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Jerónimo Savonarola nasceu em Ferrara, na Itália, em 1452. A Itália nessa época era um mosaico de cidades, reinos e principados em permanentes alianças e conflitos. Essas regiões políticas eram governadas pelas famílias ricas que logravam impor-se, formando as suas cortes nos locais onde residiam. Entre as cortes mais famosas estão a de Roma e a de Florença, com as quais o nosso irmão andou em esforçados trabalhos. Essas grandes famílias eram inclusive donas ou patronas dos conventos. Savonarola nasce numa família de comerciantes em ascensão e num século considerado glorioso, particularmente na Itália. É o tempo do Renascimento em que a influência clássica greco-romana penetra todas as áreas da cultura. Porém, a Europa estava ainda a despertar de uma grande depressão motivada por traumas de carácter social, político e religioso, para referir apenas os elementos mais exteriores. Do outro lado da exuberância das ideias, da arte, da estética, da cultura, do comércio, subsiste um sentimento pessimista e negativo acerca do mundo, e a proposta de uma vida de ascese tendo como referência a simplicidade evangélica.
No século anterior a peste negra tinha assolado e dizimado a Europa mediterrânica, com o que isso implica de perturbação ideológica, teológica e filosófica, do desmantelamento da arquitectura social, do tecido produtivo e comercial, da estrutura comunitária no seu conjunto. De 1378 a 1417 vive-se o cisma do ocidente, passando a Igreja a ser bicéfala com papas em Roma e Avignon. E após o cisma a intriga e a corrupção na eleição papal continuaram ainda por muito tempo. Em 1442 esteve instalado em Ferrara um concílio ambulante que terminou em Roma, onde as Igrejas do Ocidente e do Oriente confrontaram as suas teologias e as suas políticas, procurando um acordo arrancado a ferros e por fim fracassado. A tomada de Constantinopla ajudou à separação. Entre outras questões continuava a debater-se a procedência do Espírito Santo, o uso do pão ázimo ou fermentado na Eucaristia, a existência e o lugar teológico do Purgatório, o primado pontifício. A tomada de Constantinopla pelos turcos deu-se em 1453, acontecimento que representa o fim do ideal milenar de um império e, mais ainda, o corte das vias comerciais para o oriente. Por essa razão começa a projectar-se intensamente a possibilidade de chegar à Índia por mar. Mas até esse dia vir ainda se iriam acender muitas fogueiras. É também neste ano que termina a Guerra dos Cem Anos entre a França e a Inglaterra, com o protagonismo de Joana d'Arc sob suspeita. Como havia dúvidas sobre a bondade do ardor que a movia, foi queimada. Este século é particularmente um século de fogo. Entre as cinzas de João Huss, em 1415, e as de Savonarola, em 1498, tudo são chamas. Chamas de paixões exacerbadas: ideológicas, políticas, religiosas, éticas, estéticas, afectivas. No início do século institucionalizam-se na Ordem Dominicana, à semelhança de outras e dentro de um espírito de reforma, as congregações Observantes. A ideia central é a do regresso às origens da vida mendicante, à simplicidade e ao modo de vida inicial. Essa reforma dentro da Ordem atravessou todo o século XIV e Savonarola fez parte dela. Na verdade, tratava-se da reforma da vida religiosa em geral na qual se incluía a vida dominicana. Considerava-se que era necessário reabilitar o espírito religioso no interior dos conventos, invadidos pelas tendências mundanas e pagãs próprias do século. Era uma reacção e isso já diz muito, mas uma reacção carregada de pessimismo, insistindo sobretudo num regresso ao passado e olhando o futuro como um horizonte ameaçador. Há um reforço da afirmação da fé, um empenho na vivência dos votos, uma vida quotidiana de ascese quase baptista. Em todo o caso a sua crítica era pertinente, e alguns reformadores dominicanos foram grandes figuras na Ordem e na Igreja: Raimundo de Cápua, João Dominici, Sto Antonino, Fra Angélico e também Savonarola. Grandes figuras no pensamento, na arte, no governo. Convém dizer que um século de reformadores ou observantes é tempo suficiente para várias gerações e várias expressões dessa corrente. Savonarola e seus seguidores, com a sua exigência de rigor, sincero e verdadeiro, eram já reformadores dos reformadores. E eram as vozes mais destacadas de um clamor por reforma que soava em toda a Igreja, sem obter resposta. Esse clamor foi levado a sério e com profundidade por muita gente, o que naturalmente veio a ter os seus efeitos em toda a Igreja e na sociedade europeia em geral. Talvez