CUNHA DE LEIRADELLA
Os espelhos de Lacan . Romance

INDEX

Cibergrafia: a 4ª dimensão da narrativa
OS ESPELHOS DE LACAN
Considerações sobre graus dissociados
O objeto e os espelhos
O objeto e as imagens (a)
O objeto e as imagens (b)
O objeto e as imagens (c)
O objeto e as imagens (d)
Cibergrafia: a 4ª dimensão da narrativa (cont. e FIM)

Considerações sobre graus dissociados

O telescópio Hubble foi lançado no espaço e o fiat lux, travestido em raio laser, levantou de vez o sursum corda e escandiu as renitências. Agora não há mais o que temer, disseram os astrofísicos até menos compulsivos, a Era da Incerteza terminou.

Afirmaram os lançadores que, se o campo de visão a olho nu é de 600 mil anos-luz e o alcance máximo de um telescópio comum é de 2 bilhões de anos-luz, o Hubble iria esquadrinhar os quasares a 14 bilhões de anos-luz.

As declarações foram tão afirmativas, e tão peremptórias, que nenhum rei, mesmo que fosse do baralho, teria mais condição de sair por aí e andar nu. Mas uma coisa é ser rei e outra é dirigir um campo de nudismo. Por isso, assim como não há chanel que sempre cheire, nem merda que nunca deixe de feder, também nenhum adjetivo qualifica eternamente. Se as galáxias sempre se afastaram à velocidade de 526 quilômetros por segundo, por megaparsec (3,2616 x 10 6 anos-luz), como não aceitar que a formatação do Big-Bang era correta? Mas não era. O primeiro segundo após a grande explosão provou que um segundo só é segundo quando é medido por terceiros. Como não havia terceiros no rabo do cronômetro, rebocou-se o estuque da gramática com o substantivo masculino da letra Y, que já foi a sexta vogal da língua portuguesa e hoje apenas azeda leite na Bulgária e o vende com o nome de yogourt, e aplaudiu-se a suposta medição.

Mas, felizmente, a comunidade científica mandou a gramática às urtigas e matou a pau o jiboião do problema. Parafusou o ponteiro dos hodômetros e botou um freio na questão. Velocidade máxima permitida para todas as galáxias: 70 quilômetros arredondados nos milímetros e proibida qualquer ultrapassagem.

Só que, mesmo amordaçada no canil, a questão permaneceu. E a dúvida (pós-cartesiana) mais determinante dos nossos dias virou até preceito de vade-mécum: para quê simplificar se complicando também nada se resolve?

Ratificado o programa da melhor das boas vizinhanças e esquecidos os discursos nos limites do cochilo, o mercado financeiro aquietou-se e normalizou-se a produção da progestina. Mas só nos boxes da pista de Interlagos. Dias após a primeira freada, outra freada chiou e faiscou no asfalto científico. Alguns astrônomos, descontentes da sua condição de annelis sideralys, entornaram o caldo e botaram a boca no trombone: ou se valorizavam as minhocas siderais ou eles baixariam para 42 quilômetros o limite da velocidade permitida.

Apavorados com a queda das receitas, com tão baixa velocidade ninguém mais avançaria sinais de trânsito ou tramelas similares, os governos douraram os anzóis dos annelis e saíram de fininho. Com as alianças umbilicais e os casamentos partidários perigando, as minorias rejeitadas pintaram caras e coroas e comeram o couro da ONU. Que, como sempre, fez excelentes traduções simultâneas e apenas botou água na fervura. Tudo continuaria como dantes no quartel de Abrantes. Resultado, a NASA, com a força dos jedis do George Lucas cutucando nos fundilhos e sem mais enduros nos desertos do Golfo e com a Cortina de Ferro carcomida de ferrugem, depilou os sovacos do alfa-ômega e mandou ver no Infinito.

Mas eu, que nunca pensei esquadrinhar um quasar nem paguei multas por avançar sinais de trânsito ou tramelas similares, ainda hoje me pergunto, já que nunca pude perguntar a quem fez a medição: o que acontecerá se o telescópio Hubble, ao invés de esquadrinhar os quasares nos exatos 14 bilhões de anos-luz, só pegar de míseros 13 bilhões, 227 milhões, 825 mil, 430 anos-luz, 7 meses, 15 dias, 8 horas, 6 minutos, 56 segundos, 83 centésimos, 941 milésimos, 7.012 milionésimos e 1 bilionésimo?

Que me dirão os presentólogos, já que os futurólogos me afirmaram que a Era da Incerteza terminou?

 

Cunha de Leiradella nasceu na Serra do Gerês, em Portugal, quase fronteira com a Espanha.

Publicou o romance O longo tempo de Eduardo da Cunha Júnior (1981), Inúteis como os mortos (1985), Cinco dias de sagração (1993),Os espelhos de Lacan (2004), entre outros. Escreveu também o roteiro de  longa-metragem O circo das qualidades humanas.

Cunha de Leiradella
Casa das Leiras . São Paio de Brunhais
4830-046 - Póvoa de Lanhoso
Portugal
Telefone: 253.943.773

leiradella@sapo.pt

 
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