Discutir para quê?
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Discutir acerca dos múltiplos corpos do homem: “corpus princeps”, “corpo-objecto”, “corpo-sujeito”, “corpo cinemático”, “corpo biológico”, “corpo-carne”, “corpo transcendental”, “carne” (Leib), “carne eléctrica”, “corpo pneumático”, “corpo glorioso” ou “corpo a vir”? Discutir acerca da sexualidade, em termos não de luta contra a morte, mas como “a preparação da anastase”, a “experiência antecipada duma mutação última e definitiva da vida”, o esboço e o anúncio de um estatuto dos corpos ressuscitados” (Jean Guiton)? Discutir acerca daquilo que G. Marcel considerava não apenas um enigma mas um mistério: o meu corpo ou o corpo do outro? Mas discutir para quê?
Deleuze era avesso à discussão. “cada vez que me fazem uma objecção tenho vontade de dizer: de acordo, passemos a outra coisa”. As objecções nunca trouxeram nada de novo (Dialogues, p. 7). Se compreendemos o problema que alguém pôs, não temos vontade de discutir com ele: ou pomos o mesmo problema ou pomos outro e tem-se sobretudo vontade de avançar para outra coisa. Como discutir se não há um fundo comum de problemas, e porque discutir se esse fundo existe? Nunca discutimos problemas mas soluções. As discussões representam muito tempo perdido para problemas indeterminados. Há uma razão óbvia: uma força activa não tem que refutar uma tese para se afirmar, a vontade de discutir é já uma maneira de encarar todas as diferenças e todos os problemas como oposições ou contradições. Deleuze afastou-se da forma lógica da nevrose, que é a dialéctica, sempre embrulhada em circunvoluções e piruetas para não chegar a ponto nenhum. A dinâmica de Hegel, por metabolismo dialéctico, é, afinal “uma arquitectura de pensamentos inedaquados” (Llansol). É preciso descrever um jogo múltiplo de forças positivas e não as suas concentrações de negatividade que encontramos na filosofia tradicional do ressentimento. Só é interessante o que é afirmativo. Os motivos da unidade, do consenso, do valor comum são apenas más fadigas do pensamento (A. Badiou). O que conta é a eternidade, essa intemporalidade temporal que tem o nome de acontecimento. Sobretudo não julgar. Em vez disso, a experiência impessoal, o devir. Em vez do formário e da estética concluinte, o gosto do desdobrável e a tentação de criar singularidades irreprodutíveis (1).
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Começar por onde?
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Podíamos começar pela leitura do Fedro, 253 b. Ou pelo livro de Otto Weininger, de 1903, Sexo e carácter tecido à volta do fantasma do Andrógino, com o pormenor de que a bi-sexualidade tão bem descrita por Platão, pelos kabalistas, Böhme e os textos alquímicos leva aqui a uma cisão incurável e perniciosa do Sujeito. Ou ainda pelo que se avizinha: a clonagem reprodutiva e terapêutica, os “enfants d’homo” (Roudinesco), os “suplementos de mãe” (Derrida), etc.. De facto, entrou em colapso o modelo (eterno) de família: a família hoje é algo de “desordenado”, decomposto, recomposto, unissexuado, clonado. O que permanece é uma ligação social organizada em torno da procriação. Para Derrida a família é transhistórica e o seu futuro incerto (2). Contesta por isso, apoiado naquilo a que chama “os poderes tecno-científicos”, a teoria edipiana de Freud e de Lacan que se apoia numa espécie de trípode: 1. A identidade estável do pai e da mãe. 2. Uma mãe tida como insubstituível. 3. A evidência da maternidade oposta à incerteza da paternidade. Ora o que avizinha é uma irredutível pluralidade da maternidade, “suplementos de mãe”: menos do que nunca hoje se acredita que a mãe é aquela que se julga ver dar à luz”. Por outras palavras ainda: “A identidade da mãe (como a sua possível identificação jurídica) releva dum juízo tão derivado, duma inferência tão desligada de qualquer percepção imediata como essa “ficção legal” duma paternidade conjecturada através dum raciocínio” (Ibidem, p. 75). O caso é que poderá haver famílias em que haverá não apenas duas ou três mães, sem contar com os pais, mas também famílias compostas artificialmente por três+ n pais.
