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A interpretação cristológica do Antigo Testamento expressou-se de maneira particularmente clara nas chamadas «citações de cumprimento/realização», feitas em relação com os traços da personalidade teológica de Jesus e com os episódios da sua vida59. As ditas citações caracterizam-se pelo facto de serem introduzidas por uma frase que comporta o verbo grego pléróô (realizar [o predito], cumprir [uma promessa], atingir a plenitude ou o acabamento). Mateus é o livro do Novo Testamento que mais as usa60. Na impossibilidade de passar revista a todas as citações de cumprimento deste Evangelho, limitar-me-ei a Mt 1,18-2,23 onde são sobremaneira frequentes. Generalizando as conclusões desse estudo, apresentarei depois, resumidamente, a leitura cristológica que o Novo Testamento faz do Antigo. |
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Mt 1,18-2-23 faz parte do chamado Evangelho da Infância, que consta de uma genealogia e de cinco cenas narrativas, pontuadas cada uma delas por uma «citação de cumprimento». A genealogia, que encabeça o Evangelho, resume da maneira mais condensada possível a história bíblica de Abraão a Jesus mostrando que Jesus, o termo dessa história, é de estirpe davídica. Os cinco relatos que seguem mostram como a história bíblica é anúncio, prefiguração e esboço da pessoa e da vida de Jesus nas quais a dita história se perfaz61. |
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Mt 1,18-25 é um relato centrado à volta da segunda parte do v. 20: «... pois o que nela (isto é, em Maria) foi engendrado é (obra) do Espírito Santo». No v. 18 o narrador tinha já informado o leitor de que, antes de coabitar com José63, Maria se achara grávida do Espírito Santo. Na lógica do relato, José ainda não sabia isso. Só fica agora a sabê-lo. Fica também a saber da boca do anjo que Maria dará à luz um filho a quem ele porá o nome de Jesus. A seguir, o Evangelista comenta esses factos com uma citação de Is 7,14: «Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor mediante o profeta, que diz: "Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um filho e chamá-lo-ão Imanuel, que quer dizer 'Deus connosco"'» (w.22-23). Na primeira parte da citação «Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um filho») , Mateus segue a LXX, a única forma do texto de Is 7,14 que usa o termo parthénos «virgem»). Em hebraico lê-se 'almâh, substantivo que designa uma jovem em idade núbil ou já casada. Na maior parte dos seus empregos bíblicos, 'almâh designa de facto uma jovem virgem mas o termo não implica necessariamente essa qualidade. Traduzindo o termo por parthénos, a LXX especificou-lhe o sentido transformando a jovem numa virgem, conceito esse que se expressaria em hebraico por betulâh. Marcadas pela preocupação de uniformizar o texto grego com o hebraico, e porventura também pelo desejo de se demarcarem da interpretação messiânica dada pelos cristãos, as versões judaicas de Áquila, Símaco e Teodocião afastaram-se da LXX vertendo 'almâh por neanis, o termo mais usado nos textos gregos da Bíblia para traduzir 'almâh 64. Na segunda parte do versículo, o plural «chamá-Io-ão» representa uma tradição textual minoritária, documentada por Mt 1,23, de onde passou para vários textos posteriores, sobretudo gregos. Sem entrar nos pormenores da questão relativamente complexa, pode dizer-se que existem duas variantes hebraicas do texto. No principal dos manuscritos do livro de Isaías encontrados em Qumran lê-se wqr'. Segundo a vocalização que se adopte, este verbo traduzir-se-á por «ele chamá-Io-á» ou, mais provavelmente, por «será chamado». No texto hebraico corrente, lê-se wqr'. Segundo a vocalização que se adopte, traduzir-se-á por «chamá-Io-ás» ou por «ela o chamará», tendo por sujeito respectivamente o rei Acaz, a quem se dirige