JOSÉ EDUARDO FRANCO
DUAS UTOPIAS EM CONFRONTO:
A HISTÓRIA DE PORTUGAL DO PADRE FERNANDO OLIVEIRA
E A HISTÓRIA DO FUTURO DO PADRE ANTÓNIO VIEIRA
"

 

Os sonhos dos homens constituem uma parte
da sua história e explicam muitos dos seus actos."
Marjorie Reeves

"A utopia é a escrita do sonho, ou o sonho escrevendo-se."
Luís Filipe Barreto

1. Considerações preliminares

Tanto os tempos de crise e de ruína como os tempos de esforçada restauração e ressurgimento inspiram a construção de utopias1 e de mitos2, por vezes delirantes, em ordem a cumprirem objectivos de carácter mobilizador e orientador das consciências colectivas. Objectivos que visam a sustentação psico-social de uma desejada resistência moral e de fidelidade a valores que as incertezas desses momentos históricos exigem. É bem elucidativa disto mesmo uma passagem programática da História do Futuro do Pe. António Vieira: "Isto é, pois, o que eu agora lhe quero persuadir e admoestar, e um dos fins principais por que escrevo esta História, para que, pelo conhecimento dos nossos futuros, possam emendar o engano de suas esperanças presentes."3

Nestes contextos formalmente antinómicos, enquadram-se precisamente as obras que nos propomos aqui apresentar numa perspectiva hermenêutico-comparativa. A História de Portugal4 do Pe. Fernando Oliveira5 foi escrita depois da derrota de Alcácer-Quibir e no âmbito do processo de sujeição política de Portugal ao reino vizinho (a Espanha dos Filipes), a que aquela derrota conduziu. O projecto da História do Futuro do Pe. António Vieira foi começado a consignar-se por escrito no final da década de quarenta do século seguinte (1649), no quadro do processo de restauração da independência do reino de Portugal em relação ao domínio castelhano. Duas obras pensadas e redigidas em conjunturas diametralmente opostas: uma de perda e outra de restauração. Mas com uma intencionalidade que visa produzir os mesmos efeitos e alcançar objectivos semelhantes.

Antes de mais, uma interrogação, que é sobretudo um desafio, se nos apresenta à partida: qual a pertinência da feitura de uma tal comparação entre dois livros aparentemente diversos, num congresso sobre uma figura central da nossa história cultural - o Pe. António Vieira? O desenvolvimento do nosso estudo será uma tentativa de resposta a este desafio.

Estas duas obras escritas em momentos históricos conjunturalmente opostos - mas ambos carregados de incerteza6 quanto ao futuro de uma determinada ideia de Portugal, enquanto sobrevivência política e cultural de uma identidade peculiar -, realizam uma releitura da História de Portugal no quadro da uma tradição cultural comum e com fins idênticos: provar a singularidade deste reino e a sua eleição celeste, demonstrar a sua história providencialmente ordenada, preparada e conduzida com vista à realização de uma missão sagrada de carácter universal, predestinada desde a sua historiogénese.7

Subjacente ao projecto ideológico destas duas obras emerge um momento da história nacional que constitui, no quadro destas duas obras, uma da chaves hermenêuticas fundamentais para a releitura deste passado/futuro de Portugal: o período, reputado de gloriosíssimo, dos Descobrimentos e da Expansão ultramarina8. Com efeito, a empresa das navegações, do comércio e da evangelização levada a cabo pelos portugueses que deram, nas palavras bem sugestivas de Vieira, a conhecer "o mundo ao mesmo mundo"9, constitui o argumento principal e a prova angular desta missão que alegadamente estaria ordenada para Portugal. O eclipse quase ex abupto deste tempo de glória nacional, a mitificação que dele se efectuou e a indelével recordação que do mesmo tempo ficou, motivou estes dois escritores a empreenderem a releitura da história de Portugal numa perspectiva protológica e teleológica. Esta tarefa tinha o objectivo programático de iluminar as vicissitudes e os pessimismos da história presente, mas sempre à luz daquela considerada grande idade de ouro da história nacional - o tempo áureo dos Descobrimentos, visto como o prolegómeno da consecução da profetizada missão sagrada de pendor universalizante que estava destinada a esta nação. Esta releitura de carácter mitificante da história pátria visava também provar a tese da perenidade de Portugal e defender, por inerência, um estatuto privilegiado de Portugal em relação às outras nações cristãs. Isto porque precisamente este reino alegadamente possuiria uma missão especial no panorama geral da história da humanidade. Missão esta que constitui o alicerce argumentativo de toda a construção utópica e última do Quinto Império, esboçada na inconclusa História do Futuro.

Duas histórias, uma mitologia do passado e uma mitologia do futuro, que se encadeiam e completam num só mito, numa só utopia - a utopia da perenidade gloriosa de Portugal, como tentaremos demonstrar.

Antes de nos imiscuirmos na análise comparativa ao nível do conteúdo, convém atentar em algumas brevíssimas considerações sobre o tipo de discurso no plano formal.10 A História de Portugal de F. Oliveira é elaborada, recorrendo a uma discursividade simples, mas manifestando uma preocupação de rigor filológico. O tom da argumentação está muito próximo do ardor polémico, com marcas frequentes da espontaneadade, típicas do discurso oral, por vezes fortemente agressivo em relação aos adversários que se tem em mente refutar11. Por outro lado, é curioso notar que existe uma preocupação de aproximação quase dialógica, coloquial em relação ao leitor. Neste esteira, a obra expressa uma dimensão acentuadamente didáctica, isto é, no sentido de explicar esmiuçadamente aspectos como a origem de topónimos, ou a metodologia de investigação utilizada pelo autor a fim de validar as suas teses.

Na História do Futuro encontramos um discurso bem mais elaborado, sinuoso, alimentado por uma linguagem rebuscada e eruditizante, elevando-se na exímia perfeição barroca de bem argumentar. A apresentação das provas pretende ser exaustiva; o tom disputante é mais delicado, longe das invectivas surpreendentemente agressivas de F. Oliveira, mas firme na vontade de rebater todos os argumentos dos adversários com quem se disputa.

Ambos os livros pretendem apresentar uma complexidade argumentativa e uma preocupação crítica, à maneira da época, em relação a determinadas teses sobre a visão da história pátria, com vista a propugnarem por uma nova escrita da história de Portugal, que reputam ser a mais conivente com a verdade. Neste sentido, os dois discursos revestem-se de alguma polemicidade, embora em grau diverso.

A História de Portugal de F. Oliveira apresenta-se como uma tentativa de elaborar uma espécie epopeia em prosa da gesta portuguesa desde a sua historiogénese até à história presente.12 Mas, como já referimos, à luz do século glorioso dos Descobrimentos portugueses. Nesta óptica, o autor visa apresentar uma nova interpretação da história de Portugal, remontando àquilo que entende ser a suas origens primigénias. Desenvolve uma ideia de Portugal, em certa medida original, extravasando as noções históricas clássicas da longevidade cronológica deste reino e da sua fundação jurídica e existência continuada enquanto reino.

