VIVER COM OS OUTROS (1)
Mateus Peres

1. Começo com uma confissão.
 
A reflexão que me foi pedida não era provavelmente esta. No quadro de um ciclo dedicado à Pluralidade dos Mundos, ou mais exactamente, ao mundo da crença no contexto da pluralidade dos mundos, foi-me sugerido que me inspirasse na Summa contra Gentiles, não tanto na obra em si, mas na intencionalidade que lhe é atribuída, desde que transposta para o nosso tempo e suas coordenadas culturais.

De modo algum seria capaz de o fazer, até por razões totalmente objectivas, como a vastidão do tema, mas julguei perceber que, depois de se terem abordado vários problemas de relação da crença, ou da fé, com a descrença, com a ciência, com a linguagem, com a realidade, etc., nesta última intervenção deveria ser tratada a relação dos crentes com os não-crentes: o mesmo problema, no fundo, mas entrevisto na sua componente humana de intersubjectividade.

As relações crentes/não-crentes são, porém, uma modalidade entre muitas - talvez com as cargas emotivas mais acentuadas e dramatizadas, pelo menos em certos contextos - da relação nós/ outros. Ora foi precisamente a esse aspecto genérico, e não ao específico, que a minha atenção se deixou prender. Em conclusão, será sobre a relação nós/outros e não da crente/não-crentes que esboçaremos algumas considerações.

2. Partamos dos factos, mais exactamente, da realidade da globalização e da multiplicação das exclusões. Parece irrecusável que a globalização, o facto da interdependência de tudo e todos, tanto no plano económico como do universo das comunicações, tão característico desta nossa época, na sua afirmação crescente, vem acompanhado da multiplicação das exclusões. Constata-se, com efeito, que a unificação do mundo em curso não se faz na paz e na concórdia, mas na exclusão activa e na agressividade. Somos cada vez uma grande família, é certo, mas uma família desavinda e em autêntica batalha campal. Objecta-se, por vezes, que esta é uma leitura demasiado superficial, ou para nos exprimirmos com mais rigor, que essa é uma leitura excessivamente à superfície e que, no fundo não é assim, pois são muito mais as coisas que nos unem do que as que nos separam. É possível que a objecção tenha uma grande dose de razão, mas aquilo que encontramos nessa superfície é de tal maneira avassalador e preocupante que legitima deixar em suspenso a hipótese de uma leitura mais abrangente e menos negativa da realidade. É de tal forma incontornável o facto dos genocídios, das guerras civis, dos fundamentalismos religiosos, do racismo, da violência de uma etnia, de uma facção, de uma crença, de uma raça contra outra, o que nos últimos vinte anos se tem vindo a passar na Irlanda, na Argélia, na Jugoslávia, em Angola, na Índia, no Sudão, na Indonésia e noutros lugares é tão horrível e de tais proporções que não parece possível pretender minorá-lo com outras abordagens.

De facto, em todos os casos apontados - e quantos mais não se poderiam acrescentar numa lista actualizada - verifica-se que um grupo humano, consciente da sua identidade, quer ela lha venha da raça ou da religião, da língua ou da cultura, combate contra os que considera exteriores a essa identidade e uma ameaça para ela. Será muito difícil, e no fundo nem interessa, saber em cada caso se a ameaça se concretiza ou se a luta começa por apenas se suspeitar que a ausência da nossa identidade nos outros é em si mesma perigosa. De todas as formas, tudo nasce sempre de não se conseguir gerir o confronto com a diferença. Numa palavra, a vida, neste final de século, aproxima irremediavelmente uns dos outros povos, grupos e pessoas, mas dessa aproximação dos diferentes resulta {irremediavelmente?) não a complementaridade e a entreajuda, mas a destruição. É a oposição destruidora de Nós aos Outros.

3. Fala-se por vezes das "linhas de fractura " (1) deste nosso mundo, globalmente unido é certo, mas mais do que nunca fragmentado e marcado pela violência. Essas linhas não seriam somente de tipo geográfico, mas também sociais, culturais, religiosas, económicas, entre Norte e Sul, entre Islão e Ocidente, entre países ricos e países pobres, entre grupos ricos e pobres nos países do Ocidente; linhas que separam os que detêm o poder dos que o não têm, das imensas massas que o não têm. Essas linhas de fractura são também elas muito frequentemente o palco da violência.

