Não é hoje possível falar das imagens do poder nem de poder
das imagens, sem pensarmos que a imagem constitui a própria
forma da nossa cultura. Alguns falam de civilização da imagem. Há
quem fale de "cultura do ecrã" {Olivier Donnat, 1994: 284), e
também de "paradigma do vídeo" {Lash & Urry, 1994: 16), e ainda
de cjbercultura.
Somos hoje atravessados, de facto, por uma imensidade de
imagens que, nas ruas e nos centros comerciais nos vêm das montras
e dos placares, imagens que nos invadem a casa, pela televisão,
pelo vídeo, pelo computador, pelas consolas de jogos electrónicos,
imagens que nos assaltam, quando vamos ao multibanco, e que
nos avassalam, quando nos refugiamos nas salas de cinema ou
quando experimentamos embarcar em sessões de realidade virtual.
Este actual esplendor da imagem, uma imagem que nos rodeia,
atravessa, assedia, alucina e esgazeia, uma imagem envolta em luz
eléctrica, uma luz de que só nos damos conta quando falha, é
indissociável de o mundo se tomar imagem pela tecnologial. Aqui
está um primeiro aspecto que eu gostaria de realçar: boa parte do
poder das imagens, da sua força, está na tecnologia, ou melhor, na
força da tecnologia.
Os dispositivos tecnológicos produzem e administram imagens
que simulam as mais perfeitas harmonia ecológica e transparência
humana, o que é um grande passo feito no sentido da idolatria. A
narrativa bíblica sempre receou a possibilidade de a imagem se
deixar tentar pela diabolia, ou seja, pela separação. O Antigo
Testamento impediu as imagens de Deus, uma vez que nelas
espreitava a idolatria, que é um efeito da rebelião da imagem.
Autotelizando-se, as imagens deixam de remeter para fora de si e
negam, deste modo, a sua essencial dependência. Simplesmente
agora, tanto com a fotografia, como com o registo fílmico e
videográfico, como com a imagem virtual, a imagem separa-se
imediatamente do corpo e do mundo. A imagem libertou-se da
matriz, autotelizou-se, decretou a sua diabolia, a sua separação. E a
mesma coisa se passa com a imagem da televisão. As imagens que
nos chegam dos corpos massacrados, um pouco por todo o lado,
alteram a relação que estabelecemos com os corpos que vemos
macerados à porta de nossa casa, na paisagem dos caminhos e nos
entroncamentos das ruas. O mesmo mecanismo do zapping com
que controlamos à distância as imagens da televisão passou a
esgazear o nosso relacionamento humano.
A ideia de clicarmos um
telecomando para banirmos o outro faz-me lembrar o manífico
desempenho de Peter Sellers em Wellcome Mr. Chance. Peter Sellers
incama o papel de um jardineiro numa mansão. Esta personagem
alardeia uma notória deficiência mental e guarda do mundo duas
experiências marcantes: uma, é a prática da jardinagem; outra, é
aquela que lhe vem das imagens da TV, que a personagem de Peter
Sellers telecomanda, fazendo zapping sempre que elas são para si
desagradáveis. Em casa há, por todo o lado, ecrãs de televisão e
esta personagem anda sempre com um telecomando no bolso.
Quando os proprietários da mansão morrem e esta personagem
se vê pela primeira vez da sua vida na rua, o seu aspecto é o de um
lord, bem vestido e a irradiar respeitabilidade social. Mas o choque
é brutal. Logo ali, à porta da mansão, depara com a ameaça de um
gang de marginais, que lhe saem ao caminho com facas de extensas
lâminas ameaçadoras. Para afastar imagens tão agressivas, a
personagem de Peter Sellers saca de um telecomando que tem no
bolso e põe-se a clicar freneticamente. O problema é que desta vez
não há meio de mudar de canal: as imagens desagradáveis não
saem de cena, continuam bem diante de si, cada vez mais
ameaçadoras.
Era Bronislav Geremec que perguntava em Les Fils de Caïn
(1991) pelo que fizemos do nosso irmão. Não sei se porventura nãoclicamos para o banir... Em todo o caso, pela tecnologia, a imagem
dispensa o mundo, já não é cópia dele. E porque a tecnologia nos
garante a ilusão de imagens produzidas nas mais perfeitas harmonia
ecológica e transparência humana, o mundo deu consigo a fazer-se
à imagem da imagem, a replicar-se à semelhança de um mundo
protésico e clónico, não sendo mais a origem de coisa alguma.
Eis-nos então aqui a caminharmos, em passadas largas, para a
"idolatria", replicando-nos, clónica e protesicamente: com regimes
alimentares; com normalização em ginásio; com implantes de pele e
de cabelo; com próteses de silicone e com plásticas. O paradigma
seguido é o da publicidade - um paradigma que articula a
comunicação com o consumo e com o lazer, configurando, pela
tecnologia, um mundo de juventude eterna, de beleza nunca fanada,
de saúde imperecível, e reverberante de luz - um mundo produzido
nas mais perfeitas harmonia ecológica e transparência humana, como
já assinalei. E à pergunta: "o que é que fizeste do teu irmão?", não
sei se a nossa atitude também não é hoje a de clicarmos para mudar
de canal, se bem que não haja modo de retirar de cena a multidão
daqueles que nos saem ao caminho nos sítios mais inesperados e
com rogos cada vez mais ameaçadores.