demasiado tarde. Savonarola revela desde muito cedo o referido sentimento de pessimismo face aos males do mundo. Ainda jovem afirma-se escandalizado com os ambientes frívolos das cortes, nomeadamente a de Ferrara e a de Roma. Mais tarde iria conhecer também a de Florença onde era senhor “todo-poderoso” Lourenço de Medici. Com vinte anos já escrevia alguns poemas, como o De ruina mundi , onde revelava esse sentimento, afirmando que só lhe restava fugir desse mundo. E a porta de saída seria a entrada para um convento. Foi assim que fugiu de casa, tendo avisado a família apenas depois de se encontrar seguro no convento dominicano de Bolonha. Nessa altura pontificava em Roma Sisto IV. Era franciscano e era também a figura menos indicada para o espírito do jovem Savonarola. Entre os muitos benefícios e boas obras deste papa, sobretudo no plano dos cuidados com o património da Igreja, diz-se também que “Com Sisto IV começou a desaparecer no Papa o sacerdote e a impor-se o príncipe; os sucessores de Pedro pareciam dinastas de Itália que, acidentalmente, eram também pontífices. O nepotismo, que nunca se tinha exibido tão despudoradamente, seria o principal recurso de Sisto IV” (citado na História dos Papas, de Heitor Morais da Silva, S.J.). Aliás, em questão de Papas, podemos dizer que a Savonarola lhe tocaram os piores. Do seguinte, Inocêncio VIII, um reconhecido historiador dos papas, Luís Pastor, diz ser quase certo que a sua eleição tenha sido simoníaca. Provavelmente com todas as boas intenções de evitar a eleição de um dos incompetentes e mundanos sobrinhos de Sisto IV, por cardeais mais mundanos que espirituais que enxameavam o sacro colégio. Afinal ainda podia ser pior. Em seguida vem Alexandre VI, com quem Savonarola se enredou. Não é, pois, de estranhar que num dos seus sermões que agitaram Florença tenha proclamado: “Vede estes prelados dos nossos dias: só têm pensamentos para o mundo e para as coisas terrenas; a preocupação pelas almas já não lhes toca o coração. Nos primeiros tempos da Igreja, os cálices eram de madeira e os prelados de oiro; hoje, a Igreja tem cálices de oiro e os prelados são de madeira…” (Pregação “Ecce quam bonum” , Quaresma de 1493). Savonarola queria fugir do mundo do século, mas a verdade é que não conseguiu. Bem pelo contrário. Refugiado na vida conventual, foi um grande estudioso de Aristóteles e S. Tomás, culto e promotor de cultura, particularmente no convento de S. Marcos. Foi professor, prior, mestre de noviços, provincial, mas nunca conseguiu calar a indignação. Essa indignação perante os males do mundo de que em jovem quis fugir, levou-o a pregar sem descanso, a escrever sem repouso, a enfrentar o senhor papa Alexandre VI e o senhor Lourenço de Medici, a aclamar o rei francês Carlos VIII como salvador da Itália, a sonhar com tempos de paz e justiça na perspectiva dos profetas. A reforma que pretendia deveria exercer-se em três círculos: na Ordem, por meio da Observância; na Igreja, através da limpeza da corte romana; na sociedade, começando por fundar uma república democrática em Florença. Tudo isto, tem que se dizer, movido por uma intensa compaixão pela situação de penúria material e espiritual em que se encontrava o povo cristão e pobre. Em 1494, no primeiro capítulo geral da Congregação de S. Marcos, criada um pouco antes pelo Mestre da Ordem, Savonarola foi eleito seu Vigário Geral. É nessa condição que ele põe em prática as suas ideias de reforma. Nos seus conventos determinou que viveriam em pobreza absoluta, e como a mendicidade não era suficiente para prover às necessidades dos frades, promoveu o desenvolvimento de trabalhos manuais. O convento de S. Marcos já tinha tradição de ser escola de artes, durante a primeira metade do século, sobretudo com o impulso dado por Fra Angélico. Foi assim que se instituíram em S. Marcos escolas de pintura, escultura, caligrafia e outras. Neste contexto e numa carta que se crê de 1495, afirma acerca do voto de pobreza: “O voto de pobreza é o primeiro... não deve ser só exterior mas deve amar-se a pobreza... e ter só o necessário à vida. Este voto nos tempos modernos é mal observado... alguns deixam grandes coisas no mundo, e no convento envolvem o coração em pequenas coisas, o amor a um quarto, a uma túnica nova, a um breviário bonito... vivem no convento como árvores estéreis e infrutíferas no jardim... Não vos enganeis dizendo: os meus pais são ricos e para eles é coisa pouca darem-me coisas boas; no convento tem que se ter em conta não o que é proporcional à situação dos pais, mas o que é conveniente