A EXPERIÊNCIA NO INTERIOR DE SI
JORGE LEANDRO ROSA


..CADERNOS DO ISTA


O que é a experiência? há uma experiência que eu possa dizer «minha», ou «vossa», ou «nossa»? Pode ela ser tomada como um fenómeno distinto desse fragmento que cada um de nós é ou manifesta como presença-no-mundo, qualquer coisa que adquire uma legitimidade em si mesma, quer seja porque emana de mim, ou de um outro? E pode, sobretudo, a experiência adquirir o seu fio histórico, a linha da sua «ascensão e queda», como se diz no título deste nosso encontro? Se, por um lado, a experiência de cada um sempre esteve dependente de molduras culturais, religiosas, estéticas ou simplesmente quotidianas, por outro, ela sempre foi aquilo que, sendo irredutível a esse enquadramento, inventa uma fluidez própria. O que aqui desejo referir, de um modo necessariamente breve, centra-se na ideia de que a experiência possui um núcleo, raramente aparente, mas decisivo, cuja compreensão só será acessível em determinadas circunstâncias extremas. Esse caroço da experiência, que não é caracterizável a partir dessa circunstância, pode levar a experiência à impropriedade mais extrema.

2. Um conceito que se esvai

Recentemente, deparei com um cartaz que anunciava uma conferência sobre a «experiência da quase morte». Senti que estavam definidas as palavras que poderia proferir aqui hoje. Descansem, no entanto, porque não tenciono propor qualquer gnose da transição entre a vida e a morte. Não conheço as passagens e delas só poderia dizer o que qualquer um de nós diria, apoiado por algum paradigma do pensamento, por qualquer convicção íntima.

Na verdade, o que aqui mais me interessa é o quase referido nesse cartaz. Não a «quase morte» que parece prometer uma espreitadela para o outro lado, anseio por uma suspensão do que é indizível e inexperenciável nessa passagem, abrindo aí uma continuidade da experiência, uma auto-estrada da experiência, a experiência em «banda larga» capaz de a tudo aceder e de tudo expressar. Interessa-me, pelo contrário, o que, na fórmula «quase morte» revela a aporia da experiência moderna. Com efeito, este «quase» é gigantesco, ocupa toda a percepção da experiência na modernidade indefinida em que nos situamos.

Essa dignidade discursiva e espiritual do quase foi sempre sinal da condenação e da desorientação. Há aí uma formulação que seria inquietante numa cultura pré-moderna: seria a evocação do fantasma, da aparição espectral, da errância e da não-pertença. Não para nós, modernos tardios, que perdemos os discurso constitucional que reparte os poderes da vida e da morte, da cidade e do mundo, e que os vamos delimitando e adaptando por legislação avulsa. Para os antigos, pelo contrário, a única zona cinzenta da experiência era o exílio, a proibição da coabitação no Império. Mas mesmo a figura do Exilado não deixava de ter uma origem, um solo. O exilado desdobra-se, aliás, na figura do Peregrino, aquele que deixa uma terra a fim de seguir uma voz. Em qualquer das suas formas, as figuras clássicas que vivem a experiência do abandono de um campo de referenciação não deixam de dar um testemunho, quer da origem, quer do telos.

Afirma um autor que muito prezo, Massimo Cacciari, que «a história deste século (aquele que começou verdadeiramente em 1914) é a história do fim progressivo de todo o espaço de coabitação» (1). Acrescento que será, certamente, o século das contiguidades, onde os povos e os indivíduos já não coabitam, o que implica o reconhecer uma identidade do espaço, mas estão junto ao outro e só assim permanecem porque a experiência moderna já não provém do modelo fornecido pelo Estado-Nação. A experiência deve hoje contar com o fenómeno da sua concentração. Toda a experiência é vizinha de uma outra, mas não há uma geografia que possa articulá-las ou sequer colocá-las em diálogo (é falso, por exemplo, que Lisboa se esteja a tornar numa cidade cosmopolita, já que o cosmopolitismo implica que se seja, simultaneamente, habitante e exilado).