Isaías ou a jovem mãe de quem fala Isaías. Os tradutores gregos da LXX optaram pela primeira possibilidade; os Massoretas, pela segunda65. Na boca de Isaías, Is 7,14 anunciava que uma jovem ia engendrar um filho. Com o nome simbólico de Imanuel (Deus connosco), o rapaz seria um sinal de lavé para Acaz e para o povo de Judá. Tanto a identidade da mãe como a do filho permanecem um enigma. A tradição judaica e a maioria dos exegetas críticos pensam que se trata respectivamente da esposa do rei Acaz e do seu filho Ezequias. Há quem proponha identificá-Ios respectivamente com a esposa e um filho do próprio Isaías. Imanuel seria irmão de Chear lachub (Um Resto voltará)66 e de Maher Chalal Hach Baz (Rápida Presa Iminente Saque)67, dois filhos de Isaías que também tinham nomes simbólicos68. Seja qual for a identidade da mãe e do filho, não há dúvida de que Isaías falava de uma jovem do seu tempo que estava prestes a conceber e a dar à luz um filho. Nada indica que Isaías se referia de alguma maneira a um acontecimento de um futuro distante. Pelo contrário, Mateus pensa que Isaías falava de antemão de Jesus e das circunstâncias do seu nascimento. Para o Evangelista, o anúncio de Is 7,14 cumpriu-se com o nascimento de Jesus, ocorrido cerca de sete séculos e meio mais tarde. A referência aos acontecimentos do tempo de Isaías contida no texto está fora do horizonte de Mateus. Dissemos que Mt 1, 18-25 se destina a mostrar que Jesus foi engendrado pelo Espírito Santo. A convicção de que Jesus foi engendrado pelo Espírito Santo será uma conclusão que Mateus tirou de Is 7,14? Nada sugere que tal seja o caso. Pelo contrário, tudo indica que a dita convicção é o ponto de partida do raciocínio de Mateus e não teve origem em Is 7,14. Mateus e a sua igreja crêem que Jesus teve origem no Espírito Santo. O Evangelista expressa essa crença por meio de um relato que conta as circunstâncias da conceição de Jesus. Para que fique bem claro que Jesus foi engendrado pelo Espírito Santo, Mateus exclui a intervenção de José, noivo de Maria, nesse acto e afirma a conceição virginal de Jesus. Algo de tão importante não podia ser afirmado de ânimo leve sem dar provas ou sem o fundar na tradição. Mateus vê essa prova em Is 7,14, texto onde lê o anúncio das circunstâncias do nascimento de Jesus tais como ele as conta. Mt 1,18-25 ilustra bem o vaivém entre Jesus Cristo e o Antigo Testamento que caracteriza a hermenêutica cristã do Antigo Testamento. O ponto de partida do relato é a convicção de que Jesus foi engendrado pelo Espírito Santo. Mateus legitima e funda essa convicção fazendo apelo a Is 7,14. Esse apelo era tanto mais natural quanto uma parte da tradição, representada pela LXX, já tinha introduzido em Is 7,14 a ideia da mãe virgem. Inversamente, a convicção de que Jesus foi engendrado pelo Espírito Santo determinou o sentido de Is 7,14 aos olhos de Mateus. E claro que só quem partilha a fé de Mateus e da sua comunidade a respeito de Jesus pode partilhar também a sua leitura de 1s 7,14. |
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Como a genealogia de Jesus (Mt 1,1-17), a adoração dos Magos destina-se a afirmar que Jesus é o Rei-Messias, descendente de David69. O relato mostra também como o Rei-Messias dos judeus foi reconhecido e adorado pelos pagãos. Os Magos buscam o rei dos judeus e Herodes consulta as autoridades religiosas judaicas para saber o lugar onde deve nascer o Messias. A resposta das autoridades religiosas judaicas é inequívoca. O Messias real deve nascer em Belém da Judeia70, por ser a pátria de David. As autoridades religiosas judaicas fundam a sua resposta citando as Escrituras. Embora não contenham formalmente uma citação de cumprimento pois falta o verbo pléroô, Mt 2,5-6 supõe a existência de uma relação de anúncio e cumprimento entre o Antigo Testamento e Jesus Cristo. Mateus