As máquinas de uniformizar:
o prestígio da doxa (fim)
José Augusto Mourão

(UNL-DCC)

CICLO "A VERDADE EM PROCESSO" - 2004

Coda

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“Quando o pensamento suspira, uma espécie de terror invade a medula de não-pensar que corre pela tangente do mundo-cinza como uma cortina. O que se passa dentro aterraria o fora, não por ser medonho mas apenas inclassificável em face do formário, reportório de formas que qualquer ser traz suspenso na cornija que serve de beiral à sua interioridade” (39). Maria Gabriela Llansol põe-nos uma questão crucial, pensando nas crianças: crescer como, porquê e para onde? “Basta reparar nos estragos que causa no crescimento das crianças a implantação do módulo de verdade e de ordem. “o in-fans não fala. Na realidade apenas judica. A judicação, a enunciação de juízos de verdade, transforma um estado transitório (a infância) num estado eminentemente instável (a criança). O que anula na criança é o fairy speak” (40). A estética maravilhante não impede que ensinemos a criança a ler “nós sentimos e experimentamos que somos eternos” (Spinoza).

A ideia da interpretação dinâmica ou da semiose é extremamente produtiva. Aproximamo-nos da verdade duma maneira assintótica através de decifrações que estão sempre abertas a aprofundamentos. A noção de “obra aberta” permitia pensar que havia toda uma série de objectos culturais que poderiam ser lidos de uma forma aberta a uma infinitude de interpretações, libertando assim esses objectos da interpretação única e verdadeira. Desse modo era a verdade (dos objectos culturais) que era diferida ou que era utilizada ad usum delphini . Como se a formação dos gostos fosse inútil ou todos os gostos fossem estimáveis, e a competência (interpretativa) postergada. Como se pertencesse à economia da cultura definir os públicos (41).

Criticar é definir os limites dum campo. Fazer uma crítica epistemológica é definir os contornos externos e internos dum campo epistémico, fazendo emergir o que estava imerso, dissolvido na massa. Trata-se, como é evidente, de um exercício com limites: é a forma simbólica que o envolve e que a grelha do tautismo permite discernir. Podemos fazer uma crítica epistémica da comunicação, não da sua forma simbólica porque estou dentro dela. As ideias recebidas, as formas congeladas, os lugares comuns e os chavões são o nosso pão de cada dia. Não há porém apenas frases performativas incontroláveis, não há apenas a clonagem ideológica que nos repete: há mundos nunca ditos em devir que pedem outro tipo de linguagem.

O triunfo da memória hábito (Bergson) parece representar a dificuldade média de aceder-se quotidianamente à intuição e ao conhecimento Como diagnosticar a tendência predominante voltada para a sistematização da racionalidade técnica e, portanto, daquilo que Bergson chamou inteligência em oposição ao conhecimento? Como lutar contra a memória identificada com o penoso acumular de hábitos no dia a dia?

K. Kraus falava da língua como universal prostituída. A língua fala da língua na metáfora da mãe, da língua maternal. A criatividade do discurso vai para além da aplicação individual de regras universais, da realização da língua na fala. Karl Kraus dizia igualmente que é o escritor que restitui a sua virgindade à universal prostituída que é a língua. Cada locutor é um escritor na medida em que não é simplesmente o utilizador de uma colecção de regras comuns, mas uma voz individual que se apropria da língua dum modo que lhe é próprio. A língua é “a flor da boca”, como diria Heidegger (42). Eu “roubo”, aproprio-me daquilo que é um bem comum. A isso alguns chamam estilo. A “tautologia fundadora” ( die Sprache spricht ). O sentido pertence à comunidade antes que o faça meu. Trata-se da versão linguística das formas da intuição de Kant. Aquilo que quero enunciar é linguagem já lá, no quadro da estrutura da língua que falo e em que esta língua me fala.