Para elaborar esta história mitificante, funda a argumentação das suas teses na autoridade de "escritores antigos e crónicas aprovadas"13, bem como nos documentos patentes nos "cartórios do reino" e na "Torre do Tombo"14, etc. Portanto, é uma história que se pretende, à sua maneira, rigorosa e crítica, em que a prova constitui-se a partir da interpretação do documento, seja ele escrito ou não escrito (V.g. vestígios arqueológicos, monumentos). Por seu lado, como gramático que era (recorde-se que o seu primeiro livro publicado, no ano de 1536, foi uma Gramática da Linguagem Portuguesa, que é o primeiro ensaio conhecido de elaboração gramatical sobre a língua portuguesa), baseia o seu discurso na depuração analítico-filológica, descodificando os étimos das palavras para daí auferir conclusões de carácter histórico. Isto para o serviço programático e pragmático do seu discurso. Ou seja, as propostas de hermenêutica filológica de toponímia, de antroponímia, etc., vão ser usadas frequentemente como argumentos para refutar conclusões históricas consideradas falsas e, por sua vez, para afirmar novas conclusões reputadas de mais rigorosas.15 Aliás, esta metodologia historiográfica filia-se plenamente na escola histórica humanista do Renascimento, em que, como explica L. F. Barreto:

"Gramática e História são, por excelência, na cultura renascentista, produções de hegemonia humanista. Para a cultura humanista, ambas existem em unidade de tal modo forte que a gramática é naturalmente histórica, tal como a História é filológica (e retórica). A primeira e a última obras de Fernando Oliveira formam assim uma unidade de conhecimento e sentido, uma mesma investigação em torno da metodologia filológica em que é possível encontrar nacionalismo histórico na ordem da gramática (...) e filologia histórica na ordem da História."16

A História do Futuro do grande Pregador caracteriza-se pela complexificação barroca do discurso, onde a sinuosidade da argumentação alia-se ao discurso erudito, carregado de imagens, as quais, segundo Maria Leonor Carvalhão Buescu,

"apontam para a transformação do paradigma de horizontalidade e estabilidade que caracteriza o Renascimento, num paradigma recorrente em que se encontra a espiral, a labareda, o espelho ou espelhos paralelos que se projectam no infinito. O dinamismo duma procura que nem sempre se identificou ou tem em mira a meta definidora dessa busca, mas que constitui a demanda de algo que está para além da racionalidade positiva em que se insere, porventura, num universo visionário. Ora, fortemente vinculada ao tempo ou aos tempos, a obra do Pe. António Vieira é talvez um dos mais significativos testemunhos dessa transição, certamente dramática, do espírito do renascimento para o espírito barroco, enredado numa nova angústia e numa nova maneira de estar no mundo."17

O discurso é organizado, à semelhança da obra de Oliveira, com base na alegação de fontes e autoridades com diferentes graus de fidedignidade18. A metodologia orienta-se obstinadamente pela esteira da exposição de provas que atestem indubitavelmente as conclusões programáticas da obra e prossigam o objectivo estabelecido a priori - demonstrar a eleição divina de Portugal para inaugurar o Quinto Império do mundo.

2. Concepção de História

Embora F. Oliveira se insira na corrente historiográfica dos Descobrimentos de que é herdeiro e na escola intelectual humanista que exalta os recentes feitos inéditos dos portugueses, protagonistas da expansão marítima europeia, ele não deixa de antecipar outra corrente de labor historiográfico, herdeira da experiência dos acontecimentos de 1578-1580, fatais para a reinante dinastia real portuguesa, e da consequente integração política na monarquia filipina. Conjuntura que gerou um novo ambiente historiográfico. Escreve Hernâni Cidade a respeito desta nova corrente:

"O recalque das aspirações de liberdade, das amarguras, da humilhação, compreende-se determinar a necessidade de escape pela palavra e pela escrita, processo normal de catarse necessária (...) o sentimento exaltado da superior dignidade nacional, que no século XVI aquecia e tornava mais nítida a consciência de uma inconfundível personalidade colectiva, não cremos que sofra eclipse total no próprio momento da união com Castela, que muitos não viam claramente pudesse converter-se em domínio por Castela."19

De facto, a conjuntura política resultante da entrada em vigor da monarquia dual, a manutenção do bilinguismo peninsular e o desenvolvimento de determinadas relações culturais vai fomentar o aparecimento duma nova escola historiográfica que J. Veríssimo Serrão cognomina de "História apologética no sentido político do termo, recorrendo a todos os meios literários, ainda que ingénuos, de sentido miraculoso ou de ridícula evocação, para exaltar a história portuguesa."20 A obra da velhice de Fernando Oliveira anuncia e opera a transição da escola historiográfica humanista dos Descobrimentos, da qual mantém visíveis e inapagáveis marcas, para a escola apologética nacionalizante. Com efeito, anuncia esta nova escola que se vai afirmar fortemente a partir da década de 90 do século XVI. É justo, em nosso entender, que este mérito lhe seja atribuído. Mérito ainda maior é facto aludido de Oliveira ter sido capaz de fazer a transição entre estas duas escolas que se interligam, mas cuja experiência nacional colectiva é praticamente oposta. É esta nova ambiência sócio-política e cultural que vai obrigar à viragem historiográfica. De uma história mais centrada na exaltação dos feitos da história recente de Portugal, passa-se a incidir a reflexão historiográfica sobre as origens e sentido da história do reino. Como escreve Francisco Bettencourt: "a ruptura com a tradição do reino independente, imposta pela invasão dos exércitos castelhanos em 1580, deu origem a uma segunda conjuntura, dominada pela reflexão sobre as origens do reino e pela tentativa de elaboração de uma síntese."21 Isto para encontrar um sentido explicativo para a desilusão e indefinição do presente - resultante da ofuscação inesperada da gloriosa e promissora história recente -, e extrair alguma confiança de cariz mobilizador em relação ao futuro.

Com efeito, a reflexão sobre a historiogénese e sobre a evolução da história de Portugal a partir dessa criação primigénia do reino, vai ocupar um lugar fundamental na História de Portugal de Fernando Oliveira e vai configurar, em grande medida, a sua visão essencial da identidade e do sentido da pátria. A sua proposta de explicação das origens de Portugal é claramente uma história mitológica, uma epopeia fictícia ao serviço de uma tentativa de apresentar a constituição deste reino de forma divinamente ordenada, no sentido em que é definido por Mircea Eliade: "(...) o mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos "começos". Noutros termos, o mito conta como uma realidade passou a existir, quer seja a realidade, o cosmos, quer apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, uma narração de uma "criação"."22

A fonte - considerada por Oliveira, como por todos os historiadores cristãos da sua época, como indubitável - que fornece o paradigma histórico e o quadro espácio-temporal, onde se deve procurar a proto-história portuguesa são as narrativas vetero-testamentárias da Sagrada Escritura. Partindo da consideração de que "das povoações e nomes das terras antes do dilúvio geral (...) pereceram todas as memórias daquele tempo"23, faz remontar os primórdios da constituição de Portugal ao tempo pós-diluviano.24 Nesta linha de leitura, o fundador do reino de Portugal foi o neto de Noé e filho de Jafet, Tubal, o qual tendo sido encarregado da missão de povoar a parte ocidental da terra, viajando por mar, aportou em Setúbal, onde assentou sede25 para iniciar o povoamento do território que veio a chamar-se Portugal, bem como daqui povoou toda a Espanha. O autor acentua bem que o povoamento era gerido a partir de uma sede situada em Portugal, com vista a afirmar, desde o início, a primazia de Portugal em relação ao reino vizinho.26

Salienta ainda que a povoação destas terras que viriam a constituir o reino de Portugal, resultou de um mandato divinamente ordenado, tendo sido delegado aos primeiros povoadores o poder divino da nomeação27: "(...) porque assim fizeram quem o tinha mandado, Noé a seu muitos netos, que puseram apelidos de seus nomes às terras que povoaram, para saber quem fazia fruto na povoação da terra, que por Deus lhe era encomendada."28 Nesta linha de argumentação, defende, contrariamente às teses clássicas, relativamente ao nome de Portugal que "parece claro que este nome é tão antigo como a povoação daquela terra", o qual nome "fizeram os primeiros povoadores."29 Assim, de acordo com esta lógica, o nome de Portugal remonta ao tempo de Tubal e dos seus companheiros, considerados os primeiros povoadores.30

A fundação de Portugal, bem como a descrição histórica dos seus tempos primigénios, apresentam, nesta lógica discursiva, uma proposta de explicação do nascimento do reino baseada na ideia de uma vontade divina que é fundante deste mesmo reino. Esta vontade divina torna-se providencial e manifesta-se nos grandes momentos cruciais da sua história, como personagem fundamental que intervém neste processo histórico, como entidade ordenadora, superior à vontade humana.

