. Mas, se isso aconteceu, atravessaram o grande mar oceano e vieram sufocar ou morrer nas esquinas das cidades brasileiras. Como vivo numa grande cidade, e sempre vivi em cidades grandes, e não sei escrever sobre o que não conheço pessoalmente, o meu horizonte criativo termina onde termina o asfalto. Ali, na esquina da minha rua.

ESTELA GUEDES - Parece que a sua carreira literária desabrochou por estímulo de um surrealista português. Os seus contactos com o movimento foram profundos?

CUNHA DE LEIRADELLA - Se desabrochar é iniciar, a minha carreira literária desabrochou quando me apaixonei pela primeira vez e fiz o primeiro soneto de pé-quebrado (que, felizmente, jamais publiquei em livro; nem ele, nem os outros que vieram). Agora, se o bicho carpinteiro de ser um carreirista de profissionalidades literárias se pode chamar desabrochar, de fato a minha carreira começou com alguns puxões de orelhas que levei do Antônio Pedro, no antigo TEP - Teatro Experimental do Porto -, até conseguir tornar legível uma algaraviada que eu tinha imaginado ser (e depois foi) o meu primeiro texto teatral (refundido e reintitulado Réquiem op. 1 já no Brasil). Tive contatos (literários e de amizade) com duas figuras importantes do movimento surrealista português: Antônio Pedro e Alexandre O’Neill. Mas com a vereda surrealista, propriamente dita, não. Agora, se considerarmos a evolução dos meus quarenta e cinco anos de Brasil, melhor surrealismo do que este, só mesmo casamento de jacaré com boipiranga.

ESTELA GUEDES - Para si, o teatro que se fazia em Portugal era texto literário... E começou com António Pedro, mas agora faz questão de ser fotografado com os livros de Henry Miller na secretária... Porque é que o sexo é assim tão importante? Refiro-me ao sexo fora de qualquer relação amorosa e procriadora.

CUNHA DE LEIRADELLA - Espera, que o buraco é mais embaixo. Para mim o teatro que se fazia, não, o teatro que se escrevia, no meu tempo, em Portugal era mais texto literário do que teatro propriamente dito. E era por um motivo. O motivo dos conformes sui generis. A não ser as companhias de revistas, que montavam espetáculos de variedades onde a alta burguesia ia rir da burrice e da desgraça dos menos próximos, ou os teatros oficiais, que montavam dramas históricos onde os próceres do governo desfilavam fraques e cartolas (e mandavam desfilar as ou os amantes), os poucos autores que ainda escreviam textos teatrais, não escreviam textos teatrais. Escreviam textos literários. E escreviam textos literários porque eram muito mais lidos do que encenados. Num país onde os jornais só podiam circular depois de visados pela Comissão de Censura, a maioria desses textos não subia aos palcos. Ou era engavetada ou comentada nas rodas dos cafés. Às vezes, até que se publicava um ou outro livro. Mas publicava-se, assim, só quando a censura o permitia. Qualquer texto que não cantasse loas ao regime ou à santidade do misógino fradinho de Santa Comba Dão, o destino era a gaveta. Ou a pecha de comunista e a prisão do autor, que não era um português como devia ser: católico apostólico romano e que nada escutava, nada falava e nada via.

ESTELA GUEDES - Lendo melhor...

CUNHA DE LEIRADELLA - E sem essa de eu fazer questão de ser fotografado com os livros do Henry Miller na secretária. Eu faço questão é dos moleiros. Henry ou Arthur, sempre adorei o folar da páscoa feito de milho alvo moído nos moinhos da boa cepa. E, claro, se a cepa era boa, tanto A Crucificação Encarnada do Henry quanto a Marilyn Monroe ou A Morte de um Caixeiro Viajante do Arthur muito mais bem me fizeram à cabeça do que todos os preceitos do doutor Lacan & Associados Periféricos. E quem disse que sexo é assim tão importante se enganou redondamente. Sexo é muito mais do que importante. É essencial. Não dizem por aí que por trás de um grande homem está sempre uma grande mulher? Se o sexo não fosse muito mais do que importante, o que você acha que estaria por trás de um grande homem? Um grande cofre e olhe lá. E vamos deixar de sexo fora disto ou dentro daquilo. Sexo é sexo, fora, dentro, por cima, por baixo, de qualquer jeito ou posição e estamos conversados. Olhe, sexo é o único atributo natural do ser humano que, qualquer que seja a lupa que lhe botam em cima, não perde um único grão da majestade.

ESTELA GUEDES - Não é que a literatura nunca se tenha ocupado do sexo, pelo contrário, a arte está cheia dele e até nos lugares mais inesperados, como a ornamentação exterior das catedrais. Mas esse era um sexo digamos que positivo, o órgão masculino funcionava. Agora começou a cair-nos em cima de outra maneira, murcho... É como se tivesse passado da sátira para a tragédia...