atribui às autoridades judaicas a citação de mais do que uma passagem das Escrituras. Numa espécie de associação de ideias, um texto sugere ou atrai outro que lhe é de algum modo aparentado. Mt 2,6 cita primeiro Mq 5,1 e depois 2 S 5,2 combinado com Mq 5,3. Mateus transforma a primeira proposição de Mq 5,1 de positiva em negativa. Com efeito, no texto hebraico lê-se: «E/Mas tu, Belém- Éfrata, és pequena entre os clãs de Judá ...». A LXX reforça ainda a ideia de pequenez ao escrever «a mais pequena». Pelo contrário, em Mt 2,6 lê-se: «E tu, Belém, terra de Judá, não és de modo nenhum a menor entre as principais cidades de Judá ...». Sendo o lugar do nascimento do Messias, Belém não é de modo algum a menos importante entre as principais cidades de Judá. Os textos citados em Mt 2,6 têm em comum o facto de se referirem a David, o fundador da monarquia e da única dinastia de Judá. 2 S 5,2 é explicitamente dirigido a David. A menção de Belém em Mq 5,1 aponta inequivocamente para David, natural dessa cidade (1 S 17,12). É por causa da referência a David que Mt 2,6 aplica esses textos a Jesus. Fá-lo para mostrar que Jesus é o Messias descendente de David. Mt 2,6 não foi o único que interpretou Mq 5,1 num sentido messiãnico. Fizeram-no também os sectores judaicos representados pelo targum de Miqueias. Própria a Mateus é a aplicação do texto a Jesus. |
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O relato da fuga de Jesus para o Egipto destina-se a servir de quadro à citação de cumprimento que o conclui: "Assim se cumpriu o que o Senhor anunciou pelo profeta: "Do Egipto chamei o meu filho"». Mt 2,15 cita Os 11,1. Oseias referia-se ao êxodo de Israel, o Filho de Iavé71, do Egipto. Aos olhos de Mateus, Oseias falava, de facto, de Jesus. Ora, dizer que Jesus reviveu o Êxodo, acontecimento fundador da história de Israel, equivale a dizer que Jesus é Israel; que nele se concentra e resume Israel. Mateus escolheu o texto hebraico de Os 11,1 pois era o que convinha ao seu propósito. Tal não acontecia com o texto da LXX nem com a interpretação da passagem dada pelo Targum. Embora o seu sentido seja diferente, a LXX e o Targum têm em comum o facto de escreverem "filhos" no plural (os Israelitas) e não "filho", no singular (Israel). Na LXX lê-se: "Do Egipto chamei os seus filhos (isto é, os filhos de Israel"; no Targum: "Desde o Egipto72 chamei-os filhos" . |
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0 relato termina com a citação de Jr 31,15, texto que evoca a lamentação de Raquel sobre os seus filhos. Segundo a tradição bíblica, Raquel é a mãe de José e Benjamim; a avó de Efraim e de Manassés, filhos de José. Todas essas personagens são antepassados epónimos de Israel. Jr 31,15 refere-se porventura a mais do que um acontecimento histórico. 0 primeiro é a conquista assíria em 722 a. C. que se saldou pela ruína do reino de Israel e pela morte ou pela deportação de muitos dos seus habitantes. Jr 31,15 talvez também se refira à conquista babilónica do reino de Judá em 587 a. C. Com efeito, Ramá, o cenário da lamentação de Raquel, foi o lugar onde os Babilónios reuniram a população Judá destinada à deportação (Jr 40,1). Seja como for, para Mateus, Jr 31,15 anunciava o massacre das crianças de Belém ao qual Jesus escapou. A Bíblia menciona várias localidades chamadas Ramá (Altura) . Jr 31,15 e 40,1 referem-se à Ramá de Benjamim (Jos 18,25). O seu nome é conservado pela localidade palestiniana de Ar-Ram, actualmente um subúrbio de Jerusalém, a norte da cidade. Foi em Ramá de Benjamim que a tradição começou por situar o túmulo de Raquel, tendo-o localizado posteriormente nas imediações de Belém, a noroeste desta localidade73. A «migração» do túmulo de Raquel foi a consequência da confusão entre Éfrata (Efraim, a actual Taybé?), localidade próxima de Ramá, e Belém, que é às vezes chamada Éfrata (Mq 5,1; Rt 4,11) e é tida por pátria do clã efrateu (Rt 1,2), ao qual pertencia David (1 S 17,12). A localização do túmulo de Raquel nas imediações de Belém permitiu a Mateus utilizar Jr 31,15 para comentar o massacre das crianças de Belém, apresentando-o como o motivo da lamentação de Raquel. |