Também podíamos começar pela livre circulação dos corpos e das coisas num mundo em que as coisas não tinham ainda sido capturadas por uma significação, uma razão, a verdade dum único sentido. O tempo em que os significantes eram disponíveis e flutuavam entre as coisas antes que a filosofia e a ciência tivessem disciplinado tudo. O corpo era uma terra virgem disponível para todos os sentidos (Mauss, 152, 385-409). Para a medicina o corpo de referência é o cadáver, para a religião erra atravessada pelos instintos e pelos apetites da carne, a referência ideal do corpo é o animal. Donde só a mortificação e a morte podem resgatar este corpo: “semeado corpo animal, ressuscita corpo espiritual” (1 Cor 15, 44). Para a economia política o corpo ideal é o robot, modelo perfeito da libertação funcional do corpo co o força de trabalho na ordem duma produtividade racional absoluta e asexuada. Para a semiologia, a referência ideal do corpo é o manequim, lugar de produção de valores-signos, modelo de significação e do preenchimento do imaginário dos desejos.
Podíamos partir enfim do livro de Marcela Iacub (3), que é uma pedra no charco da "moralina", esse xarope adocicado cujos ingredientes não são a humana bondade, nem o amor do próximo, mas o ressentimento e o ódio (Nietzsche). Estão lá todos: juizes, sociólogos, psiquiatras, ministros de Estado e dos cultos, políticos à direita e à esquerda, editorialistas, porta-vozes da sociedade civil, censores. Nos anos 70 e 80 libertou-se o sexo, e não se instituiu a liberdade sexual. Instituir a liberdade sexual significa dar ao “sim” e ao “não” a mesma força, como para a liberdade de expressão ou de circulação: liberdade de não ter relações sexuais, mas também de os ter. Hoje o “não” ocupa um lugar maior que o “sim”, como se fosse preciso proteger o sexo da liberdade. Pensou-se que o combate estava ganho desde a década 60-80, a propósito da liberdade de expressão, o reconhecimento das minorias sexuais, dos direitos das mulheres, da (relativa) livre circulação da pornografia, da prostituição. Engano. Os censores regressam. A pílula, a liberalização do aborto, do adultério, do estatuto das concubinas, das minorias sexuais, o Pacs, tudo isso não passa de um ecrã que esconde uma realidade bem mais crua: um quarto da população carceral em França é-o por crime sexual. A questão parece residir na definição do delito: se não há entre a prostituta e o cliente qualquer constrangimento mas consentimento mútuo, onde está o delito? Porque é o sexo investido de carácter sagrado, contrariamente a outros órgãos? Porque está associada a representação do acto sexual na pornografia à violência? Porque é que o aparelho judiciário, quando confrontado a casos de violação, de pedofilia pou incesto, em vez de ajudar as vítimas a sair de uma dolorosa culpabilidade as leva a declarar-se e a viver como “mortos psíquicos”?
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A cena contemporânea do corpo
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Nunca se falou tanto de sexo. Até de sexo virtual se fala (4). Várias frentes de desincorporação nos espreitam. Michel Heim, num texto intitulado “Ontologia erótica do ciberespaço” escreve: “a nossa existência como indivíduos separados e a nossa identidade pessoal baseiam-se no facto de sermos corpos. (…) Ora as redes de computadores põem simplesmente entre parêntesis a presença física dos participantes, omitindo ou simulando a imediatidade do corpo. Isto liberta-nos dos vínculos impostos pela nossa identidade física. Nas redes somos mais iguais dado que podemos ignorar ou criar o corpo que aparece no ciberespaço” (5). O corpo está a libertar-se dos constrangimentos mecânicos o desemprego é uma das suas formas. As formas modernas substituem o homem pela máquina. O desencantamento do mundo, o recuo das grandes religiões, o enfraquecimento dos agenciamentos simbólicos, o desenvolvimento duma vulgata cientista, são factores que tendem a esvaziar os códigos corporais de qualquer substância simbólica e metafísica e a reduzi-los à estandardização e à uniformização. À ritualização e estetização do corpo tradicional opõe-se então o vazio simbólico (Baudrillard, 1976) de um jogo semiótico que convive com um padrão estabelecido e uma combinatória. A mercantilização do corpo, das práticas e dos signos corporais numa economia generalizada aparece-nos como a exacerbação do corpo barroco. A cena comtemporânea do corpo espectáculo, do corpo barroco, do corpo estilhaçado, domina a esfera da representação.