Falar da experiência sem necessidade de imediatamente a adjectivarmos e delimitarmos é uma possibilidade reservada aos modernos. Aparentemente, esse continuum da experiência, ao dissolver as antigas barreiras entre a experiência do amor e da morte, da transcendência e da carne, do jogo e da razão, da língua poética e da língua quotidiana, do próprio e do estranho, etc, alarga o domínio de cada uma das formas da experiência. No entanto, essas barreiras sempre estiveram aí para serem transpostas, foram sempre desafio à reinvenção de cada polaridade da experiência. O que é novo na experiência moderna não reside na transgressão dos seus limites sociais, gnosiológicos ou morais, mas antes na impossibilidade de dar testemunho, quer da experiência, quer da sua transgressão. Pergunto então: porque é que o testemunho é impossível? Porque é que já não há tempo para o testemunho? Estabelecer um caminho directo entre o amor e a morte, a filosofia e a banalidade, o eu e o tu, significa, não já modificar a natureza da experiência, mas sim tornar irrisória a sua compreensão. Só a transição importa.

Experimentamos ainda a vida, mas não já porque ela tenha contornos claros ou porque seja uma nesga de terreno fértil na imensidade caótica e elementar dos elementos ou sequer porque seja prefiguração de uma outra vida. É que o limite da vida, o seu bordo intransponível se tornou, progressivamente, limite ao alcance dos navios dos que estão dentro dela, limite terrível e talvez catastrófico, mas eminentemente representável e necessário. Limite que se desloca no próprio gesto da experiência. A experiência da vida tardomoderna é semelhante à experiência pré-ptolomaica, é uma experiência que volta a mitificar os limites da terra da experiência, recusando-se a perceber o seu confinamento numa esfera finita e, consequentemente, podendo projectar aí uma geografia de que seremos sempre, enquanto sujeitos da experiência, ponto cardeal. No nosso caso, ponto cardeal em órbita. O direito que a modernidade nos legou, o direito de experimentar sem limites a própria vida, é irreversível. Mas será preciso que tenhamos consciência do seu reverso: que é o mundo, a casa, que se esvai nesse processo de experimentação até à fractura.

Falo da experiência, eu que sou parte da deriva moderna, como se ela estivesse sempre perante a iminência de se libertar de qualquer caracterização, de qualquer fixação de um ponto de vista: já não experiência religiosa ou quase experiência do religioso ou ainda experiência da quase religião. Num outro plano, diria também: já não experiência política ou quase experiência do político ou ainda experiência do quase político. Poderíamos prosseguir com os exemplos, o que só comprova que há uma qualidade intransitiva e inqualificável da experiência que subsiste hoje para além da sua categorização. A experiência existe porque se move e porque essa deslocação se dá na aceleração, como já o disseram, noutros termos, autores como Paul Virilio. Neste, a experiência é uma poluição dromosférica, poluição da velocidade, que tudo atinge na sua metáfora gasosa.

Quero, no entanto, regressar a um questionamento anterior ao diagnóstico de Virilio. Pretendo aqui saber porque é que continuo a acelerar a minha experiência, mesmo sabendo que, assim, ela se torna irreconhecível ou que, ultrapassado pela experiência, ultrapassando a experiência, não coincidindo exactamente com a experiência, nunca reconhecerei nenhuma experiência como minha ou de um outro. Porque é que a experiência moderna parece ter entrado numa entropia em tudo similar à cosmológica, onde todos os corpos, viajando embora, se dirigem para o não-encontro. Onde toda a viagem perde os pontos de referência fixos que a fazem viagem. Estas perguntas não têm resposta a partir do interior da experiência, mas também não poderão ser formuladas se dela tentamos sair. Esse é o paradoxo da experiência.