Para lá dos lugares comuns (filtros sociais, consensus omnium , esclerose conteudística, chapa, chavão, psitacismo, estereótipo) que também mudam (43), não estamos condenados à “repetição”, à representação congelada do referente por força do uso. O discurso é uma instância de análise em que a produção, i.é., a enunciação se não dissocia do seu produto, o enunciado. Interessar-se unicamente pelo produto é interessar-se pelas suas unidades e esforçar-se por as generalizar para fazer delas um sistema. Ora, o discurso não se contenta com utilizar as unidades dum sistema ou de um código pré-estabelecido; esta visão das coisas apenas se aplica a um pequeno número de situações marginais (o código da estrada). O discurso inventa continuamente novas figuras, contribui para inflectir ou deformar o sistema que outros discursos antes alimentaram. O discurso esquematiza as nossas experiências e representações para as tornar significantes e partilháveis. À perspectiva pessimista de Barthes que vê no estereótipo a impossibilidade de enunciar e de escrever, podemos opor uma perspectiva “optimista” que considera o lugar comum como actividade que deixa um espaço para a criatividade. “Mesmo no caso dos motivos, essa ‘espécie de clichés estereotipados', a significação não é, longe disso, preexistente ao acto de enunciação”, sublinha J. Courtès. Semprini explicita esta mesma abertura a propósito do lugar comum: “... é importante sublinhar que um lugar comum antes de veicular um saber (dóxico ou científico), gera e disponibiliza significação. A inscrição da problemática do lugar comum no interior do campo mais geral da significação e da recepção torna imediatamente evidente a fragilidade das leituras externalistas e veiculares do sentido.(...) O saber articulado pelo lugar comum é por definição um saber aberto, um saber delicado que se oferece à elaboração e à apropriação do outro (Semprini, 1994).

Releia-se Kafka que ilustra bem o que acabamos de dizer. Deleuze e Guattari não analisam um autor, mas um agenciamento colectivo de enunciação e a agenciamento maquínico de desejo do outro. O objecto do conto A Metamorfose ou do romance A Colónia penitenciária com a sua célebre máquina de execução, descreve bem este agenciamento. A literatura menor não se interessa pelos valores burgueses do eros e do individual. Ela desterritorializa este judeu checo, ela é política, é colectiva. A letra K não designa um personagem ou um narrador, mas um agenciamento maquínico e colectivo. Em O Castelo, no fim, K está já exausto. Bürgel fala, fala, sem parar. Os dois continuam a interrogar a Lei diante da Porta. Não vêem que o jogo das interpretações não pode ser interpretado nem como tradição do Verdadeiro, nem sob a forma da adaequatio ao Verdadeiro. “A mentira torna-se a ordem do mundo”. O turbilhão das interpretações chega ao fim não porque se encontrou uma conclusão, mas porque é demasiado tarde, porque o intérprete está demasiado fatigado, a sua vida é apenas uma vida humana. “A interpretação edificante e consoladora da interpretação como perpetuação-conservação do sentido do texto, do carácter original do texto, a interpretação como representação da Origem – essa época acaba em Kafka” (44). A lei, a do senso comum, prevalece sempre sobre aquilo a que se pode chamar os terramotos textuais, que permaneceriam ilegíveis. Hölderlin, Nietzsche, Arnaut alertam-nos sobre os efeitos do apagamento da transcendentalidade. “Esta é o legado dos mortos, dos “cadáveres adiados que procriam” seguindo o senso comum das audiências de massas, mas é também o que passa além da morte, o que, com os textos, a vence” (Fernando Belo). Acreditemos que o tradicionalismo (no fundo, anhistórico) faça menos parte da consciência histórica essencial do que a tradição da mobilização. Não há um dia sem catástrofe, não há ano sem novum , não há geração que não acaricie esperanças que sabe irrealizáveis. “O dinamismo missionário da história essencial condena cada estádio atingido pela história a ridicularizar-se diante daquilo que não foi ainda atingido” (Sloterdijk, 2000, 323). Coisa que, esse animal de advento que é o homem, sempre soube. O triunfo da doxa é, em boa medida, o triunfo da imobilidade. É difícil não ser concluinte de nada. Como é difícil não querer repousar sobre a verdade. Não podemos porém imobilizar a realidade que está, por sua natureza, em devir. Não estará a verdade em devir, como nós, humanos?

