CIÊNCIAS E CRENÇAS (1)
Ana Luísa Janeira

 
Preparar o século XXI. em termos de ciências e crenças, implica, como em tantos outros casos, rever criticamente paradigmas e modelos
iniciados no século XV
padronizados no século XVIII
e continuados seguidamente
numa cadeia de mal-entendidos ou falácias
de que somos um elo.


CONFIGURAÇÕES EPISTÉMICAS
OUVIR E LER

Desde a Idade Média predominou um saber motivado pela expectância e uma transmissão centrada no ouvir. A acção de comentar e o produto resultante, o comentário, estavam juntos, sempre que se tratava de realizar a logística de querelas teológicas ou de disputatios universitárias. O pregador e o professor tendiam a controlar o que outros poderiam ouvir e ler. cabendo às autoridades religiosas e pedagógicas a função de propor aos demais o ob-audire. Se ler correspondia a captar sintaxes e intepretar semânticas escondidas, se o contemplar propunha a acção, as analogias, circuitos de semelhança entre visível e invisível, estavam para o cosmos, como as metáforas para o discurso textual. As homologias de essência especulativa abusavam do somatório de epítetos, seriação infinita de significantes articulada pela supremacia da escrita.

Contudo, a interpretação podia enfermar, por vezes, de conivências supérfluas e menos experienciadas. A multiplicação de hipérboles e redundâncias, a proliferação de metonímias e imagens eram figuras recorrentes do sistema, intervindo como elementos fundamentais de uma táctica, enquanto formas de poder e formas de poder no estilo. Táctica ao serviço de um programa que tinha como finalidade última uma moral espartilhada: apesar de diferenciarem a palestra académica da pregação, ambas eram meios auxiliares das tabelas de valores, visando comportamentos sociais precisos e condutas estipuladas. A argumentação, entendida como modo de despique intelectual e demonstração, baseava-se no mesmo espírito: urge treinar a mente para assentir e é preciso debater para julgar o bem fundado de uma tese. A arma verbal, o processo retórico e o testemunho dos clássicos integravam-se em ritos, onde a transmissão do saber apelava para a omnipresença de autoridades.

Veiculado por argumentos, o saber estava ao serviço de uma lógica mantida por imperativos de adequação entre sujeito e objecto.

 

OLHAR E VER

 

O humanismo renascentista começa a separar o ler = comentar controlado do ler = interpretar marcas incontroláveis. Nessa altura, o princípio da semelhança permitia uma estrutura cognitiva entre idênticos: justaposição de simpatias e antipatias, proximidades topológicas, parentescos nos efeitos.

O jogo gnosiológico começa a abrir-se: o ouvir e o ler, pertencentes a uma configuração de natureza empírica, vão permitir, através de uma organização menos intimista, discursos envolvendo uma fonte de conhecimentos baseada no olhar e ver. Apesar de terem em comum o facto de estarem associados ao empírico, o ouvir-ler pressupõe uma receptividade dogmatizada em face das autoridades, incluindo a tradição clássica, ao passo que o olhar-ver comporta uma percepção imediata do mundo sensível. Embora diferentes, porquanto este último faz actuar canais cognitivos orientados para a realidade exterior e envolvente, ambos fazem parte do mesmo sistema, pois são regulados por princípios aproximados e implicam-se mutuamente, como termos da relação espontânea, imediata, sensorial e perceptiva.

Com as Descobertas, surgiu o primeiro grande confronto com as geografias longínquas, os povos misteriosos, os costumes estranhos, as faunas exóticas e as floras desmesuradas. Insuspeitadas sensações e secretas vivências que o próprio poder político aproveita e maneja com acerto, como quando Dom Manuel maravilha a Europa, mandando animais, nunca vistos, na sua célebre Embaixada ao Papa. O vivido provoca uma disponibilidade completamente i(nova)dora, onde se nega o ensinado ou aprendido nos livros, por estarem os olhos a descobrir, sem rodeios, o outro e o diferente: "E digam lá os sábios da Escritura que segredos são estes da Natura» !!! Navegantes, naturalistas, missionários, viajantes e feitores questionam manuais e autor(idad)es, com base no que vêem: «0 saber de experiência feito». Experiência, anote-se. Quase nunca ou raríssima experimentação. Quando voltam ao país de origem, os portugueses não tentam, ou se tentam desesperam, combater o poder instituído e o saber universitário, em prol da mudança. A Reforma Pombalina só virá muito tarde e a más horas (1772). Isso não significa que não passe por aqui, indiscutivelmente, o maior e mais surpreendente contributo ibérico, no sentido de criar condições necessárias à emergência das ciências modernas, por meio de gestos contra o saber livresco. Depois, outros começam a manifestar interesse pela obra cartesiana, mais pela Meta física do que pela Física: a evidência, sustentada por regras, serve para apoiar demonstrações dedutivas válidas; a dúvida metódica é vencida pela intuição clara e distinta, o e-video. Logo, é preciso saber distinguir e descriminar. Se essa manifestação significa um repúdio do aristotelismo, mundo sensual, quotidiano e de qualidades ocultas, não deixa de vir mesclada com muitos equívocos e hesitações, a tal ponto que continua a cohabitar com teses do pensamento adversário, mesmo sem dar conta das distâncias.

Paralelamente, começam a aparecer prenúncios do desejo de nomear e ordenar através de quadros, visando uma realidade capaz de ser descrita, figurada e comparada. A urgência de encontrar nome adequado para os seres vivos, a necessidade de identificar as propriedades curativas dos medicamentos, o imperativo de perceber como é o mundo natural, quotidiano ou exótico, supõem um olhar atento e prevenido, ou seja, o ver. A situação é sentida como nova.

Alguns principiam a dar-se conta de quanto esta atitude exige mecanismos de mudança. Vão socorrer-se das assembleias académicas como espaços propícios a saberes norteados, não pela capacidade especulativa de cada um, como acontecia desde os Antigos, mas nas potencialidades da razão, como é próprio dos Modernos. Neste sentido, o «olhar orientado» vai distanciar-se do «simples olhar», pois passa a reunir categorias de representação do visível, onde o movimento opera segundo um pensamento propenso para a observação e dirigido para as «semio-logias». O que requer actividades imperativamente sistemáticas, encenadas por teatros anatómicos, precisando de bom equipamento. Não se suponha, porém, que esta intenção de disponibilidade equivale a qualquer tipo de observação tecnicamente controlada, mas mais a um simples contentar-se com uma atitude propensa ao olhar, contentar-se com o que se olha, já por si, uma novidade.



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