Esta fundação, em certo sentido, sagrada do reino de Portugal é instrumentalizada discursivamente para imprimir ao reino uma identidade e características específicas que lhe vão conferir uma preparação para uma missão especial, também ela sagrada, que, no futuro, será chamado a cumprir.

A narrada "criação" de Portugal, bem como a apresentação e descrição dos feitos das grandes figuras heróicas que mais se destacaram neste reino, são enquadradas numa ditosa idade de ouro31. E é, neste momento criador, que se constituem as traves mestras da nacionalidade portuguesa, a sua definição territorial, instituições e tradições que fazem a peculiaridade deste reino. Fundando-se na autoridade de Aristóteles e de Cícero explica que nos "tempos heróicos" Deus investia os grandes homens para realizar com eficácia a sua missão: "Os tempos heróicos, quer dizer tempos quase divinos, como eram os tempos antigos, a que chamam idade dourada, porque a antiguidade, diz Cícero nas Tusculanas, foi propinqua à divindade por criação e comunicação, porque então comunicava Deus com os homens familiarmente e as leis e costumes que lhe ele ensinava eram melhores que os de agora, e os reinos melhor regidos, e os reis melhor elegidos."32

À semelhança da história providencialista de Oliveira, Vieira herda uma visão unitária da história, inspirada na concepção cristã medieval. Segundo esta concepção, os acontecimentos temporais são mais a consequência do implícito desígnio de Deus que atravessa o fluir da história e menos o resultado da prossecução dos projectos dos homens, como manifesta a ordem aparente do decurso desses acontecimentos. Assim sendo, todo o empenho do homem na transformação do mundo será inevitavelmente canalizado para a realização desse desígnio último de Deus. Isto independentemente do logro ou do sucesso desse esforço humano. O desígnio providencial de Deus imiscui-se na história, encarnando-se tacitamente na vontade do homem, em ordem à realização última dos fins, por vezes desconcertantes em relação às expectativas humanas, bem como recorrendo a metodologias e pedagogias difíceis de compreender e aceitar pelo espírito do homem.33

Não obstante, esta participação divina não é totalmente arbitrária e obstruente da liberdade humana em particular, pois a sua influência opera-se ao nível do assegurar a realização de um objectivo superior: a felicidade última da humanidade.34 Esta já célebre passagem do Pe. António Vieira denuncia a sua filiação filosófico-teológica que configura a sua noção de história: "É este mundo um teatro; os homens as figuras que nele representam, e a história verdadeira dos sucessos uma comédia de Deus, traçada e disposta maravilhosamente pelas idades da sua Providência."35

Com base nesta concepção da comicidade dos acontecimentos históricos e de Deus como protagonista principal, a profecia e o profeta assumem um papel pedagógico. A revelação "dos futuros" visa, assim, ensinar ao homem que os fins últimos da história não dependem inteiramente de si, mas da intenção providencial de Deus: "(...) nas profecias estão encobertos os tempos e os efeitos, e nos efeitos estão encobertos as profecias (...). E assim como o primor e subtileza da arte cómica consiste principalmente naquela suspensão de entendimento e doce enleio dos sentidos, com enredo que os vai levando após si, pendentes sempre de um sucesso para outro sucesso, encobrindo-se de indústria o fim da história, sem que se possa entender onde irá parar, senão quando já vai chegando e se descobre subitamente entre a expectação e o aplauso, assim Deus, soberano Autor e Governador do Mundo e perfeitíssimo exemplar de toda a natureza e arte, para maior manifestação da sua glória e admiração da sua sabedoria, de tal maneira nos encobre as cousas futuras, ainda quando as manda escrever primeiro pelos profetas, que nos não deixa compreender nem alcançar os segredos do seu intento, senão quando já têm chegado, ou são chegados os fins deles, para nos ter suspenso na expectação da sua Providência."36

Não ousando erigir-se como profeta, mas tão só como humilde intérprete de um conjunto de profecias, assume o desafio de desvelar o projecto divino, ou melhor, a missão que desde os tempos primigénios estava designada para Portugal: uma missão religiosa universalizante de paz e de justiça cristãmente conduzida - em suma, a instauração, sob a égide de Portugal e em concomitância com a égide da Igreja, de um Quinto Império de felicidade e bonomia.37 O Quinto Império de Vieira é uma boa síntese da utopia que atravessou ontologicamente e, muitas vezes, dramaticamente o pensamento cristão desde as suas origens: a utopia da pacificação geral da humanidade.

Para justificar e sustentar esta utopia, Vieira reinterpreta a história do reino de Portugal, recordando as suas origens. A sua concepção da proto-história portuguesa filia-se na tradição histórico-mitológica de F. Oliveira, apresentando como patriarcas sagrados deste reino Tubal e os seus companheiros, que o começaram a povoar depois do dilúvio universal, no ano da criação do mundo de 1800.38

Com o escopo de expor a origem sagrada deste reino, passando pela mitificação dos grandes heróis da nacionalidade, até à interpretação dos acontecimentos coevos, António Vieira faz a hermenêutica do percurso histórico de Portugal à luz de um determinismo providencialista. História que é deliberadamente posta em paralelo com a história do povo de Israel que a Bíblia apresenta como povo eleito e em cuja história Deus interveio para libertar e salvar o seu povo nos momentos cruciais e adversos.

Aqui, tanto em Oliveira como em Vieira, Portugal é revestido de uma espécie de personalidade colectiva, que atravessa a história com uma missão sagrada e universal, à semelhança do povo hebreu. Assim, na história de Portugal os acontecimentos são entendidos como fazendo parte de plano divino. Tudo acontece a seu tempo e por disposição celeste.

Os Descobrimentos constituem o acontecimento por excelência que justifica e ilumina esta leitura providencialista do passado de Portugal e constitui a prova de que Portugal foi, de facto, eleito e guiado por Deus para protagonizar uma missão religiosa universal. A interrupção dessa missão atribuída ao povo português produziu a convicção de que ela ficou inconclusa e por cumprir a sua plenificação total. Esta convicção da inconclusividade da missão de Portugal será o lugar de inspiração e de fundamentação axial da utopia quinto-imperialista de Vieira. De facto, esta utopia consiste essencialmente na plenificação daquela missão começada no momento histórico da expansão portuguesa, a qual nos seus momentos preliminares já tinha superado em feitos todas as acções mais fulgurantes operadas e contadas nos tempos antigos:

"E verdadeiramente é assim: enquanto não chega a hora determinada por Deus, nem os Aníbais de Cartago, nem os Cipiões e Júlios de Roma, nem os Bacos, Lusos, Geriões e Hérculos de Espanha se atrevem a imaginar, que pode o Bojador ser vencido, e param suas empresas e ainda seus pensamentos no Cabo Não. Mas quando chega a hora precisa do limite que Deus tem posto às cousas humanas, basta Gil Eanes em uma barca para vencer todas essas dificuldades, para acanhar todos esses receios, para pisar todos esses impossíveis e para navegar segura e ventorosamente os mares nunca de antes navegados (...). O que confusamente se representava adiante ao longo deste cabo, era a carranca medonha, o temorosíssimo Bojador do futuro (...); demos louvores a Deus e às suas disposições da sua Providência, e entendamos que se passou o cabo, porque chegou a hora."39