O que se passa é muito mais da ordem da desafeição, de uma separação que, longe de ser motivada por uma mudança de objecto e de afeição, se forma antes no «deixar ser das coisas» enquanto trajectórias que não são, em absoluto, coincidentes com as nossas. O desprendimento é um movimento que encontra em si mesmo a sua justificação. É certo que, durante muito tempo, houve um discurso do desprendimento, uma pregação do desprendimento que o dava como sinal de um apego superior. Ora, hoje, é curioso verificar como quase desapareceu o discurso do desapego. Quando ele resurge, há como que um efeito de estranheza que o envolve. Não que o desapego tenha desaparecido do nosso horizonte espiritual ou que ele seja desnecessário ou sequer impróprio à nossa época. Não. A estranheza que nos assalta perante todo o convite ao desapego (talvez não para as pessoas desta casa!) vem talvez do facto de todos vivermos já em desprendimento perante a experiência. Este desprendimento não necessita, então, de um convite, não precisa de ser pronunciado na homilia para que tenhamos uma percepção da sua acção ou da sua necessidade. É um desprendimento «mundanizado», se assim o posso dizer, um desprendimento integrado no solo da experiência e não na sua cúspide. Há, no entanto, testemunhos pré-modernos de um convite à experiência nua.

Vou ter um grande atrevimento. Um atrevimento tanto mais abusivo quanto é proferido nesta casa da Ordem de S. Domingos. Quero ler-vos dois fragmentos de Mestre Eckhart, um autor a que regresso há muitos anos desde que o descobri na tradução de Jeanne Ancelet-Hustache (noto aqui que seria importante termos uma tradução portuguesa). Lê-lo-ei com os olhos do leigo em teologia, ignorante do alto alemão em que Eckart se exprime. Traduzo livremente da versão francesa, mais recente, de Gwendoline Jarczyk. Trata-se do Tratado Sobre o Desapego e os seus termos exprimem maravilhosamente o que quero dizer sobre a experiência. Note-se particularmente o termo «desapego», Abgeschiedenheit, que Eckhart desvia da sua estrutura negativa - «partir», «separar-se de» - para o transformar em eixo do campo semântico do que repousa em si, um «desapego imóvel», segundo as suas próprias palavras. Nesta passagem, Eckhart não fala do silenciamento da experiência, mas antes do silêncio que habita a experiência. Esta posição é tanto mais notável quanto me parece que ele não faz depender a presença desse silêncio da qualidade volitiva dessa experiência.

«Os doutores louvam grandemente o amor e assim o faz S. Paulo, que diz: seja qual for a tarefa que me retém, se não tenho o amor nada sou. Pela minha parte louvo o desapego antes de todo o amor. Antes do mais, pela razão de que o melhor que há no amor é que ele me leva a amar Deus, enquanto que o desapego constrange Deus a amar-me. Ora, é bem mais nobre que eu constranja Deus a mim do que obrigar-me eu a Deus. Tal sucede porque Deus pode ligar-se a mim muito melhor e mais intimamente do que eu poderei fazê-lo relativamente a Deus. Que o desapego constrange Deus em minha direcção provo-o do seguinte modo: toda a coisa ocupa o seu lugar próprio natural. Ora se o lugar próprio natural de Deus é unidade e limpidez, tal só possível pelo desprendimento. Por esta razão, Deus deve dar-se a si mesmo um coração desapegado [...].»

«Assim, tu deves saber que Deus conservou-se neste desapego imóvel em toda a eternidade e aí se conserva ainda. E tu deves também saber: quando Deus criou o céu e a terra e toda a criatura, isso afectou tão pouco o seu desapego imóvel, que pareceria que nenhuma criatura tinha sido criada. Afirmo ainda: perante toda a oração e boa obra que o homem pode realizar no tempo, o desapego de Deus é tão pouco tocado, que pareceria que nenhuma obra ou oração se manifestou no tempo» (2).

