CUNHA DE LEIRADELLA
Os espelhos de Lacan . Romance

INDEX

Cibergrafia: a 4ª dimensão da narrativa
OS ESPELHOS DE LACAN
Considerações sobre graus dissociados
O objeto e os espelhos
O objeto e as imagens (a)
O objeto e as imagens (b)
O objeto e as imagens (c)
O objeto e as imagens (d)
Cibergrafia: a 4ª dimensão da narrativa (cont. e FIM)

O OBJETO E AS IMAGENS

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Dezesseis de novembro. Fiz, hoje, cinqüenta e dois anos e me dei o melhor presente que poderia receber. Arrumei um motivo. Belizário, você sempre disse que esta mesa tanto podia ser de ferro quanto de madeira, o importante era você ter um motivo e eu sempre contestei, lembra? Mas, agora, não vou mais contestar. Eu já arrumei um motivo, meu irmão. Esta mesa, agora, é de madeira.

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A mulher despiu-se. Devagar e sem sorrir, e também sem me olhar. Como se já me conhecesse há muito tempo ou já estivesse cansada de tanto tirar aquela roupa. Abri a janela e olhei a rua. Ninguém andava nas calçadas e as lâmpadas pareciam pirilampos. Não gosto da escuridão e do silêncio, mas não tinha opção. Às quatro horas da manhã todas as ruas são iguais. As lâmpadas sempre parecem pirilampos e o ruído do silêncio sempre estala nas esquinas.

A mulher chamou-me. Não sabia o meu nome, mas chamou-me, vem, amor. Voltei-me e olhei-a. Estava deitada e olhava-me, e o corpo era branco e parecia frio como o ferro das mesas do Vaca Atolada. E eu não queria mais aquele frio colado na polpa dos meus dedos.

Encostei-me na janela e acendi um cigarro. A mulher abriu as pernas e sorriu, e a sombra dos pentelhos pareceu um ninho de baratas. E se aquelas baratas subissem pelo meu corpo e aquele corpo se grudasse no meu e eu tivesse que andar sempre com ele, mesmo quando adormecesse ou fosse ver O Marido da Cabeleireira no cinema Belas Artes Liberdade? A mulher estendeu os braços e acariciou, devagar, o ninho das baratas.

Joguei o cigarro na calçada e fechei a janela, e tirei algumas notas da carteira. A mulher pulou da cama e vestiu-se, sem sorrir. E também não disse nada. Mas eu não me importei. Pelo menos, não era necessário que me encaixasse nas pernas dela para que ela se calasse.

No Vaca Atolada ninguém nos olhou quando entramos. Mas eu também não olhei para ninguém. Agora, já não me importava que me olhassem e os olhares dissessem que eu não era igual a eles. Agora, eu já era igual a eles. E, quando me sentei e olhei o relógio velho, ainda pendurado na parede, também já não tive mais frio, nem tive mais medo. O tempo já não zunia nos meus ouvidos. Agora, escorria, devagar, pelas paredes, como a chuva fina das madrugadas, e eu sempre gostei das madrugadas. Sentei e pedi dois conhaques, e a mulher sentou também.

- Você só precisa é quem lhe entenda, viu?

Não respondi. Entender ou não entender é como ser ou não ser. Nunca é opção. O garçom trouxe os conhaques e eu pedi que deixasse a garrafa. A mulher olhava-me e acenava com a cabeça.

- Eu também sou assim, sabe? Tem vez que não posso nem falar. Mas não me importo, não. O que vier, pra mim, tá sempre bom.

Fez uma pausa e bebeu metade do conhaque, e encolheu os ombros.

- Quê que eu posso fazer, né? Só se me matar.

Bebeu o resto do conhaque e levantou-se. Puxei-a por um braço.

- Senta.

A mulher olhou-me e encolheu os ombros.

- Quer ir agora, é?

- Senta.

A mulher sentou-se.

- Se tá a fim, a gente vai, viu?

Calou-se e encheu o copo. Bebeu um gole, devagar, e ficou olhando para mim.

- Você só precisa, mesmo, é quem lhe entenda, sabe?

Calou-se outra vez e bebeu outro gole, e ficou olhando para o copo. Tinha os olhos encovados e a pele cheia de rugas, mas, pelo menos, estava ali do meu lado.