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O Novo Testamento é unânime em dizer que Jesus viveu em Nazaré. De aí que Mateus, João e os Actos qualifiquem Jesus de Nazoreu (nazoraios); Marcos, de Nazareno (nazarénos); Lucas, de Nazoreu e de Nazareno. Não há qualquer razão para duvidar de que Jesus passou a maior parte da vida em Nazaré. Pelo contrário, a questão da naturalidade é discutida. Jesus terá nascido em Nazaré como parecem supor Marcos e João? Ou terá nascido em Belém como afirmam Mateus e Lucas? Sendo então Nazaré uma aldeola sem qualquer importância ou prestígio - muito pelo contrário (Jo 1,45-46) - não se vislumbra nenhuma razão que tivesse levado a situar lá o nascimento de Jesus. Não se pode dizer o mesmo de Belém, a pátria de David. De facto, muitos exegetas pensam que a localização do nascimento de Jesus em Belém é uma ficção cujo objectivo é informar não sobre a naturalidade de Jesus mas sobre a sua qualidade de Messias real. Segundo Mateus, José era natural de Belém mas a perseguição de Herodes obrigou-o a refugiar-se em Nazaré, onde se instalou com a esposa (Maria) e o filho (Jesus). Seja como for, Mt 2,19-23 destina-se a explicar o facto surpreendente de Jesus ter vivido em Nazaré e de ter sido apelidado nazoreu ou nazareno. Mt 2,23 afirma que esse facto fora anunciado nas Escrituras. O Evangelista remete para os profetas em geral. Segundo a terminologia judaica, pode tratar-se dos livros históricos ou dos livros proféticos. De facto, a frase «Ele será chamado Nazoreu» não se lê no Antigo Testamento, onde aliás também não consta o nome de Nazaré. Por isso, não se sabe a que texto Mt 2,23 se refere. Tão-pouco se conhecem o sentido exacto do título Nazoreu e a razão da sua escolha. Das várias hipóteses que foram propostas para ilucidar essas questões, assinalo as três mais correntes. Segundo uma das interpretações, Nazoraios translitera o hebraico nazîr (consagrado a Deus). Mt 2,23 referir-se-ia a Jz 13,5.7. Dito texto fala de Sansão, que era nazîr. Esse termo é transcrito em vários manuscritos gregos por naziraios (nazireu). Mateus pode ter feito um jogo de palavras mudando naziraios em nazoraios sugerindo porventura um duplo sentido da palavra: Jesus é ao mesmo tempo o habitante de Nazaré e o consagrado a Deus por excelência. Segundo outra hipótese, Nazoraios derivaria de neser a referir-se-ia a Is 11,1. Este texto anuncia que um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento brotará das suas raízes. Ora, rebento traduz o hebraico néser. É possível que nazoreu tenha sugerido néser. Nesse caso, Mateus aproveitaria o nome nazoreu para insistir na origem davídica de Jesus, como em Mt 2,5. Segundo uma terceira hipótese, Nazoraios transliteraria nasûr (preservado, guardado), referindo-se Mateus a Is 42,6 e 49,8. Esses textos fazem parte respectivamente do primeiro e do segundo Canto do Servo de lavé. «Eu, lavé, chamei-te para o serviço da justiça, tomei-te pela mão e guardei-te...» (Is 42,6). A tradução guardei-te, o termo decisivo para a questão, não é aceite unanimemente. Assim, a Bíblia de Jerusalém traduz o verbo hebraico correspondente por modelei-te. De facto, pode tratar-se de uma forma do verbo nasar (guardar} ou do verbo yasar (modelar, moldar, formar, fazer ao torno). O sentido de guardar parece convir melhor ao contexto. É provavelmente ao radical nasar que pertence também o nome de Nazaré que significaria «Torre de guarda». Nazoreu evocaria assim a ideia da protecção divina concedida a Jesus. Na verdade, estas três explicações não passam de conjecturas, não se sabendo quais as ressonâncias do título de Nazoreu nem a que texto ou a que textos bíblicos Mateus se refere, se é que se refere a algum texto ou a alguns textos em particular. O importante para Mateus é a afirmação segundo a qual a naturalidade de Jesus faz parte do plano de Deus revelado de antemão pelos profetas. |