Notas

(1) “Um texto é sempre uma mistura de lugares fechados e lugares abertos que o leitor deve preencher, quer por raciocínios mais ou menos tácitos, quer pelo recurso a mecanismos estabilizados da cultura (a enciclopédia de uma sociedade, o conjunto de estereótipos, as leituras anteriores, os géneros literários, musicais ou cinematográficos, etc.”), U. Eco, Lector in fabula, Bompiano, Milão, 1983, p. 51.

(2) Rastier distingue três acepções da palavra topos . A mais tradicional, desde a retórica de Aristóteles, é uma forma argumentativa estereotipada; foi retomada, com uma extensão menor, por alguns pragmaticistas. A segunda, que Rastier utilizou (1987), é um axioma normativo socializado (como Les gascons sont vantards ) que permite uma aferência. A terceira designa uma estrutura temática estereotipada, familiar em história da literatura: assim, o topos do locus amoenus.

(3) Cf. Jacques Bouveresse, Schmock ou le triomphe du journalisme. La grande bataille de Karl Kraus , Paris, Seuil, 2001, p. 99.

(4) L. Wittgenstein, Leçon sur les fondements des mathématiques , Cambridge, 1939.

(5) Anne Cauquelin, « L'Oeuvre et l'Outil à propos des images », in L. Sfez, G. Coutlée, Technologies et symboliques de la communication , PUG, 1990, p. 369. O processo de criação assenta menos na gestão de dados memorizados e ordenados segundo regras explícitas do que num saber não sabido, imerso nas profundidades duma memória que esquece aquilo que sabe. O regime do implícito, como o do evidente é um regime “dóxico”: não se sabe nem onde nem quando se aprendeu aquilo que exercitamos. As regras que seguimos na produção duma “obra” tomam existência no uso.

(6) Pierluigi Basso e Lúcia Corrain, Elogio del senso, Dialoghi semiotici per Paolo Fabbri, C osta & Nolan.

(7) Cf. Visão 13 Novembro 2003: 82. A invasão dos spin doctors (spin = fazer girar; “dar efeito a uma bola” para esta mudar de trajectória e enganar o adversário) transformou a política em puro marketing eleitoral. Aí estão os especialistas na arte das sondagens de opinião e da remodelação das imagens. Principal mandamento: a mensagem, nada mais do que a mensagem.

(8) Baudrillard fala do fim duma lógica natural da subjectividade e da troca, da dialéctica do um e do outro, da relação dual e da alteridade e da relação social em geral. A comunicação não é da ordem do falar, mas do fazer falar. A informação não é da ordem do saber mas do fazer-saber. Na publicidade ou na propaganda não se trata de crer mas de fazer-crer. A “boa” comunicação passa pela anulação do seu conteúdo. Passa pela transparência digital do saber. A boa publicidade passa pela nulidade do seu objecto (como a moda pela desincarnação e pela transparência da mulher e do corpo que ela revela). A questão não é que o conteúdo do discurso publicitário seja verdadeiro ou falso (não é nem um nem outro) mas que este discurso seja efectivo ou não, operacional ou não: entramos numa cultura da efectividade, dos efeitos de crença e dos efeitos especiais. O mesmo acontece à comunicação: o acento desloca-se dos problemas de fala, de substância da troca para os efeitos. “Se a comunicação deixasse de remeter para a mensagem mas para a promoção da comunicação como um mito?” (Baudrillard, “L'ère de la facticité”, in Technologies et symboliques de la communication , PUG, 1990, p. 38). Mudaram as funções estratégicas da grelha clássica da comunicação. Mudou a função mais simples, aquela que corresponde ao valor de uso da linguagem: emissor/mensagem/receptor; com MacLuhan o acento passa para o médium que absorve a mensagem, logo a função do código. Parece hoje que a função dominante é a função fática que assegurava na grelha antiga a continuidade da troca através de um feedback interno. É esta função que parece invadir o campo da comunicação e autonomizar-se como único objectivo O nuclear da comunicação já não é a mensagem mas o facto de comunicar: “comunique mais, viva mais”. A comunicação é o seu próprio referente, torna-se um jogo, socialidade vazia, empática, cool , patética mas indiferente, espectacular. Instantaneidade da comunicação, não já tribal ou oral, na base duma ausência total das pessoas umas às outras (na rede apenas há fluxos).