Termino aqui a citação, sublinhando que seria necessário ler o Tratado na sua integralidade e no contexto dos outros tratados e sermões para podermos apreciar toda a subtileza do pensamento de Eckhart. Nada aqui há de estoicismo, de mortificação desejada ou ordenada por Deus, que esvazie a criatura da sua onticidade. Mas também não há, paralelamente, necessidade desta ir em busca de si nalgum outro lugar porque onde quer que ela esteja, está sempre afectada por um vazio. Encontramos, sim, o tema, recorrente em Eckhart, da negatividade interna do ser divino. Este não pode ser pensado, nem como ser afectado pela incompletude, nem como ser positivamente caracterizável. Ora, se considerarmos que neste pensamento opera uma visão da criatura como signo do ser que é Deus, concluiremos que essa criatura assume o estatuto paradoxal de um ser e de um nada. Como ser, nada lhe falta, é o que é; como nada, nunca pode ser plenamente identificada ou lembrada. Nunca poderá, sobretudo, ter outra acção que não aquela do esvaziamento. Há como que dois abismos, um em Deus e outro na criatura, que apelam um ao outro, constituindo o único plano ontológico de um reconhecimento mútuo. Lanço a hipótese de toda a experiência ser atravessada, em Eckhart, pelo traço da sua consumação, consumação que a criatura não pode fazer discurso porque a sua única testemunha, Deus, já testemunhou antecipadamente e esse testemunho abre o testemunho da criatura como abismo. Nenhum testemunho pode emanar da abissalidade de Deus como simples relato de acontecimentos. A união da criatura e de Deus é um evento sem testemunha, no sentido do relator que assume a posição intermédia entre a sua experiência e a narrativa. Aí, só poderá existir uma testemunha paradoxal que está, simultaneamente, no interior e no exterior da experiência porque, por um lado, a verdade do testemunho deve ser interior à sua ocorrência e, por outro, o testemunho é um movimento de distanciação vivida da experiência. Esta dupla posição lança a experiência no apofatismo.

Estas teses, de que apenas esbocei grosseiramente uma descrição, têm sete séculos, mas só no nosso tempo adquirirem uma evidência para além do debate teológico que sobre elas lançou a suspeita de heresia. Essa visibilidade parece-me residir, precisamente, na negatividade que afecta a experiência contemporânea, agora que, pela primeira vez, há acontecimentos empíricos que têm o poder, não de inflectir o rumo da nossa experiência, o seu modelo (e Eckhart tem, obviamente, um modelo onto-teológico para o seu discurso), mas antes de pôr a própria ideia da experiência humana em causa, o poder de lançar a experiência no seu fundo vazio. Foi o caso, bem conhecido, de Adorno, quando proclamou a impossibilidade da poesia e da cultura após Auschwitz. Não sei se o Holocausto foi a linha de separação histórica que Adorno pretendia, mas perante ele apercebemo-nos claramente de que a experiência pode implodir, dela só ficando duas questões lancinantes: a pura questão do evento - «como compreender que isso tenha sido possível?» - e a questão do testemunho - «como dar testemunho de uma experiência absoluta no seu horror?». Quero ainda regressar a esta questão, mas permitam-me algumas observações sobre a imprecisão inerente à definição da experiência.

Falar da experiência é um perigo e um convite ao despojamento. Onde está o perigo? Não nas próprias transformações da experiência, na sua diferença geográfico-cultural, na sua diferença linguístico-hermenêutica, no sistema de signos que a expõe, na caracterização mágica do seu universo, intuitiva ou teológica, filosófica ou empírico-dedutiva, militar ou lúdica, natural ou técnica. Se entendermos que a experiência é algo que se transforma historica e culturalmente, mas que nada na experiência dos homens na Palestina do tempo de Cristo ou no séc. XIV chinês é essencialmente estranho à nossa experiência, então teremos sempre esperança de reviver ou de ultrapassar essas formas da experiência. Digo reviver ou ultrapassar porque me parece que, a este nível da reflexão, pouco importa que nos coloquemos num ponto de vista tradicionalista ou vanguardista. Trata-se sempre de aí estabelecer um contacto com o outro histórico, que neste mundo foi atravessado ou encontrou um estado ou um gesto ou um discurso, embora dessa experiência in illo tempore só tenhamos, paradoxalmente, alguns efeitos indirectos, um rasto. Dessa experiência só possuímos os despojos que nos confortam na veneração ou no desgosto. Poderíamos, então, concluir que são o mundo e o tempo que devoram a experiência dos homens, que as esculpem, dela nos legando as «ossadas», a sua memoralia.