As prisões estão cheias de criminosos sexuais. “ (…) e é precisamente isso o que os ocidentais já não conseguem fazer. Perderam completamente o sentido de dádiva. Mesmo esforçando-se, não conseguem assumir o sexo como uma coisa natural. “ (Michel Houellebecq, Plataforma). O trash, o mundo dos travestis, as mudanças de sexo, as bombas sexuais estão na moda. O que é o cinema "trash"? Um mundo de delírios bizarros, entre o escabroso e o grotesco, onde o mau gosto não conhece limites. "Série Z". Bret Easton Ellis, geração sex: os vampiros. Roger Avary. Que revista não propõe mais uma receita para a “sua” performance sexual? Que publicidade o não promove? A imagem do sexo é tão ubíqua quanto é vaga a sua definição. Ficam as imagens e as questões. Ora as questões são muitas: teremos deixado para trás a réstia de humanidade que possuíamos: os nossos instintos animais, de procriação, v.g., o sexo, o contacto duradoiro? É verdade que nos tornámos já pós-humanos? (6). Estaremos a tornar-nos cyborgs sexuais? Até que ponto a noção de “mindbody” desenvolvida por Mark Hansen é pertinente para desimplicar a distinção “the body” e “embodiment” dependente ainda do dualismo Cartesiano (7)? Não anunciam os homens da cibernética que a distinção entre as máquinas e os seres orgânicos é cada vez menor? Não se pode pensar no começo de outra espécie, não necessarimente humana? Não acredita Psalmodia, uma das figuras de O ensaio de Música, de llansol, que está a brincar com ciborgues? A série The Star Treck TV traz-nos simultaneamente, com Data, o andróide hiper-inteligente a tentar tornar-se ele próprio humano em contraste com Borg, meio-máquina, meio-orgânico e ameaçando refazer a humanidade à sua própria imagem. Frankenstein era ficção, aquilo com que nos defrontamos é a realidade (8).
Avancemos com outras questões, aparentemente mais prosaicas: não estará a prostituição, o turismo sexual, o sexo gratuito, os grupos sadomasoquistas, os simuladores, a substituir uma geração com a sua grelha de valores por outra? De facto, falava-se de “bons costumes” na moral tradicional, que estigmatizava a prostituição mas que tolerava o adultério masculino ou a bastardia. A violação era sentida como atentado a uma instituição, não a pessoas. Dizia-se que a violação era um “coito ilícito com uma mulher que se sabia não consentir”. No fundo, o que se protegia não era a liberdade sexual das mulheres mas a ordem social que resultava do casamento, mais exactamente o único acto sexual legítimo e mesmo obrigatório que era o coito entre um homem e uma mulher casados. Um marido não violava a sua esposa, mesmo usando a violência com ela... O “dever conjugal” obrigava-os a relações sexuais. Era um “coito lícito”. A violação era o inverso deste acto social santificado e valorizado. As relações sexuais fora do casamento eram toleradas, mas consideradas imorais. E era por isso que deviam ser “consentidas”. Se não fossem consentidos havia crime. Daí resultavam os bastardos. Mas até a categoria de “bastardo” desapareceu. O feminismo irrompeu. Uma nova ordem mundial se instalou na economia e na política, grosso modo, após a queda do muro de Berlim. Uma nova ordem sexual “liberdade sexual” se está instalando contra a dominação masculina. O livro de Iacub já citado põe a nu o discurso de determinadas lésbicas feministas, por exemplo, que estabelecem uma escala no mal: os homens heterosexuais são os piores, antes dos homens homosexuais, depois as mulheres heterosexuais. Há mesmo algumas que dizem que a invenção dos sapatos de salto alto era uma complot orquestrado pelos homens para poderem violar as mulheres sem que elas possam escapar…Há de facto dois feminismo: um diferencialista, o outro não. O primeiro quer conservar a qualquer preço a diferença dos sexos, é muito maternalista e desconfia dos homens. Por isso se divide tanto em relação às reivindicações dos homossexuais. A maior parte das feministas era contra o Pacs. No fundo, aos homossexuais só interessa um feminismo antidiferencialista. Ora, se era necessário acabar com a diferença dos sexos deixou de ser necessário fundar direitos diferentes conforme se é um homem ou uma mulher. A noção de “sexo” veio proteger a sociedade, mesmo se ninguém sabe o que tal quer dizer. No direito penal inscreve-se a violação como “todo o acto de penetração sexual, qualquer que seja a sua natureza cometido sobre a pessoa de outro por violência, ameaça ou surpresa”. A indefinição nesta matéria espera ainda o seu legislador rigoroso e probo.