CUNHA DE LEIRADELLA - Eu não sei se o sexo do exterior das catedrais funcionou ou ainda funciona. Não sou arquiteto nem presbítero, e nunca escrevi nenhum livro passado em catedrais. Mas uma coisa lhe digo: esse negócio das torres serem satíricas e da murchice implodir como tragédia já era. Tragédia, sim, é não haver o dinheiro suficiente para comprar uma caixa de Viagra, de Uprima ou de Cialis na hora do vamos ver e se morrer no ai Jesus. Isso, sim, é tragédia.

ESTELA GUEDES - Refiro-me a um outro conto seu em linha no TriploV, “O que Faria Casanova?”. A personagem do conto é um homem desesperado, à procura de remédio... Na literatura, essa temática do falo caído é nova...

CUNHA DE LEIRADELLA - Não acho que a temática do falo caído seja nova. Pelo contrário, penso que ela existe desde que Adão costurou a folha da parreira e a Rádio Paraíso botou as antenas no molho da salmoura. Porque, veja bem, se o falo não caísse, já pensou a trabalheira e o cansaço que daria uma assistência técnica de vinte e quatro horas por dia? E o personagem do meu conto O que Faria Casanova? não anda à procura de remédio, não, senhora. Remédio, quem procurou (e deve ter achado) foi a mulher dele. Ele, coitado, só pede a Deus um minuto de silêncio e No Stress.

ESTELA GUEDES - Acha que estamos a assistir, na arte, ao funeral do latin lover e do conquistador em geral, ou a arte apenas espelha o que se passa no mundo? Falaram-me de uns inquéritos cujo resultado, para Portugal, é de uns dois milhões de homens impotentes...

CUNHA DE LEIRADELLA - Olhe, funerais se assistem todos os dias. Tantos nos cemitérios quanto nos divãs dos analistas. Agora, que os conquistadores estejam desaparecidos, me parece mais intriga da oposição do que vontade das hostes conquistáveis. E lhe digo mais, com o latim mandando ver nos seminários, a cotação do latin lover sobe mais do que o do presidente W. Busch. Se assim não fosse, quem assistiria os filmes do Antônio Banderas numa ponta e os do Pedro Almodovar na outra ponta? Que nisto de lovers, o que mais interessa são as pontas. Os meios são que nem a ONU ou a Academia de Artes de Hollywood: podem mas não devem. No que diz respeito aos inquéritos sobre a impotência de dois milhões de portugueses, a minha resposta é uma pergunta. Será que em Portugal os homens só olham para o céu ou o Viagra, o Uprima e o Cialis só se vendem com receita vaticana?

ESTELA GUEDES - O seu conto “Os Homens e os Outros” intitula-se assim e não, por exemplo, “Os Homens e as Mulheres”. Diga-me então o que é para si um homem e o que é isso do outro...

CUNHA DE LEIRADELLA - Inicialmente, Os Homens e os Outros chamava-se Jawaharlal e os Mantras. Mas como a ação do conto se passa em Portugal e Portugal já não hasteia mais bandeira em Goa, Damão e Diu, não havia razão de bancar o escritor culto onde faltava pau na bandeira. Ou perspectiva. Por outro lado, não poderia chamar-lhe Os Homens e as Mulheres por falta de pluralidade feminina no quorum dos personagens. Aí, como eram quatro homens e uma mulher, achei que Os Homens e os Outros, dois de cá e dois de lá, pagavam, perfeitamente, as custas do processo. Nada contra a mulher. Pelo contrário, botar uma só mulher num balaio de quatro homens, seria até mais do que um simples desrespeito. Seria transformar a criação mais perfeita da natureza num mero objeto de batimento e de consumo. Você pergunta o que é, para mim, um homem. Olhe, deixe-me que lhe diga, para quê importar considerandos se os tenho dentro de casa? Um homem sou eu, nem machista nem fanático, mas que dá para o fabrico de um mínimo de testosterona. O outro, olhe, o outro, mesmo que todos os psicos discordem, é tudo (matéria, pecado ou intenção) a quem eu posso gritar xô! na hora do aperto. E se Zaratustra não falou assim, problema dele; falo eu e estamos conversados.

ESTELA GUEDES - Só temos falado de sexo em relação ao homem, como se as mulheres fossem assexuadas. Que papel têm desempenhado as mulheres na sua vida e na sua obra?

CUNHA DE LEIRADELLA - Me diga, como se pode falar de sexo em relação ao home e deixar a mulher no ora bem? Além de ser um crime de lesa-comunhão, seria também uma mentira sem mais tamanho e cabimento. Mesmo botando o solitarismo na questão, o Onã não foi o único que descobriu o cartucho sem pólvora. Muitas espingardas por aí onanam melhor do que o próprio. Por isso, e lho digo com a maior lhaneza e à vontade, as mulheres sempre protagonizaram todos os filmes da minha vida. E se nenhuma pedra, agora, aparecer no meio do caminho, lhe garanto, enquanto houver ladeiras rolaremos na vida como as avalanches rolam nas montanhas. Sem importar quem fica embaixo e onde tudo vai parar. Isto na vida. Na obra, o mesmo. Sabe por quê que o Eduardo da Cunha Júnior, aquele gajo que aparece na maior parte dos meus livros não morre? Justamente, porque as mulheres que se cruzam com ele não o deixam morrer. De angústia, de desespero ou solidão. Portanto, já vê o tamanho e a importância do papel que as mulheres desempenham na minha vida e na minha obra. Ele chega a um ponto tal que, se não houvesse mulheres, posso garantir-lhe, eu nem existiria.