(9) “Penso (ou acredito) que outros pensem que outros se situam numa tal paisagem interpretativa”. Exemplo: “Penso que há Portugueses que pensam que há Portugueses racistas”.

(10) A doxa liberal procede a uma naturalização da economia que coloca as actividades económicas num conjunto instalado à parte da sociedade e que funciona segundo princípios específicos; a economia é antes de tudo uma construção do discurso economista que lhe confere a sua racionalidade.

(11) Breaking Through Stereotypes, Pal/ 15 min / 1994, Communication Studies on video.

(12) Pierre Legendre, Leçons III, Dieu au Miroir , Paris, Fayard, 1994, p. 267.

(13) M. Bal, Traveling Concepts , Univ. Toronto Press, 2003.

(14) Marcel Hénaf, Le Prix de la Vérité , Seuil, 2002, p. 16.

(15) M. Detienne, Les Maîtres de la vérité dans la grèce archaïque, Maspero, 1967.

(16) Barbara Cassin, L'effet Sophistique , Gallimard, 1995, p. 170.

(17) C. S. Peirce, CP 7, 54.

(18) Lucien Sfez, « La communication : d'une épistémè à la forme symbolique » in Technologies et symboliques de la communication , PUG 1990, p. 10.

(19) Arendt, La crise de la culture , Paris, Gallimard, 1972.

(20) Mário Vilela, Metáforas do Nosso Tempo , Coimbra, Almedina, 2002, p. 223.

(21) Ibidem , p. 223.

(22) Bruno Mazzara, Estereótipos y Prejuicios , Acento Editorial1999, p. 16.

(23) Ibidem , p. 225.

(24) Danielle Lories, Le sens commun et le jugement du phronimos. Aristote et les stoïciens , Louvain-la-Neuve, Peeters, 1998.

(25) Bachelard, La formation de l'esprit scientifique, Vrin, Paris, p. 16.

(26) Boaventura Santos, Um discurso sobre as ciências sociais , Porto, Afrontamento,1987.

(27) Hobsbawm and Ranger, 1983.

(28) Paul Ricoeur, Temps et récit III, p. 329.

(29) R. Jauss, A literatura como provocação , Vega, 1993, p. 71

(30) Lucian Blaga, L'Éon Dogmatique , Paris, L'Age d'Homme, 1988.

(31) Georges-Elia Sarfati, Q'est-ce qu'un texte canonique?” in L'autorité de l'Écriture , Paris, Cerf, 2002, p. 176.

(32) Ibidem  : p. 187.

(33) Ver a este propósito Juan José Tamayo, Adiós a la cristandad , Ediciones B, S.A., 2003, p. 174: « A santa intransigência gera um estilo dogmático e autoritário que dificulta o diálogo com pessoas de outras ideias e a abertura a cosmovisões distintas da própria. A santa coacção é a estratégia para conseguir novos adeptos e para controlar os membros da Obra (Opus Dei)”.

(34) François Zourabichvili, Deleuze. Une philosophie de l'événement , Paris, PUF, 1994, p. 97.

(35) Richard Dawkins, The Selfish Gene , Oxford - New York , Oxford Univ. Press, 1990.

(36) "A vibração constitui textualmente no corpo um órgão de certeza...que aponta para valores descontínuos e para progressivas alterações de sentido", p. 6.

(37) Boa parte da imprensa consiste em fazer falar as pessoas sobre aquilo de que deveriam ter a possibilidade de se calar.

(38) Jean-Jacques Leclerc, La violence du langage, Paris, puf, 1996.

(39) Maria Gabriela Llansol, O Senhor de Herbais , Relógio D'Água, 2002, p. 176.

(40) Ibidem , p. 188.

(41) Jean-Pierre Esquenazi, Sociologie des publics , Paris, La Découverte, 2003.

(42) Acheminement vers la parole, Paris, Gallimard, 1967.

(43) Cf. Expresso , 1.2.97 : «Os estereótipos dos portugueses».

(44) Massimo Cacciari, Icônes de la loi, Paris, Christian Bourgois, 1990, p. 85.

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