- Sabe? Já tenho um motivo.

A mulher olhou-me e riu, e deu uma palmada na minha mão.

- Ah, é? Que bom. Vamos, então?

Todo mundo que eu conheço canta e dança as músicas que mais gosta e me pergunta por que eu não gosto de música. E quem disse que eu não gosto de música? Eu não sei é cantar, nem dançar, puta que pariu.

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Talvez seja até verdade, mas eu não acredito que Eduardo tenha morrido. Aquele Eduardo da Cunha Júnior que eu conheci, esse, então, só vai morrer quando eu também morrer. Quem me contou foi Jussara. Encontramo-nos aqui em São Paulo, num Encontro de Professores de Língua Portuguesa, e ela, logo que me viu, veio correndo, Ana, você já soube? O Eduardo, lembra dele? O Eduardo da Cunha Júnior, menina. Diz que morreu. E sabe quando? Diz que foi em dezembro, Deus que lhe perdoe, se puder, que o que ele nos fez...

Nem escutei o resto. Conheço Jussara há anos, fomos colegas na Faculdade, mas ela nunca soube ser mulher. Jussara sempre quis foi ser esposa, embora, ainda hoje, que eu saiba, continue sem marido. E isso sempre lhe balançou a cabeça.

Há muito que eu não sei nada de Eduardo. Desde que saí de Belo Horizonte e vim para São Paulo, nunca mais soube nada dele. Mas não acredito que tenha morrido. Se fosse verdade, Maurício já me teria contado. Não faz nem dois meses ele esteve aqui, me disse, inclusive, que tinha casado, mas não falou nada de Eduardo. Por isso, não acreditei em Jussara. E não acreditei, porque ela nunca entendeu Eduardo. Jussara sempre quis casar e Eduardo sempre foi casado. Com ele ou com os fantasmas que moravam na casa dele, mas sempre foi casado.

E foi, justamente, por isso que nós nos separamos. Eu sempre gostei de Eduardo e, para ser absolutamente sincera, ainda gosto. Mas, uma coisa é estar e outra coisa é viver com Eduardo. Eduardo não vive com ninguém. Se eu não tivesse feito a burrada de também querer morar na casa dele, talvez ainda hoje estivéssemos juntos. Ou talvez não, não sei. Mas uma coisa é certa. Eu não teria vindo para São Paulo.

Aquela mulher do Maurício, aquela Marta, era um saco, principalmente, quando falava de Eduardo. Eu nunca soube se houve alguma coisa entre eles, ele conheceu-a muito antes de mim, mas o ódio que ela tinha dele era uma verdadeira obsessão. E falava na frente de qualquer um. Muitas vezes falou na minha frente, na frente de Maurício e na frente do próprio Eduardo, sem o menor constrangimento. Marta era louca, só podia ser.

Mas, sob certos aspectos, eu acho que ela não deixava de ter razão, muito embora, e isto é o que eu penso, nunca tivesse entendido os verdadeiros motivos de Eduardo. Eu nunca lhe perguntei e ele também nunca me disse. Mas que havia alguma coisa mais forte do que ele dentro dele, isso havia.

Se me perguntassem o que mais me encantou em Eduardo, de uma coisa eu tenho certeza. Não foi só o gosto pelos chopes do Vaca Atolada, que eu conheci junto com ele, nem a admiração por Antonioni e por Fellini. Foi a postura. A forma, não só como Eduardo se encarava a si mesmo, mas a tudo. Uma vez, logo que nos conhecemos, levei-o ao Le Mocó. Eu adorava o Le Mocó. Não por ser um bar doidão, talvez o único onde já se puxavam baseados em Belo Horizonte, naquela época, mas por causa da Lucy. A Lucy Panicali era fantástica, tudo que pintava na cabeça dela, ela fazia, e eu pensei que Eduardo iria gostar daquele tipo de liberdade. Pois entramos e saímos como se nada tivesse acontecido. Ana, me desculpe, mas o tudo seria permitido se Deus não existisse não faz minha cabeça. E nunca mais voltou ao Le Mocó. E, o que é ainda mais gozado, nem eu.