Os grandes heróis portugueses, desde os primeiros povoadores, passando pelos conquistadores, navegadores e libertadores são compreendidos como enviados divinos para conduzirem Portugal na direcção que o desígnio histórico de Deus exige, tendo sempre no horizonte o cumprimento último do seu destino enquanto povo eleito. Mas o feito paradigmático por excelência foi a política portuguesa de expansão marítima, e, nesta óptica, os maiores heróis foram os navegadores. Assim, podemos afirmar que, em certa medida, os Descobrimentos constituem o acontecimento fundante do Quinto Império, como são também são a imagem e o esboço, o caminho e anunciação deste:

" Assim como líeis então aquelas vossas histórias, lede agora esta minha, que também é toda vossa. Vós descobristes ao mundo o que ele era, e eu vos descubro a vós o que haveis de ser. Em nada é segundo e menor este meu descobrimento, senão maior em tudo. Maior Gama, maior Cabo, maior Esperança, maior Império."40

Enquanto F. Oliveira escreveu uma história da idade de ouro de Portugal passada para justificar a sua erecção providencial como reino e para defender a sua perenidade - apesar das graves vicissitudes da história presente e para demonstrar uma alegada certeza no tempo de graves incertezas -, António Vieira recordou o passado glorioso de Portugal para lhe revelar o sentido oculto desse passado e lhe prometer um futuro glorioso. Futuro glorioso que não será mais do que a plenificação da idade de ouro dos Descobrimentos - a regeneração global da humanidade mediante o projecto cristão de redenção do homem:

"Naqueles ditosos tempos (mas menos ditosos que os futuros) nenhuma coisa se lia no mundo senão as navegações e conquistas de portugueses. Esta História será o silêncio de todas as histórias. Os inimigos lerão nela suas ruínas, os émulos suas invejas e só Portugal suas glórias. Se se há-de restituir o mundo à sua primitiva inteireza e natural formosura, não se poderá consertar um corpo tão grande, sem dor e sofrimento dos membros, que estão no seu lugar. Alguns gemidos se hão-de ouvir entre vossos aplausos, mas também estes fazem harmonia, se são dos inimigos."41

Isto para servir também como instrumento mobilizador das vontades e da consciência colectiva para as graves tarefas que o momento histórico do período da pós-restauração exigia e para as quais Portugal se sentia tão pequeno e tão fragilizado. Vieira estava consciente que só um ideal desta grandeza, sustentado por um intervenção divina especial, poderia garantir um desfecho airoso para as batalhas do presente.

A chegada do tempo escatológico do Quinto Império (que é uma espécie de escatologia intermédia entre a história e a parusia e que constituirá o epílogo daquela), será precedida de sofrimento e de convulsões gerais. Aqui está subjacente o tópico da teologia paulina acerca dos gemidos da criação que precederão a vinda última do Messias. Segundo Vieira, a natureza e o cosmos solenizarão a chegada do Império global dos Cristãos com fenómenos extraordinários. No mundo haverá convulsões e em Portugal regozijo, "mas - repensa Vieira - sei que nos trabalhos, calamidades e aflições que há-de padecer o mundo (e pode ser que cheguem também a Portugal), nem Portugal nem o mundo poderá ter outro alívio nem outra consolação maior que a frequente lição e consideração deste livro (...)."42

A escrita da História do Futuro por Vieira é apresentada como um locus epifânico e hierofânico, uma nova revelação e um novo descobrimento, maior do que qualquer outro do passado43, em que "Portugal será o assunto, Portugal o centro, Portugal o teatro, Portugal o princípio e o fim destas maravilhas; e os instrumentos prodigiosos delas os portugueses."44 É o anúncio de uma nova epopeia - utopia do Quinto Império. A sua história escrita em forma de antecipação profética constitui uma história santa, que Vieira ousa igualar, em determinado sentido, à canonicidade e santidade das Escrituras Sagradas:

"Daqui inferimos sem injúria nem agravo de quantas histórias até hoje estão escritas no Mundo, que esta História do Futuro é mais certa e mais verdadeira que todas elas (exceptas somente as Histórias Sagradas); e ainda esta excepção se não deve entender em todo, senão em parte; porque grande parte da História do Futuro igualará na verdade e na certeza, ou, por melhor dizer, se não distinguirá delas, por ir toda (como vai) não só fundada nos mesmos textos e sentenças da Escritura Divina, mas formada e como tecida deles."45

A metodologia utilizada por Vieira, à semelhança de Oliveira, consiste na prospecção, comparação e interpretação racional dos documentos e das escritos das autoridades antigas e, no caso de Vieira, das profecias tanto cristãs como pagãs, as quais funcionam como caução documental, consideradas em diversos graus de verdade, da esperança e da verdade que se quer transmitir e persuadir:

"Que historiador há ou pode haver, por mais diligente investigador que seja dos sucessos presentes ou passados, que não escreva por informações? Que historiador houve tão limpo de coração e tão inteiro amador da verdade, que não inclinasse o respeito, a lisonja, a vingança, o ódio, o amor, ou da sua, ou da alheia nação, ou do seu ou de estranho príncipe? Todas as penas nasceram da carne e sangue, e todos na tinta de escrever misturam as cores do seu afecto (...). E desta mesma experiência e razões dela se qualifica claramente ser a nossa História do Futuro, mais verdadeira que todas as do passado, porque elas em grande parte foram tiradas da fonte da mentira, que é a ignorância e malícia humana, e a nossa tirada do lume da profecia e acrescentada pelo lume da razão, que são as duas fontes de verdade humana e divina."46

Em suma, a iluminação profética e a análise racional são o garante da autenticidade desta história que se apresenta como sendo superior às outras em termos de grau de verdade, a par das histórias canónicas. Mais pela capacidade de interpretação racional do que pela revelação divina directa. Pois esta é apenas concedida indirectamente por dispensação alheia. Também Oliveira, não alega uma iluminação especial, mas tão só uma interpretação diferente do passado e uma revisão hermenêutica das fontes, disposta para cumprir os objectivos ideológicos da sua história.

3. A ideia de eleição de Portugal

A visão de Portugal como um reino eleito por Deus é um tópico temático que estrutura ideologicamente a História de Portugal de F. Oliveira e a História do Futuro de António Vieira. No fundo, a ideia de eleição não só é estruturante de uma compreensão idealizante da história do passado, como fundamenta e autoriza a fé de que esta história transporta um destino sagrado, uma utopia que deverá ser irreversivelmente realizada.

Oliveira apresenta Portugal como um reino peculiar, eleito por Deus, sendo a sua história conduzida pela sua protecção providencial. Desde a designação e envio dos primeiros povoadores, passando pelos grandes heróis, líderes e avatares da reconquista cristã contra os muçulmanos, tudo é disposto pelo céu. O grande símbolo e testemunha desta eleição são as insígnias de Portugal que o distinguem em superioridade em relação aos outros povos: "(...) as insígnias deste reino que são as mais insignes que têm os reis cristãos."47

Estas armas de Portugal foram dadas a D. Afonso Henriques na noite vespertina da famigerada batalha de Ourique - na epifania de Cristo ao Conquistador para lhe incitar a dar batalha aos inimigos e assegurar a vitória. A narração desta legenda constitui um tópico nuclear da obra de Oliveira. A hierofania e a consequente vitória de Ourique confirmou não só D. Afonso I como rei de Portugal, como para o autor constitui uma das chaves hermenêuticas, recorrente ao longo da obra, para fundamentar a tese da eleição divina de Portugal.48 Neste sentido, a história deste reino é exposta como uma história sagrada, mítica, onde o divino é apresentado como um elemento interventor frequente, constituinte da identidade deste reino.