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O império dos signos
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Mallarmé diz bem a oscilação entre o conceito e o corpo: “alors par un commerce don’t paraît son sourire verser le secret, sans tarder elle te livre, à travers le voile dernier qui toujours reste, la nudité de tes concepts et silencieusement écrira ta vision à la façon d’un Signe, qu’elle est”. “Le sexe est un charnier de Signes. Le signe est un Sexe décharné” (9). Do mesmo modo que o Ouro é o equivalente geral das mercadorias, assim o Phallus é o equivalente geral das pulsões que, se não fossem submetidas ao “primado da zona genital” (Freud, 66, 113), ficariam como na infância, privadas de centro e num estado “anárquico” e “polimórfico”. O estatuto monárquico conferido ao falo implica a sua exclusão da ordem das trocas (sexuais). Esta exclusão do falo tem como vertente fantasmática a castração. Deixamos o regime da troca simbólica, da ambivalência do sexo e entramos no regime da especularidade, da bivalência dos papéis sexuais que subsiste apesar das tentativas de hoje para apagar as clivagens entre o masculino e o feminino. Enquanto estivermos sujeitos à “monarquia” do falo, nenhuma “revolução sexual” poderá recuperar a ambivalência do sexo. Nem escapamos à monarquia do falo reduzindo a ambivalência à ambiguidade do unissexo, em que o sexo é a cumulado como “soma” de dois pólos: o masculino e o feminino que se sobrepõem como duas unidades no quadro não liquidado do modelo bissexual. Nem podemos pensar que os corpos se libertem dos tentáculos do poder pela irrupção do desejo (à Deleuze ou Lyotard). O código da economia libidinal reproduz o código da economia política. O pénis não pode funcionar como pénis ou como equivalente geral das pulsões se não é subtraído ao uso imediato que é o onanismo e à troca imediata que é o incesto. É daí que promanam os valores que, de outra forma, se perderiam na prática do uso imediato e da troca directa. A castração gera o desejo, porque só os objectos de uma necessidade que podemos diferir podem tornar-se objectos de desejo. Mas diferir significa capitalizar.
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Onde está o sexo?
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Acontece ao sexo o mesmo que ao corpo: nunca o encontramos. Mesmo se há quem confunda o sexo e o corpo, apesar de saberem que o sexo é reprodutivo e não o corpo. O corpo é mítico, dizia Michel de Certeau, no sentido em que o mito é um discurso não experimental que autoriza e regula práticas. Há um corpo grego, há um corpo índio, um corpo ocidental moderno, etc.. Cada corpo pode ser definido como um teatro de operações: segmentado em conformidade com os quadros de referência duma sociedade, fornecendo uma cena às acções que esta sociedade privilegia modos de estar, de falar, de se lavar, de fazer amor, etc.. Outras acções são toleradas, mas tidas como marginais. Outras são proibidas ou desconhecidas (10). Cada sociedade tem o “seu” corpo e este está submetido a uma gestão social e a um policiamento. E como cada língua, comporta os seus idiolectos, as suas improvisações e desvios. “Este corpo tão estritamente controlado é paradoxalmente a zona opaca e a referência invisível da sociedade que o especifica. Encarniça-se a codificá-lo sem poder conhecê-lo. Esta luta nocturna duma sociedade com o seu corpo é feita de amor e de ódio, - de amor por esse outro que a sustenta, e de ódio repressivo para impor a ordem duma identidade”. Enquanto o espaço do constrangimento físico é regido pela ordem da causalidade e das interacções físicas, o espaço da semioticidade é-o pelo do sentido e dos valores. Este espaço não é apenas da ordem do dito e do não-dito, como inclui a ordem do prescrito e do interdito. A existência de regras de conveniência na apresentação e na gestão do corpo constitui uma outra constante antropossocial. Os signos e os valores mudam evidentemente segundo o contexto cultural; o uso semiológico do corpo é, conforme os casos, exibido ou reprimido. Mas a normatividade é necessário, onvém, é decente… - fundamentalmente, permanece.
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O corpo semiótico
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O corpo é, para a tradição maior da semiótica para a semeiologia - um signo. A presença de uma doença num indivíduo observa-se do exterior, como sintomas de uma determinada afecção. Ter o “sarampo” é muito simplesmente manifestar na pele os signos conhecidos do mal a que se dá este nome. A semiologia não faz melhor: o braço levantado do sinaleiro funciona como “significante’ somático convencional que “significa” proibição de avançar. Os modos de “ser” do corpo, nesta perspectiva, tanto se podem apreender como sinal, como signo, como símbolo ou como índice. Se retomamos a classificação de Benveniste, assente na natureza arbitrária (sinais, signos) ou analógica (símbolos. Índices) da relação entre o significante e o significado, é claro que o corpo é simultaneamente instrumento e espaço de comunicação quando remete para sinais numa situação de coordenação da acção, espaço de significação quando se contenta com dar a ler a outro, por intermédio da roupa, do adorno, da escrificação, os sinais e os símbolos de uma linhagem, de uma classe, duma condição, dum comprometimento. Considerado em si mesmo, como um objecto que não está por um outro, o corpo não é um signo não há diferenciação entre ele e o seu veículo. O termo “semiótica do corpo” foi provavelmente usado pela primeira vez por Roy Ellen (1977) para descrever um estudo relacionado com os diferentes modos como o contínuo corporal é segmentado e organizado em partes pelas diversas linguagens do mundo. Neste sentido, a semiótica do corpo estaria interessada no facto que determinadas linguagens utilizam apenas um termo para designar aquilo que as línguas indoeuropeias chamam a perna e a parte proeminente da perna a que chamamos o pé; e uma outra língua prefere distinguir, por um lado, a perna e por outro lado aquilo que para nós é à a perna, incluindo o pé acima do joelho. Porém a semiótica de Ellen preocupa-se unicamente com as significações linguísticas. Os trabalhos de Fontanille e Landowsky visam uma outra realidade. Mas o corpo não é só um signo, porque não é como qualquer outro signo transparente, não remete para outra coisa que ele próprio. “Fazer dele um signo, é, por definição, exigir dele que se apague por trás daquilo que supostamente ‘significa’”, escreve E. Landowski (11). Em resumo, só podemos encarar o corpo como a fazer sentido quando o pensamos como interacção, e não comom modo instrumental.