Eduardo sempre acreditou no que dizia. Para ele, sim era sim, e não sempre foi não. Quando, e não foi uma vez só, ele me pediu para morar na casa dele, eu sabia que era isso, exatamente, que ele desejava. Se por medo de estar só ou para matar algum fantasma, não sei. Sei, e disso tenho certeza, que, naquele momento, era o que ele mais precisava. E, para falar a verdade, chegou uma hora que eu também precisei. E precisei tanto, que fui morar com ele.

Mas, confesso, esse foi o meu erro. Eduardo nunca morou só. Eduardo vivia só, mas nunca morou só. Na casa dele morava tudo que ele nunca tinha sido. Ou melhor, na casa dele morava tudo que ele sempre quis ser e nunca tinha conseguido.

Eduardo nunca me falou do passado. Mas, também, nunca foi necessário. Só um cego, e, nesse ponto, Jussara sempre foi a maior cega, não via o que estava acontecendo. Eduardo sempre deu muito valor ao seu espaço, à sua privacidade. E dava tanto que, às vezes, chegava até a ser incômodo. Mas eu sempre respeitei. Para mim, cada um deve fazer sempre aquilo que acha que é certo. E se Eduardo achava certo ser como era, que direito eu tinha de me intrometer na vida dele? Claro que eu estranhava muitas coisas. Por exemplo, aquela obsessão de desligar o telefone no dia de Natal, aquela birra de nunca entrar no quintal e também não gostar que eu entrasse. Mas, como isso, na verdade, pouco ou nada significava para mim , eu não ligava. Só quando o telhado daquele barraco apodreceu e desabou, e Eduardo se recusou a consertá-lo, é que eu me dei conta do que, realmente, acontecia naquela casa. De quantos fantasmas ainda lá moravam.

Eu falo do barraco porque, para mim, ele sempre foi um ponto chave na vida de Eduardo. Mas se ele achava que era problema só dele, que direito eu tinha de discordar? Nenhum. Se eu exijo que respeitem o meu espaço, é lógico que eu tenho de respeitar o espaço dos outros.

Maurício, que sempre conheceu Eduardo melhor do que eu e talvez melhor do que ninguém, muitas vezes me falou das brigas de Eduardo com o pai. Para Maurício, o fato de Eduardo querer ser fotógrafo e o pai não permitir, por achar que ser artista não era profissão, foi o motivo que o levou a ser o que era. Um solitário, que defendia até à morte o seu direito de ser livre.

Mas, para mim, que muitas vezes o vi chegar à noite e sentar na varanda e passar horas e horas em silêncio, olhando as ruínas do barraco ou a mangueira, ou o mato que crescia no meio daquilo tudo, esse não era o verdadeiro motivo. Quando a gente quer, se a gente quer mesmo, não tem pai, nem mãe, que nos obrigue a fazer, ou não fazer, seja o que for. Meu pai e minha mãe nunca concordaram com a minha vida e fizeram tudo para que eu me casasse e vivesse como eles. Missas dançantes no Minas Tênis, namoro, noivado, véu e grinalda, essas coisas. E, no entanto, eu nunca dancei nas missas do Minas Tênis, nunca noivei, e, o que é pior, nunca casei. Sempre vivi como quis. Por isso, é que eu acho que o verdadeiro motivo de Eduardo ser o que era, não foi o pai não permitir que ele fosse um artista. Foi o próprio Eduardo nunca ter conseguido ser um artista.

Tudo isto são suposições. Eduardo nunca me falou nada e a verdade só ele saberá. Mas uma coisa é tão certa quanto a certeza que eu tenho de morrer. Dentro daquela casa sempre teve outros moradores além de Eduardo e de mim, e do nosso gosto por Antonioni e por Fellini, e pelos chopes do Vaca Atolada. E foram eles, justamente, esses moradores que eu nunca conheci, mas que rodeavam Eduardo, que me obrigaram a sair.

Se eu nunca tivesse entrado, nunca teria saído. Mas isso, agora, já não importa. O que importa, agora, são os fatos. Se eu não tivesse aceitado fazer uma coisa que jamais deveria ter aceito, ter ido morar na casa dele, talvez ainda hoje o acompanhasse ao Pathé e ao Vaca Atolada, e continuasse a ter, na cama, aquilo que nunca mais tive. A certeza de que, naquele momento, tinha alguém do meu lado e eu também estava ao lado de alguém.