Na História do Futuro, o seu autor sublinha ainda mais a tese de eleição de Portugal para cumprir uma missão sagrada. Mas mais significativo ainda é o facto de Portugal ser apresentado como o novo povo eleito - o povo eleito dos tempos modernos. E mais: o povo eleito da Cristandade. A história do povo eleito do Antigo Testamento é a figuração evocativa daquilo que havia de ser a história do povo eleito do Novo Testamento. Assim, a título de exemplo, Vieira compara os sessenta anos de dominação espanhola ao cativeiro do povo hebreu sob os Faraó no Egipto e sob Nabucodonosor na Babilónia. Com efeito, os textos bíblicos, mormente os proféticos, são acomodados aos momentosos acontecimentos da história pátria.49

Estas aplicações exegéticas das profecias às façanhas passadas dos portugueses funcionam como um elemento de justificação e de persuasão que autoriza Vieira a poder, do mesmo modo, atestar a mesma aplicação aos acontecimentos futuros: "Os futuros portentosos do mundo e Portugal, de que há-de tratar a nossa História, muitos anos há que estão sonhados como os do Faraó e escritos como os de Baltazar (...)."50 De acordo com a filosofia da história providencialista do autor, o "futuro está contido no passado", como explica Maciel Silveira. De acordo com este estudioso de Vieira

"o procedimento persuasivo do Padre António Vieira fundamenta-se no exemplum - o mais apropriado para a essência metafórica do manifestar-se divino, pois ressalta a cadeia analógica entre as Leis da Natureza, da Escritura e da Graça. Os exempla são buscados na Sagrada Escritura e servem como prova das verdades morais e/ou históricas que tenta inculcar. Configura-se, assim, o passado bíblico como fonte paradigmática de verdades eternas que devem ser imitadas."51

Além do forte significado da descrição dos primórdios sagrados de Portugal que remontam aos patriarcas bíblicos, o momento alto da confirmação da eleição divina de Portugal é também para Vieira a epifania de Ourique. Este é para Vieira o momento fundante do reino de Portugal e da sua singularização em relação aos outros reinos: "Antes do nascimento de Portugal, aparece o mesmo Cristo a El-Rei (que ainda o não era) D. Afonso Henriques e lhe revelou como era servido de o fazer rei e a Portugal reino; a vitória que lhe devia dar em Batalha tão duvidosa e as armas de tantas glórias com que o queria singularizar entre todos os reinos do mundo."52

Dada a garantia sagrada da fundação de tal reino, Deus não poderia abandoná-lo às vicissitudes da história, tanto mais que esta eleição divina significa, para Vieira, a impressão de um destino grandioso para Portugal. A história de Portugal é apresentada como a história de uma personalidade com um corpo vivo, que percorre as fases da existência até atingir a glória, em analogia com a vida de Jesus Cristo, sob a orientação suprema da providência divina:

"Quem considerar o Reino de Portugal no tempo passado, no presente e no futuro, no passado o verá nascido, no presente ressuscitado e no futuro glorioso; em todas estas três diferenças de tempos e estados lhe revelou Deus e mandou interpretar primeiro os favores e as mercês tão notáveis com que os determinava enobrecer: na primeira, fazendo-o, na segunda restituindo-o, na terceira, sublimando-o."53

A tese da eleição sustentará e iluminará a argumentação e justificação da finalidade da história de Portugal tanto em Oliveira como em Vieira.


4. Finalidade da história.

Neste ponto devemos considerar dois níveis de análise, que não deixam de ser consequentes. A análise da finalidade da redacção destas duas obras historiográficas em estudo e a visão da finalidade da história de Portugal, ou melhor, do seu destino nelas enunciado e demonstrado.

A História de Portugal de Oliveira tem o fito de repensar a história deste reino e apresentar uma leitura interpretativa, a partir da crítica a determinadas histórias que tinham vindo a lume. Neste sentido, podemos classificar este livro como uma obra polemizante, na medida em que pretende refutar determinadas teses consideradas erróneas e contrapor outras entendidas como certas. O tom polémico é de tal modo sensível e agressivo que encontramos frequentemente, ao longo da obra, ataques dirigidos aos adversários que se visam refutar, classificando-os de "ignorantes", "estúpidos" e "bárdulos" e as suas obras como "chufas" sem valor, nem muito menos fidedignidade.54

Com efeito, uma intencionalidade transparece como liminar à elaboração desta obra de Oliveira, a qual se torna, em certa medida, obsidiante ao longo da sua escrita: refutar as teses de historiadores, principalmente espanhóis, que defendiam a subalternidade histórica de Portugal em relação aos reinos de Leão e de Castela, quer pelo vínculo da vassalagem, quer pela sua autonomia pouco consistente. Estes autores nunca são claramente identificados, mas depois de uma prospecção feita por nós concluímos que um desses escritores poderia ter sido Estevan Garibây y Çamálloa, o qual publicou em 1571 uma obra monumental, subordinada ao título Os XL libros d´el compendio historial de las chronicas y universal historia de todos los reynos de España.55 Este autor defende o vínculo histórico do dever de menagem do rei de Portugal em relação a Castela, bem como engrandece os feitos espanhóis (navegações e batalhas) em desconsideração dos portugueses. E enfatiza a tese da ascendência da Espanha sobre os outros reinos da Cristandade, bem como o sonho de expandir um império cada vez mais universal.

Contra as teses destes autores, considerados "émulos" do reino de Portugal e da sua dignidade histórica, F. Oliveira vai defender as teses contrárias esboçadas no seu Livro da Antiguidade, Nobreza e Liberdade do Reino de Portugal que precede a escrita da História. Perante a consciência da periclitância da independência e da frágil garantia da continuidade da integridade do Reino de Portugal, em consequência dos acontecimentos ocorridos em torno de 1580, o historiador-filólogo vai repensar a historiogénese da sua pátria e propor uma releitura do seu passado. Releitura que tem por objectivo mostrar a ininterrupta continuidade da autonomia e identidade do reino e da nobreza das suas gentes56, enquanto espaço singular e livre, conforme o título do Livro...57 citado sugere.