Essa conclusão parece-me apressada e equívoca: a experiência só é possível porque ela se faz mundo e, fazendo-se mundo, o seu sujeito ou a sua testemunha são lhe tornam estranhos, enquanto a sua forma se contrai ainda mais e nos pomos a duvidar se alguma vez ela ocorreu nalgum lugar. A experiência é uma de-formação do mundo, não uma con-formação ao mundo. A experiência é um curto-circuito no mundo, um evento que arde na sua própria aparição e de apenas podemos testemunhar o traço calcinado. Neste sentido, a experiência é intransmissível. Embora possa ser inquirida e reconstituída, a experiência aprisiona as suas verdadeiras testemunhas.

Ora, paralelamente, há um testemunho vivo dessa experiência remota: a nossa própria experiência, que não é testemunha directa de nada, que é absolutamente nova, mas também antiquíssima. Se deixasse de ser paradoxal, a experiência seria certamente inumana. Este é também o paradoxo central do nosso tempo: que, quando tudo se submete a uma epistemologia da transmissão e da comunicação, começamos a saber que só a experiência, na nudez da iminência da sua formulação, não é transmissível, não pode passar nas auto-estradas da informação. São, então, os testemunhos da experiência que aí circulam e que já não dependem da geografia do mundo. E quanto mais circulam, quanto mais instantânea é a resposta de um testemunho a outro, mais sós com a experiência ficam os homens, dado que os discursos da experiência adquirem a sua própria órbita, a sua própria densidade ôntica. Ficam os homens na extremidade de uma rede onde circula a representação de si, o ícone que o representa no ecrã e que fala com palavras minhas, mas também de outros. É esse o verdadeiro fim do humanismo: que o lugar humano da experiência se desertifica através de uma ascese nova, tão distante formalmente e, contudo, tão próxima daquela praticada pelos Pais do deserto, pelo estilista. Em vez do confinamento do logos e do seu devir silêncio, esta ascese opera através do crescimento exponencial das combinatórias do discurso no interir de um dispositivo técnico capaz de as dinamizar infinitamente. Pela primeira vez, todos temos a possibilidade de praticar o desapego eckhartiano. Todos começamos a sentir que as nossas ideias e esquematismos interiores se libertam da sua fixação em nós, sendo, como são, cada vez mais leves, aéreas e imponderáveis, e delas nos tornamos espectadores.Purificada da sua voz, a minha experiência começa a ser também a experiência de um outro. Não porque o outro, usurpando a minha posição de sujeito, me possua e fale pela minha boca. É antes a sua impossibilidade de falar, a sua distância, que em mim encontra uma presença no mundo.

Esse será, aliás, o sentido final do mundo moderno: não o poder de todos serem, alternadamente, poder, poder democrático que se manifesta na Ágora e que dela emana na legitimidade das representações, mas antes o rumor produzido por todos, rumor que atravessa e congrega o passado, o presente e o futuro. É uma só voz, mas irreconhecível e inatribuível, um Deus irreconhecível como o Deus de Eckhart.