ao estado de servidores de Cristo... Não vos deixeis enganar pelos que dizem que a pobreza não está em não ter coisas exteriores, mas no apego interior; embora isto seja verdade, é muito difícil e quase impossível ter coisas exteriores e não as amar” (Cartas p. 102 e ss). As suas ideias reformadoras de carácter político e religioso, dirigiam-se à Igreja e à Itália. Nessa altura, na religião, o maior dos males era Roma com o seu papa do momento, Alexandre VI. Na política era Florença com o seu senhor todo poderoso, Lourenço o Magnífico. Pouco a pouco, em círculos concêntricos cada vez mais apertados é a estas figuras que ele dirige as suas pregações bíblicas, as suas análises teológicas, as suas propostas de reforma, as suas profecias cada vez mais concretas e particularizadas. Foi na Quaresma de 1493, ao pregar sobre o salmo Ecce quam bonum, que apresentou a sua doutrina numa série de vinte e cinco sermões, denunciando os maus prelados, os abusos introduzidos na Igreja e os príncipes tiranos. Na Quaresma seguinte, comentando o Génesis, anunciou o castigo que ameaçava a Itália. Tal como nos tempos bíblicos dos profetas em relação aos invasores de então, a invasão da Itália por parte do rei Carlos VIII foi vista por ele como a materialização desse castigo. Sobretudo porque esse acontecimento representou a derrota e expulsão dos Médici de Florença, no momento governada por Pedro, filho de Lourenço. Na categoria das figuras proféticas, Savonarola apresenta-se claramente apocalíptico. O anúncio das desgraças tem a função de provocar mudanças de atitude e de rumo. Tem portanto uma função pedagógica. É também desse ponto de vista que considera Carlos VIII como um libertador. E é nessa perspectiva que aceita ser embaixador da república florentina à corte do rei, contribuindo para as negociações que deram um carácter democrático ao novo governo de Florença. Mas é também desse modo, na sua dimensão profética e de reformador, que ele aparece como um homem evangélico. No meio das confrontações mais duras ou das declarações mais implacáveis, podemos ver emergir o frade pobre, simples e amável, preocupado com a fidelidade ao Evangelho, um homem de misericórdia. No meio das intrigas e dos golpes políticos, ele pede pelo povo impedindo a pilhagem da cidade e o massacre da população de Florença pelas tropas de Carlos VIII (Cartas p. 60 e ss). Diz ao rei que “Deus é mais inclinado à misericórdia que à justiça... faz mais depressa o bem que o mal...” (Cartas pág. 100). E contribui para a fundação de um Monte Pio. No mesmo convento de S. Marcos, alguns anos antes, Antonino tinha dado início a uma caixa de fundos para socorrer os pobres. Podemos dizer que aquilo que põe Savonarola em ebulição é a causa da verdade. E, contrariamente ao que pensava em jovem, a defesa da verdade leva-o a meter-se no mundo mais mundano, no terreno pantanoso dos interesses e do poder. Crítico, demolidor, mesmo rude para os modos aveludados dos florentinos, os seus sermões inflamavam as multidões. Uns seguiam-no sem reservas, outros arrepiavam caminho em posições consideradas excessivas. Os políticos, clérigos ou leigos, eram obrigados a mudar de táctica conforme as suas homilias lhes eram úteis ou prejudiciais. Num primeiro momento até os Médici o ouviram e acolheram. Talvez ele não tenha dado suficiente atenção ao que dissera o seu brilhante amigo Pico de Mirandola: em política o que parece é. Os que detinham o poder não se esqueceram de ter isso em conta. Lourenço, o Magnífico, morreu cedo. Mas durante a sua vida cuidou de colocar a sua família em posição de continuar a ocupar lugares de ribalta. O seu filho Pedro não estava à sua altura nem no plano político nem no plano diplomático, mas o seu filho João, diácono, viria a ser papa aos 38 anos com o nome de Leão X. Um sobrinho seria cardeal com apenas 13 anos. E casou uma filha com um filho de Alexandre VI. Quanto a este, uma das suas grandes ocupações e preocupações era exactamente com os filhos, os quais, entre estouvados, corruptos e tiranos só pioravam a imagem e a vida do pai. Nas suas posições sociais, políticas e económicas, Lourenço podia ser magnânimo e Alexandre VI complacente. E, sendo assim, certamente que o eram com toda a sinceridade, mas essa atitude não respondia às questões de Savonarola. As cortes eram corruptas, e não apenas na vida privada mas também e sobretudo por serem lugares de esbanjamento dos bens que faziam falta aos pobres. Lugares de arte e de cultura, mas de uma frivolidade até ao requinte para prazer de muito poucos à custa da grande maioria