Mas não adianta. A vida é o momento que passa e o momento que há de vir ninguém sabe como será. Quando a gente acha que, se mudar, vai resolver, na realidade nunca muda, nem resolve. Cada um continua com o que tem, embora lamente a vida inteira o que poderia ter tido, se pudesse reverter ao passado.

Só que não é possível reverter ao passado. Nem quando se deixa de viver e se começa a recordar. Como eu estou fazendo agora, só porque você me perguntou se eu acreditava que Eduardo tinha morrido. Não. Não acredito. Não há como acreditar. Como lhe disse, aquele Eduardo da Cunha Júnior que eu conheci, esse, então, tenho absoluta certeza que não morreu. Nem hoje, nem em dezembro do ano que passou, nem nunca. Quanto mais não seja, ele viverá enquanto eu também viver.

33

Já não tenho medo. Agora, já não tenho mais medo. Estou no meu quarto, deitado na minha cama, e as luzes estão todas apagadas. Sei que é noite e estou só, mas sinto-me bem, aqui deitado, sem nada escutar, nem enxergar à minha volta. Só a escuridão e o silêncio me rodeiam. Mas, agora, até a escuridão e o silêncio me fazem bem. Parece que o corpo não tem peso e pode até flutuar, se eu quiser flutuar.

Não sei que horas são, nem há quanto tempo estou aqui, e também não tenho vontade de saber. Sejam que horas forem, agora, não importa. Pela primeira vez na minha vida não tenho medo do escuro, nem do silêncio, e o tempo também não conta. Neste momento, embora saiba que não é verdade, é como se a eternidade fosse minha. É como se eu não fosse eu e o tempo fosse a minha verdadeira dimensão.

Não sei se foram os meus olhos que se fecharam ou se foi a escuridão que os cegou. Ou o meu corpo que flutuou e me levou. Sei, apenas, que estou aqui e estou bem. Sem movimentos e sem ruídos, e os espaços e os silêncios fossem caminhos há muito percorridos, mas sem necessidade de retorno. Quando vim, ninguém me acompanhou. Nem de perto, nem de longe. Mas eu também não precisei da companhia de ninguém. Nem de nada. Só precisei chegar aqui.

Meu pai e meu padrinho ainda não chegaram, e minha mãe, como sempre, ciranda na cozinha. As galinhas já dormitam no poleiro e os pardais aconchegam-se entre as folhas da mangueira, e eu estou no meu barraco e converso com as fotografias pregadas nas paredes. Agora, tenho certeza, se quiser olhar o mundo que está lá fora poderei vê-lo de mil maneiras diferentes.

34

Marianinha está comigo e eu a tenho, como já a tive, muitas vezes, no fundo do quintal, encostada no muro ou no tronco da mangueira. A mão dela pega na minha e eu a sinto, e escuto também as suas gargalhadas. Marianinha encosta-se no muro e puxa-me contra ela e me abraça, e eu sei o quanto é importante ter um motivo.

Fecho os olhos e as pernas começam a tremer, e a língua de Marianinha abre caminho entre os meus dentes. O chão treme debaixo dos meus pés e tudo roda à minha volta, e os meus ouvidos zumbem e milhares de pontos brancos dançam na escuridão das minhas pálpebras. Marianinha crava as unhas nas minhas costas e enrosca as pernas nas minhas coxas, e o meu sexo começa a latejar e endurece. Marianinha regouga e morde a minha boca, e o sangue e a saliva escorrem na garganta. Mas nenhuma dor me faz gritar.

Marianinha abre a minha camisa e a blusa e esfrega os seios no meu peito, e a garganta fica seca e mal posso respirar. Marianinha geme e morde o meu pescoço, e enfia as mãos dentro das minhas calças, e o sexo dói, de tão intumescido. Marianinha levanta a saia e coloca a minha mão debaixo da calcinha, e geme e crava as unhas no meu braço. Arqueia o corpo e abre as pernas e empurra a minha mão, e, de repente, fecha as pernas e as coxas parecem tenazes no meu pulso. Tapa a boca e morde os dedos, e o corpo fica duro e a respiração parece um estertor.