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As «citações de cumprimento» de Mt 1,18-2,23 pressupõem que o Antigo Testamento fala imediatamente de Jesus Cristo, da sua pessoa e dos acontecimentos da sua vida. É só por ler nele uma referência directa a Jesus Cristo que Mateus se interessa pelo Antigo Testamento. A única coisa que o Evangelista busca no Antigo Testamento é a sua mensagem cristológica. Dito por outras palavras, a exegese praticada por Mateus é confessional. Mais precisamente, ela é cristã, só a podendo aceitar quem partilhe a fé cristã do Evangelista. Tendo outras chaves de leitura, as interpretações religiosas judaica e muçulmana das mesmas Escrituras são forçosamente diferentes. A exegese cristológica do Antigo Testamento como as restantes exegeses confessionais difere das múltiplas exegeses científicas modernas as quais são, pelo menos teoricamente, independentes de qualquer confissão religiosa. Assinalo só uma diferença fundamental entre a exegese cristológica e a exegese histórico-crítica. Estranha à exegese cristológica, a questão do sentido que os textos tinham no seu contexto histórico está no centro da exegese histórico-crítica. Com efeito, esta propõe-se justamente captar o sentido e o alcance que os textos tinham no contexto em que foram escritos ou pronunciados assim como nos sucessivos contextos em que foram relidos posteriormente. Todos os textos citados em Mt 1,18-2,23 provêm dos livros proféticos, segundo a nomenclatura judaica; dos livros proféticos e dos livros históricos, segundo a nomenclatura cristã. Vendo no Antigo Testamento o anúncio imediato de Jesus Cristo, Mateus volta-se sobretudo para os textos proféticos considerados como os mais claramente messiânicos. O autor de Mt 1,18-2,23 dá mostras de uma grande liberdade nas suas citações do Antigo Testamento. Fusiona textos sem a preocupação de os distinguir segundo as suas origens; importa-se com o anúncio profético, mas não com a identidade do profeta. Quando existem várias compreensões do texto, Mateus adopta a que mais se coaduna com o seu propósito. Acontece-lhe retocar o texto no sentido do anúncio que nele quer ler. Não é impossível que, no caso de Mt 2,23, invoque um texto inexistente. Mateus goza de uma liberdade criadora. De facto, a sua interpretação cristológica do Antigo Testamento deu origem a um texto novo, o Evangelho segundo São Mateus. |
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As conclusões do estudo das citações do Antigo Testamento em Mt 1,18-2,23 podem generalizar-se a todo o Evangelho segundo São Mateus e mutatis mutandis aos restantes Evangelhos e ao conjunto do Novo Testamento. Os cristãos continuaram a interpretar as Escrituras à maneira de Jesus. No entanto, adaptaram a sua interpretação à nova realidade criada pela ressurreição de Jesus, na qual os cristãos viram a confirmação divina do seu carácter messiânico. Enquanto Jesus leu nas Escrituras antes de mais o anúncio do Reino de Deus de cuja instauração era o arauto, os cristãos lêem nelas o anúncio do próprio Jesus confirmado na sua função de Messias/Cristo. Por conseguinte, a leitura cristã das Escrituras é cristológica. Tem Jesus Cristo como única chave hermenêutica. Segundo a leitura cristã, as Escrituras, apesar das aparências contrárias, falam de antemão de Jesus Cristo de uma ponta à outra. As personagens (por ex., Moisés e David), os acontecimentos (por ex., a travessia do Mar dos Juncos), as instituições (por ex., o templo e o sacerdócio), os ritos (por