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O desprezo do sensível
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O desprezo do sensível atravessa o pensamento platónico-augustiniano nasce do sentimento que o sensível se destrói, se dispersa, enquanto o Um, o Valor que é semelhante ao vampiro que, dizia Marx, se anima sugando o trabalho vivo” (Marx, 150, I, 179). Quem conseguiu domar o corpo? Como viver fora da afirmação ou da negação, os trilhos que desde Platão conduzem a razão? Como viver na conjunção da chuva que regava os campos e da chuva que inundava as leiras? Não são todas as coisas ambivalentes? Porque decidir então brutalmente do bem e do mal? Os primitivos defendiam-se desta “part maudite” (Bataille) através da destruição no potlach, ou na troca simbólica do dom e do contra-dom, a despesa supérflua, o sacrifício das coisas e da vida, afim que nada se constitua como valor e tudo se mantenha na ambivalência que faz que os signos se troquem entre si. Para conjurar a lei transcendente do valor e a apropriação privada do sujeito e para restituir aos homens e às coisas esse excedente de sentido de que a utilização servil dos homens e das coisas os despojara, imposta pela racionalidade do trabalho. Passará este desprezo do sensível também pela psicanálise?
Como se sabe, o cristianismo tem um papel decisivo na experiência ocidental do corpo. Instalou-se na ausência de um corpo, o túmulo vazio. Separou-se da sua origem étnica e da realidade biológica, familiar e hereditária do corpo judaico. O Logos instaura-se a partir desta perda, produzindo agora corpos eclesiais doutrinais ou sacramentais que servem para substituir este “corpo que falta” (12). Mas há o corpo barroco, os primeiros corpos “científicos”, as montagens da medicina que no século XVII que reúne elementos do corpo segundo a física dos choques: o modelo mecânico substitui a simbólica antiga. A clonagem fará o resto. É também evidente que o poder do Estado se estende à medida da dispersão dos corpos. O Estado é o novo corpo de que o rei é a cabeça. Leviatã à vista. Restam as “experiências” de possessos e de místicos exibições do corpo no tecido do código que marcam a insuficiência da disciplina social que entretanto se reforça.
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Não há relação sexual?
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Há uma questão radical: a do “il y a du rapport sexuel”, questão que responde a uma outra, que funda a psicanálise, formulada por Lacan: “il n’y a pas de rapport sexuel”. Jean-Luc Nancy assume a provocação do paradoxo contido neste enunciado, apondo à lógica da falta uma ética da “queimadura do sentido”: “Le baiser, de nuit, / imprime la brulûre du sens dans une langue” (13). Não se trata de “libertação sexual” mas de sexuação da liberdade, da igualdade e do estar-com: como o amor, o desejo e a finitude, a relação em geral, estão mutuamente ligados. Afinal não há aquilo que se passa todos os dias? Não há aquilo que há? Hegel e Heidegger disseram também que o ser não existe! Eles dizem que o “ser” ou o conceito denotado “ser” não pode consistir em qualquer coisa de existente (nem calhau, nem Deus, nem flor, nem pénis). Eles dizem que “ser” é isto: há coisas em geral. Há, diz Nancy, uma palavra que funciona como verbo e substantivo: a palavra “ornicar”, verbo com valor de calão. “Fornicar” é o dom do “fornicar”: eu sou fornicado cada vez que fornico. O sentido pejorativo de “baiser” releva duma semântica da palavra que o coloca na categoria do ter: foi-se possuído (e, de forma mais crua, enrabado). Apropriação dominadora de um pelo outro. E uma representação que procede dum esquema que distribui os valores e os papéis da actividade e da passividade. Esquema frágil: na “passividade” enlaça-se a “potência passiva” (potentia passiva, dunamis tou pathein): capacidade de acolher, de receber, de tomar forma que tem um papel muito activo na teoria aristotélica da “potência” em geral. É aquilo a que chama “paixão”.