Marianinha serena e ajoelha-se, e baixa a minha calça e encosta o rosto no meu ventre. Enfia a língua no umbigo e desce até às coxas, e suspende o sexo com as mãos. Roça-o nos seios e acelera os movimentos, e a violência da primeira contração me deixa tonto. Finco os pés no chão e fecho os olhos, e a explosão começa e não tem fim. O chão some debaixo dos meus pés e um vácuo estoura na cabeça, e o meu corpo, livre de pensamentos e de pesos, ergue-se do chão e flutua, mesmo sem eu querer flutuar.

35

Marianinha era assim. Todas as tardes brincava no quintal, as tranças louras balançando e batendo na cintura, e o vestido sempre voando acima dos joelhos. Os galhos da mangueira passavam pelo muro e, do outro lado, duas cordas e uma tábua, serviam de balanço. Marianinha varria o terreiro e cantava, e pulava amarelinha, e eu jogava bola de gude, impaciente, só esperando que ela subisse no balanço.

Quando os galhos abanavam, eu marinhava pelo tronco da mangueira e escondia-me no meio da folhagem. Marianinha parecia adivinhar e ria, e abria as pernas e balouçava com mais força. Enfunado pelo vento, o vestido arregaçava e mostrava as coxas nuas, e, quando os pés batiam nos galhos, a calcinha aparecia, repuxada pela tábua do balanço. Eu tinha medo que Marianinha me visse e escondia-me entre as folhas, e Marianinha ria e continuava balouçando.

Marianinha era assim e eu gostava que ela fosse assim, mesmo sabendo que Marta nos espiava do fundo do quintal.

36

Foi num dia de Natal que Marianinha me quis. Naquela tarde não varreu o terreiro, nem cantou, nem pulou amarelinha. Subiu direto no balanço e eu só percebi quando os galhos abanaram. Larguei as bolas de gude e subi, correndo, na mangueira, e Marianinha, como sempre, riu e balouçou com mais força. Acomodei-me nos galhos e fixei os olhos no vestido, que subia e descia e mostrava as coxas nuas, e, de repente, Marianinha suspende o corpo e abre as pernas, e me mostra que está nua, sem calcinha.

Surpreso, abri as mãos e caí em cima do balanço, e Marianinha caiu no chão, junto comigo. Mas não gritou, nem me xingou. Levantou-se e ficou sorrindo e olhando para mim. Sem saber o que fazer, quis fugir e tentei saltar o muro, mas ele era alto e era liso, e as mãos escorregaram.

As unhas rebentaram e doeram, mas eu fechei os olhos e não chorei. Não queria olhar Marianinha, com medo que ela risse. Mas Marianinha não riu. Levantou-me e encostou o corpo no meu e abraçou-me, e enfiou a língua na minha boca.

A minha cabeça rodou e as pernas bambearam, e Marianinha pegou a minha mão e puxou-me, e correu na minha frente. No fundo do quintal tinha um monte de caixotes e Marianinha me escondeu no meio deles. Eu não sabia o que fazer, mas Marianinha sabia o que queria. Enfiou a língua na minha boca e meteu as mãos dentro das minhas calças, e eu não pude nem gritar quando o meu corpo endureceu e a minha cabeça explodiu.

Foi assim que Marianinha me quis e foi assim que eu a tive, naquele dia de Natal.

37

A montanha recorta o horizonte à minha frente e flocos de nevoeiro rodam entre as árvores e salpicam de branco o verde da folhagem. Lambido pelo vento, o capim curva-se e ondula pela encosta, e, no alto da montanha termina a madrugada. O dia nasce e os gaviões e os pássaros esvoaçam e chilreiam, e o vale se enche de ruídos. O fumo do meu cigarro esvai-se e os restos do nevoeiro também se desfazem, batidos pela luz e levados pelo vento.

Perdido na distância, o Colégio do Caraça mal se vê e eu estou aqui, sentado nesta pedra, e sei que poderia estar em qualquer outro lugar. Mas não quero estar em qualquer outro lugar. Agora, já não tenho medo de esperar e este lugar me dá paz.

