CUNHA DE LEIRADELLA
Da Essência dos Encantos

Para Maria Adelaide Abreu Lima

         Hoje, não quero falar de mim. Nem de crises. E muito menos de futebol ou de política. Hoje quero falar de encantos. De lagos e de bruxinhas encantadas. Nas penedias da serra ou nas sombras de qualquer esquina ou cruzamento.

         Vou falar de lagos, mas só vou falar dos lagos que são lagos. Daqueles que entardecem na paz da pouca luz e adormecem tranqüilos na escuridão das madrugadas, e amanhecem preguiçosos no nevoeiro que desce pelas quebradas ou no primeiro raio de sol que desponta nas alturas. Daqueles que são eternos porque as fontes que os alimentam também são eternas e neles ainda fazem ninhos os silêncios dos infinitos.

         Esses são os lagos dos encantos. Aqueles lagos onde se mira o vôo das águias nas alturas e onde as cores das libélulas fazem nascer os arco-íris, e onde deságuam as fontes encantadas e as andorinhas buscam os fundamentos dos seus ninhos. Não há silêncio que mais se escute do que o silêncio dos lagos encantados. E não são as mouras que choram nas noites de lua nova nem as princesas que se mostram nas noites de lua cheia que fazem o encanto dos lagos encantados. Quem encanta e faz brilhar os lagos encantados no feitiço madrugador dos tentilhões é a felicidade das fontes encantadas dos amores e dos amantes.

         São poucos os lagos dos encantos. Muito poucos. Mas eu conheço um. Um onde se mira o vôo das águias nas alturas, onde as cores das libélulas fazem nascer os arco-íris, onde deságuam as fontes encantadas e as andorinhas buscam os fundamentos dos seus ninhos. Um que encanta quem o vê. E não fui só eu que o vi. Nem fui só eu que me encantei. As águias que voam nas alturas, atentas ao restolho da caça nos baixios, também o viram e também ficaram encantadas. E até travaram o plainio do vôo, atentas aos passos que iam às nascentes das fontes encantadas a murmurar palavras que não precisavam ser ditas para serem entendidas.

         As bruxinhas encantadas nas penedias da serra não são as mouras que choram nas noites de lua nova nem as princesas que se mostram nas noites de lua cheia. São apenas o que são. Encantos que se espraiam e se mostram nos espelhos das águas dos lagos dos encantos. E se banham e aspergem de estrelas e de silêncio a fulgência do luar, porque são elas que encantam as fontes encantadas que deságuam nos lagos dos encantos. E sempre que as águias travam o plainio do vôo, atentas aos passos que vão às nascentes das fontes encantadas a murmurar palavras que não precisam ser ditas para serem entendidas, nem elas nem as águias fogem assustadas. O amor existe como existem os encantos das fontes e dos lagos encantados. Sem precisar dizer palavras que não precisam ser ditas para serem entendidas.

         Eu conheço uma bruxinha encantada nas penedias da serra. Não vive na serra. Vive na cidade. Mas o seu encanto está encantado nas penedias da serra. E ela sabe que os encantos das fontes e dos lagos dos encantos são eternos. Que viverão enquanto viver quem a vê as águias que voam nas alturas travar o plainio do vôo, atentas aos passos que vão às nascentes das fontes encantadas a murmurar palavras que não precisam ser ditas para serem entendidas.

         Por isso digo, eu, que conheço os lagos dos encantos e as águias que voam nas alturas, quem conhecer alguma bruxinha, seja encantada nas penedias da serra, seja encantada nas sombras de qualquer esquina ou cruzamento, faça o que fazem as águias. Que fique atento aos passos que vão às nascentes das fontes encantadas, pois o homem que ela encantar, será eterno.

 

Cunha de Leiradella nasceu na Serra do Gerês, em Portugal, quase fronteira com a Espanha.  Publicou o romance O longo tempo de Eduardo da Cunha Júnior (1981), Inúteis como os mortos (1985), Cinco dias de sagração (1993),Os espelhos de Lacan (2004), entre outros. Escreveu também o roteiro de  longa-metragem O circo das qualidades humanas.

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