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A relação
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A relação é algo. A palavra “relação” permite entender uma acção, não uma substância. Não designa um suporte (um suppositum) senão de maneira derivada, quando toma o sentido de “recensão” (“relatório de polícia”), ou de “resultado harmónico”). Mas “relação” não designa nenhuma coisa. Dizemos “Dormiram juntos” e não “tiveram uma relação”, a não ser que se trate dum médico ou dum polícia. A expressão é médico-jurídica. Só no registo jurídico e económico aparece a expressão “relações íntimas” e depois “relação sexual”. Dizer: não há relação sexual é dizer: não há recensão, honorário, conformidade ou proporção determinada naquilo de que se trata quando um casal se acopla. Aqui não há cálculo, capitalismo. Esta relação não se pode contar (é esse o problema da literatura erótica). A relação é a distinção. Deve abrir o entre como tal, entre-dois, que não é nenhum dos dois é o vazio, ou o espaço ou o tempo ou o sentido. A escolástica atribuía à relação um ser ínfimo, um minus ens. Em Tomás de Aquino a relação não pode dizer-se “substancial” senão no caso da substância divina que é por si mesma relatio: as relações que entre si mantêm as pessoas da Trindade. A relação das coisas supõe a separação dos sujeitos.
Parece que uma nova ideia de “relação” emerge: a relação designa exactamente aquilo que não é a coisa: o que não é coisa alguma (substância, entelechia), mas aquilo que se passa entre as coisas, duma coisa a outra. É uma das quatro classes em que Kant distribui os juízos (categórico, hipotético, disjuntivo) e as categorias (de inerência e de subsistência, de causalidade e de dependência, de comunidade ou de acção recíproca entre o agente e o paciente). A relação de acção recíproca é a relação considerada absolutamente. A relação tem lugar entre os entes, não é um ente. É da ordem daquilo a que os estóicos chamavam o incorporal. Como definem eles o incorporal? Através de quatro instâncias: o espaço, o tempo, o vazio e o lekton (o dito, o enunciado). Estas são as quatro instâncias da relação que exige distinção dos lugares, diferença dos tempos, intervalo vazio entre os corpos e possibilidade de emissão e da recepção dum dizer dum inter-dizer ou de um se inter-dizer.
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Texto e textura do sexo
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Textura tem dois sentidos: a ressonância de superfície ou qualidade de um objecto ou material; Texxture assinala o modo interno da textura: A alimentação e o sexo podem ser os domínios hedonísticos comuns desta qualidade. Em “relações concretas com os outros”, segunda parte, “Segunda atitude relativamente aos outros: Indiferença, Desejo, Ódio, Sadismo”, de “O Ser e o Nada”, Sartre descreve este desejo textural como o da carícia, a tentativa para se “apropriar” da “carne do Outro”. “Sotness as a TEXTURE might be opposed to a kind of smoothness, whereas in TEXXTURE it is opposed to hardness”.
O sexo, a sexualidade textualiza-se, como quase tudo. Ou confessa-se. O texto histórico compõe de maneira mais ou menos alusiva, uma cartografia de esquemas corporais. O que ele nos permite ler não é bem o corpo duma sociedade mas sistema de convenções que esta sociedade define. As biografias de santas e de místicos no século XVII são escritas por clérigos que tentam decifrar o sentido das vozes que falam nestes textos. Exegeses clericais masculinas de corpos femininos, que transformam estes corpo que falam em modelos doutrinais, como Certeau tão lucidamente observou.
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A polícia do sexo
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O corpo vive num mundo que o poder codifica. Portam-se como animais. Acasalam-se. Amancebaram-se. O permitido e o proibido: comportamentos sexuais limpos vs manchados: “coito lícito” vs “coito ilícito”, felação, sodomia, prostituição, pedofilia, sexualidade inútil. incesto. Tudo isso se diz ou escreve. Porque até podemos falar das “coisas” do sexto mandamento sem nunca as nomear (A. Maria de Liguori). Isso é visível na resistência do corpo à obrigação da confissão exaustiva. “É o corpo que opõe à regra do discurso completo quer o mutismo, quer o grito”. A direcção espiritual teria produzido aquilo a que Foucault chama a “carne convulsiva”. A marca da possessão é a convulsão: “forma plástica e visível do combate no corpo da possessa”, escreve Foucault (p. 197). A confissão, como mostra Louis Habert, desenha uma espécie de “cartografia pecaminosa do corpo”. Na prática medieval era preciso dar conta de faltas cometidas contra regras sexuais precisas: fornicação, adultério, violação, sodomia, incesto, bestialidade; o que quer dizer que a proibição de cometer actos impuros dizia respeito aos “laços jurídicos entre pessoas” (Foucault: 1999, 171-172). A partir do século XVI este “aspecto relacional” das infracções é posto em causa e o interrogatório concentra-se no corpo penitente: “os seus gestos, os seus sentidos, os seus prazeres, os seus pensamentos e desejos”. O novo exame aparece agora como “uma anatomia do prazer”. “Bref, c’est le corps avec ses différentes sensations (…) et ses plaisirs que devient (…) le code du charnel” (p. 173). A primeira forma do pecado contra a carne é ter contacto consigo mesmo. Não se perdeu o aspecto relacional, mas o problema colocado pelo sexto mandamento não é mais aquele, escolástico, da distinção entre “acto real e pensamento”, mas entre “desejo e prazer”.