O meu cigarro apagou e o sol desce pelas quebradas e dissolve as últimas sombras do vale. Batidos pela luz, os telhados do colégio aparecem e parecem até aproximar-se. Gotas de orvalho brilham nas pedras e escorrem das folhas e dos troncos, e só o chilreio dos pássaros rompe o silêncio que me cerca. Jogo fora o toco apagado do cigarro e cruzo as mãos em cima dos joelhos e fecho os olhos, e Marianinha aconchega-se na minha jaqueta e aperta o corpo contra o meu.

- Já tinha vindo aqui?

Abro os olhos e aceno com a cabeça, e Marianinha continua olhando para mim.

- Foi por isso que voltou?

Não respondo. Não há necessidade. Ambos sabemos a resposta. Marianinha encolhe as pernas e cruza as mãos em cima dos joelhos, e fixa os olhos nos meus. Uma lufada mais forte traz o cheiro da terra umedecida e gotas de orvalho caem sobre mim. Deixo a água fria entranhar-se na camisa e acendo um cigarro, e puxo algumas tragadas em silêncio.

- Marianinha...

Marianinha não responde. Baixa a cabeça e fecha os olhos, e encosta o queixo nas mãos cruzadas em cima dos joelhos.

- Marianinha...

Marianinha continua na mesma posição, sem responder. Puxo uma tragada profunda e jogo o cigarro no chão.

- Preferia não ter vindo? É isso?

Marianinha cobre o rosto com as mãos e abana a cabeça, devagar.

` - Não sei.

- Aqui ou em outro lugar, que diferença vai fazer?

Marianinha estende as pernas e cruza as mãos no colo, e deixa cair a cabeça sobre o peito.

- Marianinha...

Marianinha volta-se, de repente, e abraça-me, e aperta, com força, o corpo contra o meu.

- Eu não sei como vai ser, Eduardo.

- Nem eu. Mas não me importo.

Já é dia. Belo Horizonte perdeu-se na noite que passou, emaranhada de esquinas e de rostos, e, agora, só a memória e a tranqüilidade me rodeiam. Dentro em pouco o sol vai dourar a torre da igreja e alguém tocará o sino, chamando para a missa, e mais um dia começará. Mesmo que cento e cinco grãos de milho decompusessem um telescópio e mil e doze telescópios formatassem um coração, nenhum signo fundamentaria uma mulher e nenhuma mulher deletaria uma paixão. Não há forma de ser feliz.

A mão de Marianinha encosta no meu rosto e a palma desliza, devagar, na minha pele.

- Tá pensando em quê?

Não respondo. Agora, não penso mais.

- Pensava no Maurício?

São os pensamentos que nascem sem eu querer. A palma da mão de Marianinha cola na minha face e o calor entra na minha pele e formiga no meu sangue.

- Era no Belizário? Na Marta?

Não respondo, não adianta responder, e a mão de Marianinha desliza, outra vez, na minha pele.

- Pensava na Lúcia? Na Ana Carolina?

Fecho os olhos e continuo calado.

- Ou era na Jussara? Na Célia? Na Cida? Na Marjô? Ou na Jaqueline dos Melões?

Eu não penso, Marianinha. Os pensamentos é que nascem sem eu querer. Marianinha puxa-me contra ela e abraça-me, e deixa cair a cabeça no meu peito.

- Eu tava pensando na gente.

Queria ser imortal. Em relação aos outros homens, todos mortais, eu não seria mais um homem. Seria uma coisa, eu sei. Mas, mesmo assim, queria ser imortal.

Se fosse imortal, a minha finalidade seria somente existir e não apenas estar-no-mundo e perguntar, se são necessários cento e cinco grãos de milho para decompor um telescópio e mil e doze telescópios para formatar um coração, quantos signos serão precisos para fundamentar uma mulher e quantas mulheres para deletar uma paixão? Se fosse imortal, eu teria todas as certezas e não precisaria falar em duas línguas.

O mugido de um boi soa ao longe, no curral do colégio, e o som triste repercute nas encostas. Os meus ouvidos zumbem, mas logo a tristeza morre no silêncio e o som se esvai, e os meus ouvidos deixam de zumbir. Sinto uma vontade imensa de fumar, mas não me mexo. Não posso. A cabeça de Marianinha continua caída no meu peito e o coração repercute no meu.