Essencialmente, era a tese do carácter sagrado de Portugal, imprimido na sua fundação e na sua eleição divina58, o qual lhe conferia uma imunidade que nenhum poder humano externo poderia usurpar. Por exemplo, no tempo do domínio romano, Oliveira defende que Portugal não foi totalmente submetido, mas gozava de autonomia, que lhe garantiu a continuidade da sua intocabilidade ontológica: "Não serem os reis de Portugal, cujo assento era em Lisboa, sujeitos aos romanos, nem esta terra consta porque Plínio e outros escritores romanos dizem que Lisboa era município de cidadãos romanos; e município quer dizer terra livre (...)."59

Também no que respeita aos povos bárbaros, cuja presença e influência na Península Ibérica merece uma avaliação bastante negativa de Oliveira, não tem dúvidas de que "estes Godos (...) nunca foram senhores de Portugal." E assim se dirá dos mouros e leoneses e castelhanos." Isto porque, segundo o autor, "esta terra sempre teve este nome de Portugal e sempre teve limites de Braga até Beja."60

Mas para além desta integridade fundamental, o que interessa de sobremaneira a Oliveira é defender a tese de que Portugal nunca foi vassalo de Leão e de Castela, nem dependeu destes reinos vizinhos a título de qualquer jurisdição.61

A ideia da singularidade e excelência da autonomia deste reino, imune a qualquer sujeição, é também atestada pela escolha e assistência divina que é dada aos grandes heróis nacionais. Caso paradigmático é o de D. Afonso Henriques, milagrosamente curado na infância.62 E parafraseando o trecho evangélico relativo à infância de Jesus, sintetiza a vida infantil do futuro rei de Portugal: "Crescia este infante em corpo e animo e mostrava que Deus o criava para grandes feitos, como adiante por ele fez."63

A tese da constituição sagrada e da conservação imune da singularidade e liberdade do reino de Portugal, interliga-se e justifica-se com outra tese, segundo a qual este reino estaria designado para ser um instrumento especial de uma missão, também ela sagrada, em relação a outros povos. Missão essa que é iluminadora e fundamentadora de uma visão sacralizante da história de Portugal - a missão teofânica de levar o conhecimento de Cristo aos povos ignorantes da sua doutrina:

"Para este reino determinava Deus abrir caminho e serem chamadas para o reino do céu muitas gentes que estavam mui apartadas do conhecimento de Jesus Cristo e longe do estado da sua salvação em Guiné e no Brasil e outras partes do mundo, das quais os pregadores do reino de Deus não tinham notícia e Portugal escolhido por Deus para isso lhe abriu caminho, o qual louvor não lhe pode tirar a inveja dos émulos."
64

É essa constituição divina de Portugal como porta-voz e pioneiro da evangelização do mundo novo aberto pela empresa dos Descobrimentos que justifica e ilumina a sua história. E é o tópos argumentativo fundamental que permite a Oliveira fundamentar a utopia da perenidade da liberdade e da singularidade do reino de Portugal, que nem Filipe II de Espanha e I de Portugal conseguiu subtrair.65

É também com base neste mito da perenidade do reino de Portugal e na sua eleição para uma missão de especial dignidade a que foi chamado divinamente a desempenhar no mundo, que Vieira fermenta a sua utopia maravilhosa e mundialista do Quinto Império: "Não duvido (...) que Deus tinha decretado a conservação e perpetuidade de Portugal."66

A História do Futuro também se reveste de algum teor polémico. Liminarmente, toda a construção discursiva visa aparelhar a obra de argumentos sólidos e exaustivos, capazes de suster as críticas dos leitores mais censórios. Tanto mais que o assunto tratado daria, de per si, azo a uma inevitável polémica. Nesta medida, Vieira como que se prepara antecipadamente para rebater os adversários, refutando, desde logo, as invectivas que lhes adivinha.

Mas por outro lado, Vieira identifica, na História do Futuro, um adversário que pretende à partida refutar. É o bispo espanhol D. Juan de Palafox y Mendonça e a sua "História Real Sagrada, escrita, como se vê em tantos lugares, mais para contradizer o novo Reino de Portugal, que para historiar o de Saul, impugnando a eleição de El-Rei Dom João o Quarto, cujo nome se dissimula (...)."67 Vieira, assim, pretende com a sua História apresentar poderosos argumentos para dissuadir a Espanha das tentativas bélicas e diplomáticas para recuperar o domínio de Portugal. Para tal tenta provar que a restauração deste reino é impossível contrariar, porque já estava predestinada divinamente. Neste sentido, lutar contra Portugal é lutar contra Deus:

"Considere Castela contra quem peleja, e conhecerá quão impossível é a empresa a que aspira; acabe de entender que não peleja contra Portugal, senão contra a firmeza da palavra e promessas divinas. Talar as nossas campanhas, vencer em batalha os nossos exércitos, sitiar as nossas cidades, bater, minar, escalar e arruinar as nossas muralhas, bem pode ser; mas fazer brecha na firmeza da palavra divina é impossível. Não há muro tão fraco e tão gastado da Antiguidade de Portugal, em cujas pedras não esteja escrito com letras de bronze: Verbum Domini manet in aeternum."68

Crente na perenidade da assistência divina a Portugal para realizar a missão que Deus lhe atribuiu, Vieira vai ousar revelar "os futuros" do seu reino amado. Revela-lhe a missão teleológica que já tinha sido começada, mas ainda não concluída: a plenificação da obra iniciada com os Descobrimentos e a universalização efectiva do Cristianismo através da Igreja Católica. Utopia que consiste, no fundo, na expansão à escala mundial do mito medieval do império cristão, sob a égide espiritual da Igreja, sustentado sob a égide temporal da monarquia Portuguesa. Portugal será a sede e o executor deste império nunca visto, que Vieira demonstra através da interpretação acomodatícia das profecias antigas: "É conclusão certa e de fé que este Quinto Império de que falamos, anunciado e prometido pelos profetas, é o Império de Cristo e dos Cristãos."69

Quinto Império que é um projecto de regeneração geral da humanidade, uma nova idade de ouro, uma recuperação das características existenciais do paraíso perdido, onde haverá paz universal e felicidade geral. Tempo de santidade assistido pela bonomia divina, o qual antecederá o Juízo Final.70 Uma versão moderna e portuguesa da utopia da Idade do Espírito Santo sonhada por Joaquim de Flora e do mito medieval do Império Cristão.

5. Conclusões

Acabamos de confrontar muito brevemente duas histórias, as quais apresentam duas utopias, dois mitos. A utopia da perenidade de Portugal, constituída divinamente para realizar uma missão de carácter sagrado. E a utopia da plenificação dessa missão na sonhada apoteose do Quinto Império.

Neste sentido, a História do Futuro de Vieira aparece-nos como uma espécie de continuidade necessária, como o complemento da história do passado de Portugal escrita por F. Oliveira. Esta História de Portugal, elaborada no contexto da perda da independência, tinha em vista demonstrar a perenidade do Reino de Portugal, fundado em direito divino, e a sua singularidade em relação aos outros povos. Neste sentido, esta obra transporta uma utopia que se constrói a partir de uma determinada ideia de Portugal, num passado dourado, de uma idade de ouro de Portugal, de grande densidade mitológica. Esta mitologia do passado visa justificar e fundamentar uma utopia, que se tenderia a projectar naturalmente no futuro: a utopia da perenidade de Portugal. Utopia que ganha consistência significativa a partir da demonstração de duas teses fundamentais sobre Portugal: a sua fundação sagrada em direito divino e a sua inerente eleição para realizar uma missão religiosa de carácter universal - a evangelização dos povos desconhecedores do cristianismo. Numa época de incerteza e de dúvidas quanto à conservação da identidade e autonomia de Portugal, esta história pretende defender a sua intocabilidade e, com visceral amor patriótico, refutar aqueles que defendiam e fundamentavam a sua inevitável e natural diluição na Espanha imperial dos Filipes.

É certo que F. Oliveira não projectou o Quinto Império na sua obra, mas apenas faz uma profissão de fé de que Portugal não acabaria em consequência dos acontecimentos em torno de 1580. A sua obra é uma releitura idealizante de Portugal com base nesta esperança que 60 anos mais tarde vai ser confirmada, e vai inspirar um sonho ainda mais prodigioso e proficiente.