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Natura vs cultura
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A palavra "Natureza" separa algumas das relações essenciais do homem ocidental. Basta enumerar grupos de oposição canónicos: Natureza e Graça (Sobre-natureza), Natureza e Arte, Natureza e História, Natureza e Espírito. Como se viu, é esse eixo que organiza a sexualidade como um sistema de valores. Ao esquema natura vs cultura sobrepõe-se então o esquema permitido vs proibido. Fala-se também da "natureza do espírito", da "natureza" do homem para significar não apenas o "corpo" (der Leib), o sexo mesmo, mas todo o ser do homem. Assim se fala da "natureza das coisas". O "natural" no homem, diz Heidegger, é para o pensamento cristão, aquilo que lhe é dado aquando da criação, o que lhe é dado à discrição da sua liberdade; esta "natureza" - abandonada a si mesma - conduz pelo jogo das paixões à ruína do homem; é por isso que a "natureza" deve ser continuamente maltratada: num certo sentido, ela é o que não deve ser. Numa outra interpretação, é o dar livre curso às pulsões e paixões que passa pelo natural do homem; o homo naturae, segundo Nietzsche, é o homem que toma o "corpo" por fio condutor da sua interpretação do mundo - entrando assim, em relação ao "sensível" em geral, e aos "elementos", às paixões, às pulsões e aquilo que elas condicionam, numa nova relação de acordo, graças à qual ele pode tornar-se mestre do "elementar" e, nesta mestria, tornar-se capaz de dominar o mundo, no sentido duma dominação do mundo à medida da planificação". "Natureza" é enfim a palavra para aquilo que esta não apenas acima de qualquer "elementar" e todo o humano, mas acima mesmo dos deuses. Assim fala Hölderlin, no Hino Wie wenn am Feiertage (estrofe III) (14).
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Coda
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Rui Nunes diz que tem dois problemas: Deus e o sexo. Feridas insanáveis talvez para quem não percorre a vida como um “atleta da santidade”. Weininger tinha outro problema: o medo do Nada que ele identificava com a Mulher: “É assim igualmente que o medo mais profundo que o homem conhece é o medo da mulher, que não é senão o medo diante da ausência de sentido, o receio de ceder à atracção do Nada”. Agostinho afirma que não é qualquer corpo que deita a alma abaixo, mas o corpo corruptível: "only bodies which are corruptible, burdensome, oppressive, and a dying state", the body beset with sin (Agostinho, Cidade de Deus, 528). É a corrupção da carne que mais inquieta Nunes. Aquilo que Celan define como “la brulûre du sens” escapa a qualquer representação. Assim Deus. Não podemos opor o amor ao desejo, e isto para evitar o antagonismo agostiniano entre a cupiditas e a caritas. Não podemos repetir a oposição entre a natureza - princípio de insaciável apetite - e a graça princípio de inesgotável oblação que procede da infinitização do homem e do mundo. Como podemos governar as almas segundo a fórmula tridentina, sem nos furtarmos a um dado momento com a convulsão dos corpos, que é a sua maneira de falar sem falar?
O cristianismo tem a sua parte na repressão do corpo. Com ele, outras ideologias totalitárias que advogavam a submissão do indivíduo ao todo de origem religiosa ou laica, criaram situações de imposição duma disciplina ascética do corpo. Ao reduzir o cuidado com o corpo e o espaço da sua reapropriação à estrita observância e à estrita fruição da regra, ao transformar os jogos de significação em codificações rígidas, geraram uma outra forma social típica de corporeidade, a do corpo ascético, desindividualizado, uniformizado. Quer esteja explicitamente ao serviço duma intenção instrumental (como o corpo militar) quer esteja ao serviço duma finalidade transcendente (o corpo religioso), ele deve testemunhar, pela estrita observância da regra: roupa, atitudes, gestuais, cosmética, todas as formas da aparência devem exprimir a mesma submissão partilhada. Passou-se porém do ódio do corpo e da mortificação ao culto do corpo e ao hedonismo, sem lugar para o corpo a vir que Paulo e os místicos anunciaram. Um humanismo dionisíaco, neo-pagão, sem metafísica e sem salvação mergulhou o mundo ocidental no niilismo. O primado do estetismo, a aeróbica, a dietética, as novas práticas do excesso ocupam agora o lugar da ascese e da disciplina (Le Breton, 1991).
