CUNHA DE LEIRADELLA - A ARTE COMO MEIO DE CONHECIMENTO


Para Berta Carvalho

Na Natureza, a perfeição é sempre inversamente proporcional ao Absoluto. Quanto mais eu penso, quanto mais eu raciocino, quanto mais eu pergunto, quanto mais eu questiono, mais a minha consciência me torna relativo e mais o Absoluto se distancia.

Considerado o ser humano na sua essência, a Humanidade só progrediu no sentido tecnológico. E apenas com um parâmetro: velocidade. Durante milênios o padrão foi o andar. As distâncias eram grandes e os homens esperavam chegar ao fim da vida, chegando ao fim dos caminhos. A Humanidade caminhava devagar e aproximava-se lentamente dos horizontes descobertos. Se Hipócrates e Galeno não curavam resfriados e

Aristóteles não sabia que, se todos os metais conhecidos eram sólidos, nem todos os metais a conhecer teriam que ser sólidos, pelo menos os seus princípios éticos ficaram demarcados. E se Protágoras, que se preocupava, acima de tudo, com a verdade, também não sabia que o Universo era composto de 100 bilhões de galáxias, tinha alguns buracos negros e se expandia entre 5 e 10% (de acordo com as medidas mais recentes) sabia, contudo, que o homem era a medida de todas as coisas.

O que Protágoras conhecia de si mesmo era-lhe suficiente porque era proporcional ao seu mundo exterior. Na contrapartida, hoje, se a Terra inteira se tornou menor do que Abdera, ainda nada mais conhecemos de nós do que ele conhecia. Nem curamos resfriados. Apenas sabemos que nem todos os metais são sólidos e ultrapassamos a barreira do som. E matematizamos, tranqüilamente, o que irá acontecer quando a barreira da luz for ultrapassada.

Andamos mais rápido, comemos mais rápido, dormimos mais rápido e calculamos tudo com maior velocidade. Conseguimos até bilionezimar o tempo de cada dia. Mas, na euforia velocista, tudo destruímos na razão direta da velocidade dos nossos cálculos. Da clava do Pithecanthropus erectus à espada e ao fuzil foram milênios e milênios de lento caminhar. Já do fuzil aos engenhos nucleares decorreram apenas algumas gerações. O que milhões de homens fizeram com clavas, espadas ou fuzis, hoje, apenas um faz com uma bomba. E em segundos.

Fissuramos o átomo e geramos seres humanos em provetas, e os clones já estão sendo produzidos. Mas, ao socrático primeiro, conhece-te a ti mesmo, nada acrescentamos. Dizemos esquadrinhar os quasares a 14 bilhões de anos luz e reduzimos o Absoluto a uma equação literal. Mas, na verdade, apesar das nossas afirmações categóricas e da velocidade das sondas espaciais, o que somos permanece. Apenas conseguimos estar presentes. Como presentes estão as pedras dos caminhos que pisamos. Só que essas pedras existem desde o começo do tempo, continuarão existindo até ao fim do tempo, e nós desaparecemos a cada geração. Cada vez mais sós e cada vez mais angustiados. Por isso, até para existir somos obrigados a justificar a existência. Ou na solidão do suicídio ou no divã dos analistas. Apesar do que afirmamos, somos, apenas, os ou, ou. Ou nos justificamos ou não somos.

Apesar das nossas descobertas, apesar de tudo que fazemos, e, principalmente, apesar de tudo que afirmamos, continuamos como éramos. Os que sobrarem da próxima explosão nuclear morrerão do mesmo modo que morria o nosso bisavô das cavernas. Só que muito mais angustiados e mais sós. Apavorados por terem carregado dentro de si, a vida inteira, o seu medo, a sua angústia e a sua solidão. Na era do bilionésimo de segundo o meu próximo não existe. Não há tempo de encontrá-lo.