A experiência caracteriza-se pela sua tensão interna, pela ferida que, simultaneamente, a abre a nós, qualquer que seja o seu tempo e o seu espaço, mas também a distância irremediavelmente na sua formulação irrepetível e para sempre perdida. Perigo porque, por um lado, nos arriscamos a confundi-la com uma sequenciação de lugares comuns narrativos, de «vidas exemplares» como se dizia num passado recente, quando a ideia de uma vida exemplar era ainda verosímil. Mas, por outro lado, perigo também porque podemos ser tentados a descarnar e a emoldurar esse frémito vital que presinto presente no íntimo da experiência. A experiência não existe para lá nem aquém. Se algo posso desde já dizer é que a experiência me parece ser sempre exposição ao perigo de ser experiência. Não se dá o perigo de nela cairmos como num abismo porque este será, desde logo, inerente à experiência. Perigo, sim, de não haver testemunho que possa chegar cá a cima, à boca da fenda num solo que só imaginamos. Mesmo terminada, o seu perigo age. Diria simplesmente perigo do «ser» se o termo não estivesse tão contaminado e se não exigisse, a fim de ser usado, um longo desvio pelas questões da ontologia. Num tempo em que toda a experiência é possível, a sua expressão desloca-se do domínio do metadiscurso, que nos obrigaria a estabeler a distinção entre o possível e o impossível, para a zona de uma possibilidade sem o limite de qualquer interdito.

3. A Experiência mais in-significante

Tomemos um outro caminho. Queria, para terminar, tecer algumas considerações a propósito de um texto de Giorgio Agamben, Quel che resta di Auschwitz. É um dos livros menos discutidos do autor da Vida Nua. O título, lapidar, resume a nossa indagação da experiência nua. O que resta é uma experiência cujo testemunho é simultaneamente impossível e necessário. Há, a este propósito, um longo debate sobre o carácter indizível da experiência dos que estiveram em Auschwitz. Alguns dizem que só o silêncio pode ser reflexão digna do horror aí vivido. Outros pensam que é necessário recusar essa adoração eufemística do horror e que devemos «olhar o inenarrável» (3). Ambas as posições me parecem justas dado que ambos são testemunhos impossíveis. Como escreve Agamben, «o testemunho é o encontro entre duas impossibilidades de testemunhar. A língua, para testemunhar, deve ceder o lugar a uma não língua, deve mostrar a impossibilidade de testemunhar. A língua do testemunho é uma língua que já não significa, mas que, através do seu não-significar, penetra no que é sem língua, até recolher uma outra insignificância, a do testemunho integral, que cabe àquele que, por definição, não pode testemunhar» (4).

De alguma forma forma, a experiência de Auschwitz, que não pode ser comparada com nenhuma outra na sua ordem de grandeza do horror, estabelece um modelo para a insignificância das nossas experiências tardomodernas. A sua verdadeira escala é a da in-significância, termo que uso num sentido oposto ao dos revisionistas. Estes não sabem que a língua da experiência ruiu, eles que tentam ainda apagar uma certa experiência do mundo como se ela não fosse já esse vazio aberto no lugar da sua ocorrência. Há, então, um modelo negativo da experiência que é necessário que nos assombre. Perante a in-significância da experiência, o risco é, não o desastre que ela possa trazer ao mundo, mas antes a sua não-ocorrência ou a sua pura ocorrência imagética.

A partir dos livros de Primo Levi, não-escritor sobrevivente do Holocausto, Agamben analisa a angústia do testemunho naqueles que viveram a experiência do campo. Desde logo, notamos um traço que aproxima o campo de concentração da experiência na modernidade tardia: «o campo é o lugar onde toda a distinção entre o próprio e o impróprio, entre a possibilidade e a impossibilidade, se apaga radicalmente» (5). A diferença relativamente à nossa experiência é também incomensurável: fora do campo havia uma vontade política que estabelecia essas distinções e nelas fundava o indistinto a que a experiência concentracionária estava votada. Vejamos, no entanto, o que se passa com os que estão no campo e tudo ignoram dessa determinação exterior: Primo Levi, que esteve sempre na posse dos seus meios intelectuais, nunca considerará cumprido o seu testemunho. Sabemos que o suicídio foi o destino de muitos dos que procuraram dar testemunho. Nunca os textos se transformavam no testemunho. Havia no entanto um outro tipo de prisioneiros no campo, aquele que era conhecido no calão do campo como der muselmann, o muçulmano (correm diversas versões sobre a origem do termo, especulações que de alguma forma poderiam vir de encontro a acontecimentos actuais). Os «muçulmanos» eram aqueles que tinham perdido todas as forças e toda a identidade, os mortos-vivos que vagueavam pelo campo e que eram absolutamente inúteis ao próprio sistema do campo. O «muçulmano» era o fantasma do sistema concentracionário, em geral incapaz de articular palavras coerentes. Alguns, muito poucos, sobreviveram. Só hoje a historiografia dos campos começa a ocupar-se deles. E qual é a relação do «muçulmano» com a questão do testemunho? É que ele é o único prisioneiro que fez a viagem até ao fim, até ao ponto onde morte e vida são indiferentes. O «muçulmano» é aquele que sobrevive, quer dizer, que nem vive nem morre. Ora, a autoridade do seu testemunho, caso este pudesse ter lugar, seria proveniente, precisamente, dessa incapacidade de dizer. Essa incapacidade tem um poder testemunhal que lhe vem da própria aniquilação do «ser testemunha», como seria o homem de letras ou o intelectual que consegue atravessar o Holocausto e permanecer o que é. Nesta perspectiva, permanecer quer dizer que não se teve a experiência da indiferenciação, a única experiência própria ao interior do campo.