O ícone falava. O corpo dos místicos (mulheres, a maioria) falava. O signo tinha uma voz. A modernidade inverteu esta situação. A construção de enunciados claros obscureceu a elocução divina. A “fala” da ciência supõe um não sujeito ao leme. O mundo deixou de falar. A pintura deixou de falar, desde a Renascença, pelo menos. A Bíblia tornou-se um objecto produzido pelas técnicas de edição crítica, reduzida ao mutismo, mesmo se a exigese continua a “fazê-la falar”. Mas a voz resiste: erótica e dolorosa, a contradizer o positivismo e o idealismo e “que constitui a base das nossas frágeis apreensões do corpo, isto é, também, do outro” (15).
Que está a mudar? Depois da repressão sexual, a “libertação”. Ao fim e ao cabo, continuamos a reproduzir o negativo ou o positivo absoluto, não a mabivalência. Depois de ter libertado a sexualidade do repressão da era vitoriana, Freud acabou por a canalizar para o quadro restrito da “economia doméstica”. Quem não respeita o esquema que circunscreve a sexualidade ao território dos fantasmas parentais, vidé triângulo edipiano que codifica a sexualidade e a retira de qualquer ambivalência é, ou doente, ou perverso ou louco. “O erotismo endémico (e outras formas de êxtase como o misticismo, a embriaguez e a toxicodependência), associada à rapina, é um sinal de bifurcação ópio para o esquecimento, gozo da morte alheia. Em qualquer bem ‘conquistado’, esse rumor é perfeitamente audível”16. Os bens da rapina (e da retina) são bem conhecidos: o ouro, as mulheres, os escravos e a tirania. Só em tempos de fome é que o estômago domina. O eros só é possível se o corpo preserva toda a sua ambivalência e não se reduz a essa significação unívoca que é o sexo, codificado. Não há todo (ou o todo), dizia Lacan. Dois não fazem um, mas um par de forças. O que o sexo faz é distinguir. Ninguém é homem ou mulher sem resto como ninguém é homo ou heterosexual sem resto, escreve Jean-Luc Nancy (p. 27). Afinal não é essa a questão do nome próprio que para Deleuze designa “um efeito, um zigzag, algo que se passa entre dois como sob uma diferença de potencial”? A maior parte do tempo, a libertação sexual reduz-se à libertação da roupa. Que é a moda senão a encenação do corpo através dessa única significação que é o sexo? Triunfo da equivalência, derrota da ambivalência simbólica. Por isso o strip- tease fascina: provocando o desejo sexual, mantém-no à distância encanto da ambivalência. Para os povos que têm ainda o sentido do adornoe, a roupa é a glória do corpo: “Rien ne va aussi profond que la parure”17. Deve ser por isso que a apocalíptica judaica e cristã apelam ao tema da roupa para dizer o brilho dos corpos gloriosos. O perigo que nos espreita é a libertação do corpo que não o abre à ambivalência, antes o encerra na monovalência duma sexualidade que se torna inteiramente positiva. Se os primitivos se passeavam nus é porque o seu corpo era visto como um rosto, como expressão simbólica. Ora, se o rosto é invisível, o sexo também o é. O corpo não é apenas força de trabalho nem apenas fonte de prazer: libertá-lo apenas reforça a sua estrutura codificada. A ambivalência não quer a revolução, ela “é” revolucionária em si, ao interromper a circulação ordenada dos signos através dum equivalente geral. A lei é o lugar em que se acunula o valor. Transgredir a lei significa medir-se ainda com ela, logo não sair da família. Escreve Galimberti, “Se a lei do pai ou a moral puritana é hoje anulada pela pressão dos movimentos de ‘libertação sexual’, aquilo que se anuncia, quando não se abandona a lei mas nos limitamos a transgredi-la, é uma regressão ao seio da mãe que esta sociedade, que se tornou permissiva, tolerante, gratificante e lenificante tolera, suprimindo qualquer censura, qualquer repressão com a qual outrora defendia a lei do pai”18. É preciso que a “miséria sexual” seja muita para que o sexo seja hoje uma preocupação dominante. Quando o corpo muda, então tudo está a mudar. O corpo tornou-se um campo de batalha: “The body is a battleground”, diz Bárbara Krueger numa das suas montagens. A época anunciada por Donna Haraway em que o “monstro”, o híbrido vem extremar a categoria de corpo, substituirá o enigma de um corpo demasiado orgânico, logo viscoso e enigmático, por um outro, agora biotécnico, sem órgãos, limpo de paixões e de sentido?
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