A imagem das fracturas tem necessariamente os seus limites. Pode sugerir, com efeito, que "antes" as coisas, a realidade social era una e que agora já o não é, porque precisamente se fraccionou. Como se "no princípio fosse o Uno" , como se a perfeição estivesse necessariamente nos primórdios... mas, depois, tivesse sobrevindo a quebra, a fracção. Há, com efeito, muitos que se inclinam sempre a pensar que a "idade de ouro" se deve situar nos primeiros momentos da História, ou até antes dela começar, e, que, a partir daí, o sentimento dominante deveria ser a "saudade" do paraíso perdido (2). Cremos, no entanto, mais conforme à visão cristã do tempo e da história, pensarmos em termos diferentes e até opostos.

No princípio era o Caos e, se alguma idade de ouro houver, será mais fácil admiti-Ia no termo da caminhada histórica da humanidade. Sim, porque para quem crê que a Páscoa de Cristo derrama a sua luz e sentido sobre a história dos homens (3), a sua vida colectiva não pode ser considerada uma mera "história contada por um louco, cheia de som e fúria, e sem qualquer sentido" (4). A história tem sentido, diz-nos a esperança cristã, e a luz pascal, há pouco invocada, actua como garante de um desenlace luminoso e positivo.

Pomos, pois, de lado, a leitura catastrófica em que mesmo os cristãos tantas vezes se exprimem e, segundo a qual, tudo começou perfeitamente e a partir daí tem vindo a desagregar-se, numa progressão geométrica, acentuadamente marcada pela violência.

Também não nos parece possível que a esperança cristã nos imponha uma visão optimista e desdramatizada da realidade social e histórica: o futuro, sobretudo o futuro trans-histórico, pode e deve ser glorioso, mas isso de forma alguma significa que o presente seja menos problemático e angustiante do que a alusão feita no início destas linhas à violência desabrida, generalizada e constante, à guerra aberta de nós contra os outros, pretendia comunicar.

O que realmente se passa parece ser o facto da crescente aproximação de pessoas, grupos e povos, característica destas últimas décadas e que resulta da explosão demográfica, do aumento das relações, do crescimento da concorrência e da competição a tantos níveis; é esta aproximação, multiplicada e intensificada, que desperta e provoca a agressividade. Como dois lutadores que o gong faz abandonar o seu canto do ring e atira um contra o outro, assim os povos e os grupos aproximam-se uns dos outros para começar ou intensificar a luta. Foi sempre um pouco assim.

Sempre se conheceram rivalidades de aldeia a aldeia, surgidas de proximidades locais ou antagonismos de classe, rivalidades que puderam ser canalizadas para a competitividade desportiva, onde se conseguiram minimamente sublimar. Na base de tudo isto está a percepção de que o mundo se divide em «nós», que somos os bons, porque somos nós e os «outros», que são os maus porque não são nós, porque precisamente são outros.

Aliás, definir a pobreza em termos de exclusão, como se tende hoje a fazer, vem corroborar a mesma ideia. Os pobres - e não esqueçamos que a pobreza dos pobres aumenta significativamente em todo o mundo - são os excluídos, aqueles que são postos fora do acesso aos bens materiais, de alimentação e saúde, como aos bens culturais, políticos, etc. Há os que não sendo como nós, são outros e, portanto, objecto de agressividade e há os que, tendo tudo para serem tratados como dos nossos, menos os bens, não sendo tratados como nós, acabam por ser outros...Cabe aqui mencionar, como pertinente, a negação dos outros enquanto tais, a negação do facto da alteridade, a partir do exercício do poder, tanto social como político ou ideológico, tanto da parte do Estado como da Igreja, e que se traduz no imperialismo, na tentativa de redução unificadora, no desrepeito das minorias e que se insere, como detonador, na chamada espiral da violência. Por outras palavras, a agressividade tanto parte de uma suposta defesa da nossa identidade (cultural) como da defesa dos nossos interesses materiais, sendo qualquer das explicações, se exclusiva, manifestamente insuficiente.

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