A História do Futuro desenvolve e enfatiza esta utopia da perenidade de Portugal projectada no futuro, glorificando-a em apoteose universal. Assim sendo, esta obra continua e completa da História de Portugal de F. Oliveira e a tradição cultural que esta representa e em que aquela se filia. Esta tradição cultural configura num determinado modo de pensar, de entender e de sonhar Portugal, bem como a história do homem.71 Isto à luz de uma visão especial e invulgar das suas origens, de um entendimento da sua missão histórica no mundo e do epílogo glorioso a que supostamente estaria vocacionado. A conservação e a glorificação histórica de Portugal que estas duas obras reclamam, assentam numa visão idealizante do passado de Portugal. O que confirma o diagnóstico de Eduardo Lourenço acerca de muita da nossa historiografia:

"Se a História, no sentido restrito do "conhecimento do historiável", é o horizonte próprio onde melhor se apercebe o que é ou não é realidade nacional, a mais sumária autópsia da nossa historiografia revela o irrealismo prodigioso da imagem que os Portugueses se fazem de si mesmos."72

Tanto Oliveira como Vieira estão cheios de deslumbramento pelo passado histórico de Portugal e, especialmente, da convicção também ela deslumbrante de que os Portugueses fizerem muito mais que qualquer outro povo, mormente porque superaram aqueles feitos triunfalmente cantados pelos autores da antiguidade clássica. Todavia, os desaires e as vicissitudes da história que ofuscaram e interromperam esse curso triunfante de Portugal, deixaram nestes dois autores portugueses a sensação de inacabamento, de não cumprimento total da missão que estava designada divinamente para este reino. Neste sentido, estas duas obras, estas duas utopias, reclamam o regresso a uma idade de ouro portuguesa e o cumprimento da sua missão divinamente ordenada, a qual nenhuma potência humana pode impedir e sufocar a sua realização. Desenvolvem, assim, um autêntico mito de Portugal, assente numa afirmação da marca transcendente da sua fundação, na exaltação da sua história gloriosa e na plasmação ainda mais maravilhosa do seu destino histórico que desemboca no projecto mítico do Quinto Império. No fundo, estes dois projectos historiográficos são uma profissão de fé num destino de Portugal ainda não consumado. Uma profissão de fé e uma convicção obsidiante que deu forma a um filão fundamental da nossa cultura portuguesa e que, neste século, Fernando Pessoa continua e sintetiza num grito bastante sugestivo em forma de prece:

"Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal."73

José Eduardo Franco

RESUMO:

Este estudo visa estabelecer o confronto hermenêutico entre duas obras importantes para compreender a formação daquilo a que denominamos o mito de Portugal: um reino singular e perene fundado em direito divino numa antiguidade que remonta aos patriarcas bíblicos, cuja história é protegida e conduzida providencialmente pelo céu, em ordem ao cumprimento de uma missão com abrangência universal.

SUMMARY:

This article aims at hermeneutic comparison between two works that are fundamental in establishing what one might call the myth of Portugal: a kingdon unique and everlasting founded on divine right in an antiquity that went back to the biblical patriarchs; whose destiny is protected and providencially guided from the heavens, in order to fulfill a mission of worlwide importance.

SOMMAIRE:

Cette étude a comme objectif la confrontation herméneutique entre deux oeuvres importantes pour la compréhension de ce que nous appelons le mythe du Portugal: un royaume singulier et perpétuel fondé en droit divin dans une antiquité qui remonte aux patriarches bibliques, dont l'histoire est protégée et conduite providentiellement par le ciel, en ordre avec l'accomplissement d' une mission avec une amplitude universelle.


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NOTAS

1 Sobre a problemática da utopia cf. v.g.: BLOCH, Ernst, Geist der utopie; Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985; e RICOEUR, Paul, Ideologia e utopia, Lisboa, Edições 70, 1991.

2 Mitos com funções explicativas e justificativas dos acontecimentos presentes, através do repensar das origens da realidade em causa, como define Burke: "A mythe is a symbolic story told about characters who are larger (or blacker, or whiter) than life; a story with a moral, and in particular a story about the past which is told in order to explain or justifies some present state of affairs." BURKE, Peter, The Renaissance, 2ª ed., London, Macmillan Press, Ltd., 1997, p. 2.

3 Neste estudo, basear-nos-emos na edição da Imprensa Nacional do texto actualizado por Maria Leonor Carvalhão Buescu: VIEIRA, António, História do Futuro, 2ª ed., [Lisboa], Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1992. Citaremos simplesmente como História do Futuro.

4 Esta obra historiográfica de Fernando Oliveira é um manuscrito fragmentário inédito que faz parte de um conjunto de outras obras manuscritas atribuídas ao mesmo autor e que se encontram na Biblioteca Nacional de Paris. Estão registadas com o número 12 (nova cota) do Fundo Português e constituem um volume de 339 fólios de 300 mm x 212, numerados de 1 a 339. Infelizmente as obras não estão todas completas, pois alguns fólios transviaram-se e outros não se sabe se foram realmente escritos, como Fernando Oliveira projectava. Citaremos esta obra simplesmente como História de Portugal.

5 Não há ainda actualmente unanimidade acerca do modo de transcrição do nome deste humanista do século XVI (n.1507 e m. 1581?). Com efeito, uns transcrevem a sua assinatura por Fernão de Oliveira e outros por Fernando Oliveira. Todavia, optámos por citá-la uniformemente por Fernando Oliveira, seguindo a prática dos seus mais qualificados estudiosos, a saber, Luís de Albuquerque, Luís Filipe Barreto, Contente Domingos, Paul Teyssier. Aliás, Paul Teyssier, filólogo de renome, considera errada a transcrição da sua assinatura por Fernão de Oliveira, pois constatou que o seu nome surge assinado em diversos lugares sob a forma de fernãdooliveira, o que é indicativo do modo correcto de transcrever: Fernando Oliveira. Cf. TEYSSIER, Paul, L´"História de Portugal" de Fernando Oliveira d´après le Manuscrit de la Bibliothèque Nacional de Paris, Separata do III Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros - Actas, Lisboa, s.n., 1959, p. 359. Quanto à data da sua morte também ainda não há certezas que reunam consenso. A data de 1581 apresenta-se como uma hipótese, extraída a partir da datação apontada para a redacção da sua última obra conhecida - uma História de Portugal - a qual foi concluída provavelmente em 1581. Cf. ibidem, p.360.

6 As incertezas das promessas duvidosas e dos compromissos da monaquia dual (1581) e o esforço bélico e diplomático que Portugal teve de travar para fazer vingar a restauração da independência, desde 1940.

7 Acerca desta tradição historiográfica portuguesa que tem um dos seus autores genesíacos Frei Bernardo de Brito, comenta António Quadros que não é clara a "distinção entre a cidade de Deus e a cidade dos homens. Porque os dois planos aparecem muitas vezes sobrepostos, porque a distinção lógica não é directamente concebida, surgem erros de monta, a interpretação impregna-se numa espécie de mitologia cristã (...)." A teoria da História em Portugal. 1. O conceito de História, Lisboa, s. l., Espiral, s.d., p. 164.

8 Período histórico em que Portugal muito contribuiu para o descerrar do pano para um mundo pouco conhecido ou desconhecido. Tempo da queda de muitos mitos e lugar inspiracional de criação de outros tantos mitos e utopias.

9História do Futuro, p. 60.

10 Note-se que ambos os autores propõem-se levar a cabo um projecto megalómano na sua idealização: Fernando Oliveira - escrever a história de Portugal desde as origens mais primigénias até ao seu tempo. António Vieira - Toda a História do Futuro até à parusia, mas fundada numa hermenêutica do passado da história de Portugal. Curiosamente, nenhum destes autores conseguiu concluir as suas obras.

11 O autor chega a extremos de rebater os adversários, achincalhando-os através da classificação daqueles com termos como "estúpidos", "ignorantes", "bárdulos" (cf. v.g. História de Portugal, fl. 66.