ex., o cordeiro pascal) e os valores (por ex., a lei) referidos nas Escrituras são, de facto, simples figuras, tipos ou esboços de Jesus Cristo. Têm um sentido mais profundo que diz respeito a Jesus Cristo. Por isso, só a pessoa e a vida de Jesus Cristo podem revelar esse sentido. A leitura cristã das Escrituras herdadas do judaísmo comporta, na realidade, um duplo movimento ou uma espécie de vaivém de Jesus Cristo às Escrituras e vice-versa. Por um lado, os intérpretes cristãos procuraram nas Escrituras o sentido da pessoa e da vida de Jesus Cristo. Começaram pelas circunstâncias da morte e ressurreição de Jesus, que constituem o núcleo do Evangelho. Uma das confissões de fé mais antigas, transmitida por Paulo aos cristãos de Corinto, diz o seguinte: «Transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu próprio recebi: Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras» ( 1 Cor 15,3-4). A morte, a sepultura e a ressurreição de Jesus deram-se em conformidade com as Escrituras. Mais ainda. São as Escrituras que revelam o sentido desses acontecimentos, o seu carácter salvífico. Os intérpretes cristãos procuraram depois nas Escrituras o sentido de um número cada vez maior de episódios da vida de Jesus e de palavras que ele pronunciou ou lhe são atribuídas. Inversamente, os intérpretes cristãos leram as Escrituras à luz de Jesus Cristo. A seus olhos só a pessoa e a vida de Jesus revelam o verdadeiro sentido das Escrituras para além do sentido literal e óbvio. 0 fruto mais notável deste vaivém hermenêutico entre Jesus Cristo e as Escrituras é o Novo Testamento, em particular os Evangelhos. De aí que o Novo Testamento seja incompreensível sem o Antigo. É por falar de Jesus Cristo que os cristãos guardam como própria uma vasta colectânea de escritos judaicos e fazem dela a primeira parte das suas Escrituras, o Antigo Testamento. Tanto o Antigo como o Novo Testamento dão testemunho de Jesus Cristo mas cada um fá-lo à sua maneira. A leitura cristológica das Escrituras judaicas não foi um simples exercício teológico, feito de maneira irénica e desinteressada. Muito pelo contrário. Ela teve lugar num contexto de concorrência entre diferentes grupos judaicos que se disputavam pela herança das Escrituras e, em definitivo, pelo título de «Israel», isto é, pela legitimidade do Povo de Deus. Cada um dos grupos procurava apropriar-se exclusivamente das Escrituras interpretando-as à sua maneira. No contexto religioso de então, avesso à novidade, qualquer inovação devia apresentar-se como algo que existiu desde sempre ou, pelo menos, desde a mais alta antiguidade. Ora, mostrar que Jesus realiza as Escrituras é fundar a legitimidade dos cristãos e dizer que eles são Israel com exclusão dos restantes grupos que tinham as mesmas reivindicações. Com efeito, a interpretação cristológica exclui qualquer outra leitura religiosa do Antigo Testamento, considerando-a errónea. Segundo o testemunho dos Evangelhos, os cristãos polemizaram sobretudo com os fariseus, o grupo que realmente contava após a destruição do Templo, em 70 d. C., e aquele que deu origem ao judaísmo rabínico moderno. O farisaísmo e o judaísmo actual reconhecem a primazia absoluta da Lei, de que fazem a chave de leitura das suas Escrituras. Para estes, os Profetas e os Escritos são explicitações da Lei, isto é, sobretudo minas de onde se extraem normas de conduta (halaká). O cristianismo e o judaísmo são, por conseguinte, duas interpretações da tradição bíblica fundamentalmente diferentes. Usando os cristãos e os judeus chaves diferentes, é vão esperar que possam encontrar-se nas suas leituras das Escrituras que têm em comum. Alguns séculos mais tarde, o Islão deu ainda outra interpretação muito diferente das tradições judaica e cristã, das quais se considera o acabamento. |
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