- Eduardo...

Eu queria ser imortal.

- Eduardo...

Se eu fosse imortal... Marianinha afasta a cabeça do meu peito e segura o meu rosto com as mãos.

- Eduardo, por favor.

Não sei o que Marianinha ainda quer saber e não respondo. O que importa, agora, ela já sabe. Marianinha faz uma pausa e fixa os olhos nos meus.

- Quê que você mais queria ter?

Não adianta responder, mas Marianinha ainda segura o meu rosto e os olhos não se movem. Olham-me tão fixamente, que parecem estar dentro dos meus.

- Quê que eu mais queria ter?

Marianinha continua segurando meu rosto e os olhos ainda estão dentro dos meus.

- É. Quê que você mais queria ter?

Marianinha quer saber o que já sabe e não adianta repetir, mas eu não posso lutar contra aquele olhar que me trespassa.

- Quando? Agora?

- Sempre, Eduardo.

Você sabe a resposta e responder nada resolverá, Marianinha. Agora, o momento não é de perguntas, nem de respostas. Tento pegar um cigarro, mas não consigo. As mãos de Marianinha não deixam. Puxam as minhas para dentro da jaqueta e os seios comprimem-se contra elas.

- Fala, Eduardo.

Não foi o olhar, nem foi o tom da voz que me levou a responder. Foram as minhas mãos. Há muito eu não sentia o calor daqueles seios.

- Certeza.

- Só certeza, Eduardo?

Um pássaro voa, de repente, da copa de uma árvore e um gavião mergulha sobre ele. Há um choque e um grito de agonia e algumas penas são levadas pelo vento, e as minhas palavras morrem na garganta. O grito de agonia daquele pássaro foi mais forte do que o som da minha voz e a minha vontade de dizer, só certeza, Marianinha.

O sol bate na cruz da igreja e cintila no metal, e uma rola vem pousar no chão, à minha frente. Cisca as folhas secas da grama e olha-me, e, ao menor ruído, pára de ciscar e olha o céu, atenta aos gaviões. Fico completamente imóvel e a rola continua a sua faina.

Penso no grito de agonia daquele pássaro e sinto uma vontade enorme de proteger aquela rola. Mas não posso nem mexer-me. Marianinha continua olhando para mim e o coração bate nas palmas das minhas mãos. Passa-se algum tempo e Marianinha mexe-se e a rola espanta-se e foge, e desaparece por entre as árvores. Respiro, aliviado. Pelo menos, por algum tempo, estará salva.

- Eu não queria que você morresse nunca, Eduardo.

A voz de Marianinha é baixa e os olhos estão fixos nos meus. Mas parecem não me ver.

- Marianinha...

Os olhos de Marianinha ainda não me vêem. Olho-os durante algum tempo e eles estão cegos, e, de repente, um raio de sol faísca à minha frente e encandeia-me, e as cores do arco-íris matizam tudo ao meu redor.

- Marianinha...

Os olhos de Marianinha continuam não me vendo, mas eu sei que ela está junto de mim.

- Na Natureza, a perfeição é sempre inversamente proporcional ao absoluto, Marianinha. Quanto mais eu penso, quanto mais eu raciocino, quanto mais eu pergunto, quanto mais eu questiono, quanto mais eu duvido, mais a minha consciência me torna relativo.

Um bem-te-vi pousa numa árvore à minha frente e as penas matizadas confundem-se nas cores do arco-íris.

- Tá vendo aquele bem-te-vi?

Marianinha não se mexe, mas tira os olhos dos meus e olha o bem-te-vi.

- Ele não tá preocupado com isso, Eduardo.

Marianinha tira as minhas mãos de dentro da jaqueta e respira fundo e fecha os olhos, e deixa cair a cabeça no meu ombro. Sorrio, tranqüilo. Agora, Marianinha já me vê.

Um carro passa na estrada, lá em baixo, e entra na esplanada do colégio. O ronco do motor ressoa pelo vale e bandos de pássaros revoam pelas árvores.

- Marianinha...

Marianinha não responde. O sino toca, anunciando o fim da missa, e as pessoas saem da igreja.

- Marianinha...

Marianinha continua sem responder. Cruza as mãos em cima dos joelhos e ajeita a cabeça no meu ombro.