da população, permanentemente sob a ameaça da “peste, fome e guerra”. Relativamente à Igreja, Savonarola não anunciou apenas castigos por causa dos desvios presentes, afirmou também que após o castigo viria a renovação. A denúncia ou o anúncio de castigos eram, mais uma vez, uma pedagogia profética em ordem à mudança de atitude e de caminho. Mas, num século colorido, em que os matizes se sobrepunham ao corpo da obra, Savonarola via tudo a branco e negro. Num tempo em que se fazia “do bem e da beleza o único valor que tornava aceitável tudo o que se apresentasse sob forma estética ” (História dos Papas, p. 241), Savonarola, culto e animador do desenvolvimento cultural, fustiga sem cessar os tíbios. A sua arte e a sua cultura, tal como a de Fra Angélico e de todos os observantes, tinham sempre a função de apresentar a mensagem evangélica. Para ele os tíbios eram os que sobrepunham a estética à ética, o estilo à mensagem, o acessório ao essencial. É nesse contexto que censura duramente atitudes mornas perante o crime e o vício envoltos em cultura. E é por isso que, em 1495, escreve a um amigo sobre a acusação que lhe fazem de herético: “Alguns dizem que sou herético; falam com pouca prudência e consideração, tendo eu publicamente muitas vezes dito e escrito que me submeto à correcção da Santa Igreja Romana... Deves considerar que aqueles que me chamam herético ou são perversos ou são ignorantes... se lhes perguntasses nem te saberiam dizer o que é heresia... e digo-te que se pensas que todos aqueles que vestem um hábito religioso são religiosos, estás bastante enganado ” (Escritos Apologéticos p. 240). Porém os caminhos estavam traçados e os comportamentos adequados ao lugar social em que os chefes da Igreja se encontravam. O choque final de Savonarola com Alexandre VI foi por este ter integrado uma Liga que se opôs à permanência dos franceses de Carlos VIII em Itália e se ter declarado favorável ao regresso dos Médicis. Quando mais tarde foi chamado a Roma pode dizer-se que já não havia condições. Ele ainda hesitou, declarou fidelidade ao papa e à Igreja, mas acabou por não ir. Não poderemos saber qual seria o resultado da conversa do hábil Alexandre VI com Savonarola. Mas sabemos que o fogoso e austero pregador acabou por acusar o papa de ter chegado ao cargo por eleição simoníaca. Segundo os historiadores não há provas para tal facto, mas o ambiente político na corte romana não era diferente do das outras cortes e essa possibilidade já não causava grande espanto. Favores em troca de votos não era acontecimento invulgar e nem seria invocado se não se tratasse da eleição do sucessor de Pedro na condução dos destinos da Igreja. Mas também neste caso se pode ter dado a circunstância de se querer evitar um mal maior. O bem que daí possa ter resultado é que Alexandre VI, paralelamente à sua vida pessoal pouco edificante, tinha grandes qualidades de estadista, adequadas às circunstâncias. E mesmo que a sua eleição tivesse sido ilícita, há indícios de que isso não a tornaria inválida. Após o cisma do Ocidente, uma regra definia que, ainda que se descobrisse que um papa tivesse sido eleito de modo irregular, a sua eleição deveria continuar a ser considerada válida para evitar maiores males. Savonarola é apelidado de reformador, profeta, fanático, visionário. Talvez tenha sido tudo isso. Mas nunca foi provado que tenha sido herético ou desobediente à disciplina da Igreja. A base da sua desobediência a Alexandre VI assenta no facto de, em consciência, não o considerar um papa legítimo. A sua morte em 1498 parece dever-se à teia produzida pelas suas próprias ideias, aos excessos que essas ideias desencadearam em muitos dos seus seguidores e ao aproveitamento que delas fizeram os seus adversários. Jerónimo Savonarola teve um fim trágico. Depois de muitas ameaças e intrigas, de muitos confrontos verbais e mesmo armados, chegou o dia da inquisição. Uma multidão amotinada invadiu o convento de S. Marcos e arrastou-o para fora juntamente com mais dois frades, seus inflamados seguidores, que com ele morreram. Após dias eternos de tortura e terror, diz-se que ele próprio confessou aquilo que o levaria ao cadafalso. Mas é preciso dizer que também confessou a sua fé inabalável na misericórdia de Deus e na Igreja. É ainda na prisão que, à semelhança do que acontecera noutros momentos, faz uma reflexão de profunda sensibilidade humana e religiosa. Enforcado, é depois queimado entre sentimentos contraditórios que prevalecem até hoje. Frei Matias, op |
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