A TIRANIA DA IMAGEM

 

 

 

Da metafísica do fluxo
à treva luminosa:
Eckhart e a tirania da imagem (1)

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

CADERNOS DO ISTA, 15

"Quintus: homo debet esse multum diligens ut spoliet vel denudet se ipsum a propria imagine et cuiuscunque creaturae et ignoret patrem nisi solum deum; tunc nihil est quod possit ipsum contristare vel conturbare, nec deus nec creatura nec aliquod creatum nec increatum. Totum suum esse, vivere, nosse, scire et amare est ex deo et in deo, et deus" (Processus Coloniensis) (1)

"..uma imagem propriamente dita é uma emanação formal simples que transmite toda a essência nua e pura,…uma emanação a partir das profundidades do silêncio, excluindo tudo o que chega de fora. É uma forma de vida, como se estivéssemos a imaginar algo que inflasse por si próprio e em si próprio e depois fervesse sem ferver por fora nesta ocasião compreendida ". (Eckhart)

“Dieu, en effet: ce qui excède le signe. Ce qui, signifié, serait aussitôt d l’éteint, serait déjà de l’aussi inconcevablement absent du tison éteint que le silence l’est du bruit, la ligne du point, la presence de la figure. Dieu ce qui, désigné, serait-ce du nom de Dieu, mot qui accueille pourtant l’idée de la défaillance du sens, ne nous a laissé qu’une image, ce qui nous induit au mensonge. Mais qui, lorsque le signe s’efface, commence à rayonner de cette lumière de tout en tout dont nous a privé la langage.” (Yves Bonnefoy)

"Que crítico não acredita que o seu dever fundamental, o seu mais ardente compromisso é destruir os totens, denunciar ideologias, censurar os idólatras” (Bruno Latour)

 
Nota biográfica de Mestre Eckhart
 

Eckhart nasceu por volta de 1260 em Hochheim, na Turingia e morreu em Avinhão em 1328. Entrou com 18 anos nos dominicanos de Erfurt e terminou os seus estudos teológicos em Colónia. Conhece-se a sua conferência inaugural, a Collatio in libros Sententiarum (2) e um Sermão pascal datado de 18 de abril de 1294. Sabe-se que por volta de 1293 é nomeado leitor no convento de S. Jacques em Paris. Pouco depois, encontramo-lo como prior de Erfurt e vigário provincial da Província da Turingia. É nessa altura que compõe os seus “Exercícios espirituais”, obra de juventude, para o tempo, ousada. Em 1302 Eckhart termina os estudos em teologia na universidade de Paris, passando a ser Mestre Eckhart. Durante os anos universitários de 1302-1303, o novo Mestre é titular da cadeira de teologia reservada aos dominicanos. Em Paris ganha nome na defesa do tomismo contra os ataques dos escotistas franciscanos. Regressa à Alemanha em 1302. Em 1304 é nomeado provincial da nova província de Saxónia, então com 47 conventos de irmãos, e representando 11 nações diferentes. Assiste em 1307 ao capítulo geral de Estrasburgo onde lhe confiam o cargo de vigário geral da província da Boémia. Voltará a Paris onde ensina de 1311 a 1313. Em 1312 instala-se em Estrasburgo como prior e pregador em vários conventos de monjas dominicanas e das beguinas (função que na altura incumbia aos Mendicantes). Nessa altura o vale do Reno é sacudido por um fervilhar de dissidentes e heréticos. O bispo João I de Zuric inicia uma campanha contra os "Irmãos e Irmãs da seita do Livre-Espírito e da Pobreza voluntária". Esta seita existe bem antes de Eckhart, mas desenvolveu-se a coberto da sua autoridade. "Pregando a possibilidade de uma vida feliz, colocando a possibilidade de uma beatitude do homem viador em que a pobreza e a nobreza delimitavam um novo "estatuto" de existência, um status adoptionis cristão que ia vai muito para além da oposição entre a "felicidade intelectual" dos filósofos e a "visão reflexiva" dos teólogos frustres, Eckhart opunha-se a uns e a outros" (3). Esta doutrina convinha, obviamente a begardos e beguinas, que não eram propriamente nem filósofos, nem clérigos nem teólogos. Ao situar aqui, e sem o medium duma "visão", uma união a Deus que os teólogos reservavam à pátria celeste, Eckhart parecia justificar as pretensões do livre-espírito: entrar livremente na deidade, penetrar o nada por decisão, sem o socorro da graça, unir-se a Deus, tornar-se Deus "à vontade". Uma das notas mais visíveis dos seus sermões é estarem impregnados das discussões teológicas do magistério parisiense de 1302-1303 e transporem para um auditório não universitário as teses sustentadas contra os teólogos franciscanos de Paris. Pode falar-se de uma certa "desprofissionalização" da teologia e da filosofia de onde sairá a "mística renana", ou a "mística especulativa".