Como falaria o «muçulmano», já que ele fala a partir da indiferenciação? Não usando as nossas línguas, que são ainda hierarquização e categorização. A hipótese de Agamben parece-me plausível e talvez possamos ampliá-la: ele falaria usando uma língua morta. Uma língua morta é aquela que, não sendo já falada na cidade, não permite determinar a posição do sujeito de enunciação. Aquele que a fala fá-lo a partir da perda da referência de si.

Estamos, nós os modernos, ressalvando o horror absoluto da sua situação, numa posição linguística próxima da do «muçulmano»? Mesmo irrisórias, as nossas experiências deixaram de ter sustentação numa ordem das experiências, essa ordem de onde ainda provêm as línguas vivas que aqui falamos. Entramos, pouco a pouco, mas com rumo certo, na era dos eventos sem testemunhas, porque as testemunhas que podem interpelar a nossa experiência são, precisamente, aquelas que a contaminam com uma outra experiência diferente da nossa. Ora, a experiência que o dispositivo técnico parece hoje privilegiar é aquela que opera a partir de uma operação de filtragem, de um «tradutor automático», termo informático que tem aqui uma aplicação que vai muito para além da acepção linguística. Posso interagir com todos, mas essa interacção depende, cada vez mais, de linguagens universais (cibernéticas e virtuais) que me colocam numa posição próxima do falante de uma língua morta. E num mundo onde, como nos dizem os ciberentusiastas, todas as culturas se podem cruzar, espero bem que esse cruzamento não seja semelhante àquele que também ocorria à entrada do Campo: judeus askhenazys e judeus sefarditas, ciganos e opositores, era a concentração das heterogeneidades que definia e alimentava o campo, zona do bio-poder, e não a homogeneidade ariana, que pertencia ao mundo exterior, ainda na esfera do poder soberano.

A nossa cultura está integralmente orientada para a exploração do campo da experiência. Toda a experiência é possível e a única justificação dessa possibilidade parece ser o facto de estarmos vivos. Vivos, mas não apenas como homens, bios, antes como zoé, material biológico que pode ser desdobrado. É ao nível do testemunho da experiência que o interdito age ainda: é quase impossível testemunhar a experiência quando esta já não se sustenta na minha humanidade. Mas será neste quase que poderemos preservar o testemunho como prática de resistência.

Jorge Leandro Rosa
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NOTAS

(1) CACCIARI, «La Paradoja del Estranjero» in Archipiélago, 26-27, Barcelona, 1996, p. 17.
(2) ECKHART, Du Détachement et autres textes, Paris, Rivages, 1999, pp. 50 e 56-57.
(3) AGAMBEN, Quel chi resta di Auschwitz, Paris, Rivages, p. 40.
(4) AGAMBEN, Ibid, p. 48.
(5) AGAMBEN, Ibid., p. 97.