- Quê que importa mais, Eduardo? O momento ou o ato?

Agora, sou eu que não respondo. Não posso. Se respondesse teria que mentir.

- Fala, Eduardo.

Marianinha afasta a cabeça do meu ombro e olha para mim.

- Eduardo...

Continuo calado. Sem o momento o ato não existe. Mas, sem o ato, o momento também fica incompleto. Marianinha fecha os olhos, e, de repente, cobre o rosto com as mãos.

- Você nunca me quis, Eduardo.

Eu não respondi, não menti, mas Marianinha sempre soube. Eu sempre fui um mentiroso.

38

Troquei Marianinha por nada. E não foi, sequer, uma opção. Foi uma perda. Agora, não há mais bolas de gude no quintal e o meu barraco caiu de podre, abandonado. E, do outro lado do muro, também ninguém mais canta, nem ri, nem pula amarelinha, nem brinca no balanço e satisfaz o meu desejo.

Ninguém mais me obriga a papaguear a tabuada, nem a aceitar como verdade o que os outros dizem que é verdade. Mas foi uma vitória perdida. Dois vezes dois ainda continuam sendo quatro e oito vezes oito ainda continuam sendo sessenta e quatro. E o mundo que olhei nunca consegui vê-lo de mil maneiras diferentes. Por mais que olhasse, por mais que me esforçasse e por mais fotografias que tirasse, os meus olhos viam sempre a mesma coisa, eu olhando para os outros e os outros olhando para eles.

E, se paro e me olho, e mergulho na memória, nem no tempo posso viajar. O máximo que o tempo me permite é andar junto. Acompanhá-lo. Mas, mesmo tendo companhia, a viagem é sempre solitária. Para o tempo, o caminho não tem fim, e, para mim, não tem retorno. O instante que passa já passou e não há como fazê-lo retornar. Recordá-lo não é vivê-lo. É só trocá-lo por outro. Que também já passou e não retornará.

Troquei Marianinha por nada. E nem sequer uma fotografia tenho dela. Marianinha nunca me deixou fotografá-la. Vê-la de mil maneiras diferentes.

39

Agora, o que importa é o silêncio. A imensidão e o silêncio. O movimento parou e a gravidade não existe, e tudo é como se nunca tivesse sido. Agora, não há mais necessidade de opções, nem de motivos. Ou de momentos e de atos, justificativas ou certezas. Agora, Marianinha, o que importa é o silêncio. A imensidão e o silêncio. O ruído dos meus passos já não estala nas calçadas, nem o ruído do silêncio estala nas esquinas. Nem os pensamentos estalam na cabeça. O que foi deixou de ser e o que é nunca será. Você nunca esteve no quintal e o balanço nunca balouçou, e nós nunca estivemos no Colégio do Caraça e o tempo nunca reverteu. Agora, o que importa é o silêncio. A imensidão e o silêncio.

Agora, eu sei que o homem não foi criado em função de. Foi causa de. Mas saber, agora, nada vale. Não existe mais um mundo que possa ser olhado e visto de mil maneiras diferentes. Eu é que deveria ter-me dividido e não soube dividir-me. Por isso, Marianinha, agora, não importa mais que cento e cinco grãos de milho decomponham um telescópio e mil e doze telescópios formatem um coração ou um signo fundamente uma mulher e todas as mulheres digam que me amam. Agora, o que importa é o silêncio. A imensidão e o silêncio. Agora, Marianinha, as causas não produzem mais efeitos e os motivos acabaram, e nem a minha jaqueta te pode aconchegar. Agora, Marianinha, eu calarei em dois silêncios.

 

Cunha de Leiradella nasceu na Serra do Gerês, em Portugal, quase fronteira com a Espanha.

Publicou o romance O longo tempo de Eduardo da Cunha Júnior (1981), Inúteis como os mortos (1985), Cinco dias de sagração (1993),Os espelhos de Lacan (2004), entre outros. Escreveu também o roteiro de  longa-metragem O circo das qualidades humanas.

Cunha de Leiradella
Casa das Leiras . São Paio de Brunhais
4830-046 - Póvoa de Lanhoso
Portugal
Telefone: 253.943.773

leiradella@sapo.pt

 
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