Neste momento, a distância entre a minha janela e o topo da montanha que vejo na linha do horizonte mede, exatamente, o meu campo de visão. Se subir a montanha, na linha do horizonte aparecerão outras montanhas e o meu campo de visão aumentará na razão direta da altura em que subi. Matematicamente, se eu subir indefinidamente, não haverá limites para o meu campo de visão. O meu olhar devassará os confins do Universo. Mas eu sei que isso não é verdade. Na prática, o alcance do meu olhar não dependerá da altura em que subi. E não dependerá porque ele é como eu. É limitado. É finito. Por isso, o fato de eu dizer que posso aumentar infinitamente o meu campo de visão, não significa que eu tenha condições de ver o Universo. Significa, apenas, que, teoricamente, eu poderei ver o Universo.

No estágio em que se encontra a Humanidade, os ônibus espaciais, cada vez, mais avançando pelo Cosmo, e o ser humano, cada vez, mais se ilhando dentro de si mesmo, um só fator nos iguala: a nossa angústia. Não importa que os ricos fiquem, cada vez, mais ricos e os pobres fiquem, cada vez, mais pobres. As vidas de todos nós dependem só de um botão. Que alguém, algum dia, apertará. E em nome da paz.

Por isso, hoje, a diferença entre a unidade e o conjunto, o indivíduo e a classe, não importa. Ou fortalecemos a parte para fortalecer o todo, ou o todo sucumbirá. Se não resgatarmos a unidade não resgataremos o conjunto. É impossível unificar o mundo se o homem não for unificado. Mas, para unificar o homem, há que fazer dele um ser-sem-medo. E a única forma de fazer do homem um ser-sem-medo é dar-lhe consciência. A consciência do homem é o seu conhecimento. O que ele conhece ele não teme.

Os meios de comunicação tornaram o mundo tão pequeno que os homens estão na porta de todas as casas e conhecem todos os moradores. Daí, o medo da exposição, a necessidade fóbica do ilhamento. Mas se o homem, cada vez, mais medo tem de se expor e mais se ilha, como fazer dele um ser-sem-medo?

Com os engenhos nucleares já em contagem regressiva e os clones humanóides já em fase de produção, não importa mais que o ato de fazer ARTE seja um ato individual ou um ato social. Ele terá que ser um ato de conhecimento ou será um ato inócuo. Ou o homem dá as suas próprias respostas, ou chegará o dia em que não saberá nem mais fazer perguntas.

Mas, para que isso aconteça, para que a ARTE seja um meio de conhecimento, o homem tem que assumir a sua individualidade. A sua integridade. Posicionar-se concretamente perante a realidade que o cerca e questionar o seu estado. Entretanto, para que o homem possa posicionar-se concretamente perante a realidade que o cerca e questionar o seu estado, tem, antes de tudo, de posicionar-se concretamente perante si mesmo e questionar o seu estar-no-mundo. Assumir a sua essência.

O ser humano é na sua essência e existe nas suas atitudes. Por isso, o ser-consciente tem que ser, obrigatoriamente, um ser-definido. Existir, apenas estar-no-mundo, não significa questionar. Significa, somente, estar presente. E presentes, só presentes, estão as coisas. Sem nada definir e sem nada questionar.

Se a ARTE não questionar o momento da realidade que a originou, perde o significado e o propósito. Será também, e tão somente, uma coisa. Estará presente, mas apenas estará presente. E uma criação artística não pode ser mais, somente, uma forma de diversão ou de prazer. Nem, tampouco, uma forma de comunicação a serviço de uma ideologia. Ou uma discussão existencial. Não há mais como provocar catarses. The Day After esgotou todas as catarses.

A essência do artista infere, por si mesma, um comprometimento e um engajamento. Mas não ideológicos. Quando o artista se compromete e se engaja ideologicamente, ele nega não só a sua consciência como abjura também a sua liberdade. O artista deve comprometer-se somente com a sua verdade e engajar-se apenas na sua liberdade. Só deste modo ele fará da sua criação o seu questionamento. O seu conhecimento. Sem conhecer é impossível questionar.

E é conhecendo que o homem pode transformar. A si mesmo e à realidade que o cerca. Na aceitação ou na revolta não existe conhecimento. Existe, apenas, passividade ou negação. E o artista não aceita, nem nega. Cria. Questiona a realidade que o cerca e faz da sua arte um meio de conhecimento. De conscientização e de transformação. De independência.