O emprego do vernacular (médio alto-alemão) é dos aspectos revolucionários para a época. Dos 64 sermões reunidos no sermonário anónimo Paradisus animae intelligentis, 32 são de Mestre Eckhart, e aí encontramos o célebre sermão 9, Quasi stella matutina (Paradisus nº 33), um manifesto anti-franciscano em que se denunciam os "mestres de espírito frustre" afirmando que Deus é ser ou que a raiz da beatitude se encontra na vontade. Em 1324 Eckhart volta a Colónia e é nesta altura que choca com o arcebispo de Colónia. Desde o fim de 1325 que aparecem suspeitas a respeito do seu ensino e da sua ortodoxia. Tem já de se justificar por escrito.

O arcebispo entrega o caso a dois inquisidores que no decurso de 1326 apresentam uma lista de 49 proposições extraídas das suas obras e julgadas heterodoxas. Eckhart responde a 16 de setembro e recusa um certo número de entre elas como inautênticas. Uma nova lista de 59 proposições aparece agora. Volta a responder. Eckhart queixa-se diante da comissão de inquérito que o seu processo se arrasta e que os seus juizes tenham dado ouvidos a suspeitos. Recusa a validade da comissão episcopal apelando à Sede apostólica. Para pôr fim ao escândalo faz diante de todo o povo a sua declaração de ortodoxia na igreja dos dominicanos de Colónia a 13 de fevereiro. O seu confrade Conrad de Halberstad lê-a em latim, ele próprio tradu-la em alemão. A 24 de janeiro de 1327, o Mestre apela à Santa Sé em Avinhão. Convocado pelo papa João XXII, vai a Avinhão e aí morre antes de puder defender-se. Um pouco mais tarde uma bula do papa João XXII de 27 de março de 1329 censura 28 proposições para lá daquelas que o arcebispo de Colónia tinha comunicado à Santa Sé e de que nem todas tinham Eckhart por autor. A bula In agro dominico de 1329 condena 17 proposições como "contendo erros ou manchadas de heresia", 11 outros artigos são tidos apenas por "Malsoantes, temerários, e suspeitos de heresia", mas "susceptíveis de tomar um sentido católico mediante explicações e complementos".

Eckhart é, lamentavelmente, o único grande mestre da Idade Média cuja "obra de arte" académica desapareceu. As tarefas dum intelectual dominicano do século XIV eram triplas: explicar a Escritura (lectio), sustentar discussões técnicas (disputatio), pregar a Palavra (praedicatio). A Obra tripartida de Eckhart reflecte a sua tripla actividade. As obras deixadas por Eckhart repartem-se em dois grupos: as obras latinas e as obras alemãs. As obras latinas são de tom mais especulativo e técnico, redigidas directamente por ele. Dispomos de um Tratado da Oração dominical e dois Comentários sobre as Sentenças, Questões parisienses, comentários da Escritura, 58 sermões e alguns outros fragmentos. A obra alemã comporta apenas três pequenos tratados: Encontros sobre o discernimento espiritual; o Liber benedictus onde se agrupam um tratado De la consolation divine e um sermão Da nobreza do homem; enfim um breve tratado Do despojamento (4).

 
 








ISTA
CONVENTO E CENTRO CULTURAL DOMINICANO
R. JOÃO DE FREITAS BRANCO, 12 - 1500-359 LISBOA
CONTACTO: jam@triplov.com