ESTELA GUEDES - Uma das nossas coroas de glória era a participação, maior ou menor, mais ou menos consciente, na revolução sexual... Em que estado a vê neste momento?

CUNHA DE LEIRADELLA - A participação ou a revolução? Se for a participação, total (e não precisa nem você me dizer que só em Portugal existem dois milhões de impotentes). Olhe, sem a participação da mulher, o homem não saberia nem abrir o fecho ecler das suas calças, quanto mais subir aos céus. Agora, se for a revolução, o que é, na verdade, uma revolução? Eu me lembro que, no meu tempo, o misógino fradinho de Santa Comba dizia: “Enquanto houver um português sem pão, a revolução continua!” E eu perguntava: “E daí? O que é que têm as ver os glúteos com as calças?” Em sã consciência, o que lhe posso dizer, é que se foram os homens que sempre travaram as batalhas (e sempre perderam as guerras), foram as mulheres que sempre fizeram as revoluções (e sempre ganharam as guerras). A Lisístrata e a Mary Quant estão aí que não me deixam mentir. Por isso, e é coisa assente para mim, em matéria de consciência, revolução e sexo não existe este ou aquele momento. Existe apenas o fator essencial: a mulher. E tão fator é tão essencial, que até as serpentes e as maçãs lhe devem a nomeada.

ESTELA GUEDES - Mudemos radicalmente de assunto: mora em Belo Horizonte, onde, em 1985, fundou o Sindicato dos Escritores do Estado de Minas Gerais, do qual foi o 1º presidente. Em Portugal, que eu saiba, nunca existiu nenhum sindicato de escritores, quem defende os nossos interesses é a SPA, Sociedade Portuguesa de Autores. Mas, como deve saber, de um lado a SPA está neste momento suspeita de grandes irregularidades e, de outro, poucos escritores temos cujos interesses precisem de ser defendidos, porque, infelizmente, a literatura não é considerada profissão. Na maior parte, nada recebemos pelo que escrevemos e ainda por cima temos que comparticipar nas despesas de edição. Não me diga que no Brasil é tudo assim tão diferente...

CUNHA DE LEIRADELLA - Deixe-me dizer-lhe: eu não sei se a Sociedade Portuguesa de Autores é suspeita de irregularidades, assim como também não sei quantos escritores portugueses precisam ter os direitos defendidos. O que sei, e posso dizer-lhe, é que também no Brasil a profissão de escritor não é regulamentada e todos passamos muito bem sem isso, obrigado. Já por diversíssimas vezes um político mais idiota ou mais ladino (os opostos não só se atraem como, às vezes, até se igualam; veja, por exemplo, as prisões políticas do misógino fradinho de Santa Comba e as do camaradão Ossip Vissarionovitch Stalin, Dzhugashvili na língua georgiocaucasiana da senhora sua mãe) tentou regulamentar a profissão de escritor, apresentando projetos ao Congresso, qual deles o mais cretino (ou ladino). E quê que tem acontecido? Logo, logo, os escritores e os sindicatos (até aquele que eu fundei em 1985 e do qual fui o 1º presidente) se levantam e correm a derrubar os muros da imbecilidade nacional. O que o escritor quer é escrever. E merecer a paga do seu trabalho. Não que apareça um político oportunista e lhe diga quem e de que maneira se pode ser um escritor nos país dos bacharéis. Eu não sei se em Portugal é norma o autor pagar uma parte ou o todo da edição da sua obra. No Brasil não é. O que os editores fazem, isso, sim, é escolher e editar quem eles acham que vai vender e lhes pode pagar a gasolina dos mercedes e o royal salute das grandes digestões. Mas, assim como há milhares de escritores a quem os editores pagam para lhes editarem as obras, também há milhares de escritores que não conseguem editor que os queira publicar. E me parece que esta deve ser uma situação que também ocorre em Portugal. Agora, com o editor pagando ou com o autor pagando, o fato é que os escritores precisam de órgãos que lhes defendem os direitos autorais. Daí, os sindicatos, pois não é a união que faz a força? Mas, assim como você diz que em Portugal a SPA está do jeito que está, eu lhe digo que Brasil também há sindicatos e sindicatos. A diferença é apenas de sotaque. E apenas de sotaque porque a essência do ser humano não tem pátria. Em qualquer parte do mundo há bons e maus ladrões.