12 Esta obra de Fernando Oliveira enquadra-se numa tradição historiográfica mitificante da história pátria, com muitos casos, com muitas iniciativas paralelas desta índole programática, nas monarquias cristãs da Europa. Caso bem exemplar disto mesmo é a obra do secretário de Louis XII, Nicole Gilles, subordinada ao título "Les tres elegantes, tres veridiques et copieuses annales des tres preux, tres nobles, tres chrestiens et tres excellens moderateurs des belliqueuses Gaules...", publicada em Paris em 1525 e com sucessivas edições ao longo do século XVI. Ver o comentário de HUPPERT, George, L´idée de l´histoire parfaite, Paris, Flammarion, 1973, pp. 15 e ss; e cf. DUBOIS, Claud-Gilbert, La conception de l´Histoire en France au XVIe siècle (1560-1610), Paris, A. G. Nizet, 1977.

13 História de Portugal, fl. 1. Fizemos a actualização das citações escritas em português antigo.

14 Cf. v.g. ibidem, fl. 134.

15 V. g. História de Portugal, fls. 12 e ss.

16 Cf. BARRETO, Luís Filipe, Portugal, mensageiro do mundo renascentista, Lisboa, Quetzal Editores, 1989, p. 51. Para fundamentar o "nacionalismo histórico na ordem da gramática" o historiador L. F. Barreto cita o seguinte passo da gramática de Oliveira: "gramática é arte que ensina a bem ler e falar (...) na sua antiga e nobre língua (...) melhor é que ensinemos a Guiné ca que sejamos ensinados em Roma." (Cap. IV); e para sustentar a "filologia histórica na ordem da História", extrai o seguinte passo: "o nome de Portugal alguns homens novos e pouco lidos o tem por nome novo, mas el-rei dom Afonso, no terceiro capítulo da primeira parte, diz que este nome fizeram os primeiros povoadores, que povoaram entre Douro e Minho, que o puseram àquela terra. E diz que aquela terra ainda estava erma quando a povoação aqueles lhe puseram este nome." (fl. 4v). Sobre este tema do significado hermenêutico da filologia para feitura da história nos escritores humanistas, cf. SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História breve da historiografia portuguesa, Lisboa, Verbo, 1962, p. 93: "A disciplina faz-se acompanhar de uma nova roupagem verbal. A língua, atributo da forma literária, demora-se já nos escritos de Fernão Lopes, mas ainda com tons arcaizantes. No século XVI quase atinge a modernidade do idioma pátrio. Donde, novas possibilidades para a história como meio de expressão."

17 BUESCU, Maria Leonor Carvalhão, "Introdução", in História do Futuro, Op. Cit., p. 10. Cf. a respeito do discurso barroco vieiriano os qualificados estudos de: CASTRO, Aníbal Pinto de, António Vieira: uma síntese do barroco luso-brasileiro, Lisboa, CTT, 1997; e MENDES, Margarida Vieira, A oratória barroca de Vieira, Lisboa, Caminho, 1989.

18 Acerca da hierarquia da fidedignidade das fontes cf. ibidem, pp. 143 e ss. Sobre este assunto ver o comentário de VALENTE, Vasco Pulido, Estudos sobre a crise nacional, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1980, pp. 126 e ss.

19 CIDADE, Hernâni, A literatura autonomista no tempo dos Filipes, Lisboa, Sá da Costa, s. d. , p. 36. Fernando Oliveira era um daqueles que não queria nem admitia que a união à coroa castelhana pudesse vir a resultar numa inevitável dominação. Aliás, a sua obra visa provar mesmo essa impossibilidade efectiva, à luz do que diz ter acontecido no passado - a perene liberdade do reino de Portugal face a todas as tentativas da sua dominação total por potências estrangeiras.

20 SERRÃO, Joaquim Veríssimo, Op, Cit., p. 116.

21 BETTENCOURT, F. , "Sociogénese do sentimento nacional", in A memória da nação de F. Bettencourt & F. Diogo Ramada (Orgs.), Lisboa, Sá da Costa, 1989, pp. 473.

22 ELIADE, Mircea, Aspectos do mito, Lisboa, Edições 70, 1989, pp. 12-13.

23 História de Portugal, fl. 1. Cf. Gn 6-8. - Para os historiadores cristãos modernos, mas ainda herdeiros da historiografia medieval de matiz bíblico-teológica, o dilúvio universal, narrado pelas Escrituras Sagradas, constituía um marco fundamental para dividir a História em duas grandes partes significativas: a história anterior ao dilúvio (uma espécie de pré-história pouco conhecida) e a história posterior ao dilúvio muito mais bem conhecida, no entender da visão histórica destes autores. Com efeito, acreditava-se que o fenómeno diluviano que, de acordo com a narrativa do Génesis, teve uma dimensão planetária e totalizante, tinha apagado da memória da humanidade aquilo que tinha acontecido aos homens antes da inundação geral. O dilúvio significa teologicamente uma purificação generalizada e introduz uma nova etapa na história da humanidade. Daqui a influência da interpretação teológica judaico-cristã na configuração desta visão da história.

24 História de Portugal, fls. 1-1v.

25 Diz a História de Portugal que foi a partir de Setúbal "onde Tubal estava assento" (fl. 3), que se lançou o povoamento de toda a Hespanha.

26 Saliente-se que o mesmo faziam os autores espanhóis, defendo essa primazia para a Espanha, como lembra o próprio Oliveira para refutar essa tese.

27 O poder de nomeação das coisas novas é uma prerrogativa divina que está teologicamente ligada a um acto genesíaco de criação, mas que pode ser delegado ao homem. Assim o homem assume uma espécie de delegado de Deus para nomear, para dar identidade às coisas oferecidas à dominação do homem.

28 ibidem, fls. 1-1v.

29 ibidem, fls. 4v-5.

30 Cf. ibidem, fls. 1v-5. Este tipo de explicação histórico-teológica sobre os primórdios da povoação da Espanha enquadra-se numa tradição que remonta a Santo Isidoro de Sevilha e é herdada pela Crónica do Mouro Razis. Na cronística portuguesa, Duarte Nunes de Leão e Frei Bernardo de Brito, herdam e desenvolvem esta lenda.

31 Podemos destacar dois grandes momentos que são caracterizados por Oliveira como sendo de ouro: o do povoamento e criação do reino por Tubal e a sua restauração por D. Afonso Henriques, sobre o qual o autor tem a preocupação de salientar que não foi, de maneira alguma, o primeiro rei de Portugal, pois antes dele tinha havido muitos outros reis desde Tubal.

32 Ibidem, fls. 92-92v. Aqui ecoa o mito da Idade do Ouro, do paraíso perdido cuja recordação e saudade marcou transversalmente a cultura ocidental. Sobre este assunto ver o estudo de DELUMEAU, Jean, Uma história do paraíso: o jardim das delícias, Lisboa, Terramar, 1994.

33 Cf. COLLINGWOOD, R. G., The idea of History, Oxford, 1948, p. 46-48.

34 Cf. ibidem, p. 48: "In one sense, again, ma is the end for whose sake historical events happer, for God´s purpuse is man´s well-being; in another sense man exists merely as a means to the accomplishment of God´s ends, for God has created him only in order to work out his purpose in terms human life." No background inspiracional da filosofia medieval da história está a teologia da história agostiniana bem consignada a monumental Cidade de Deus.

35 História do Futuro, p. 162.

36 Ibidem, p. 162-163.

37 Cf. o estudo clássico sobre a problemática do profetismo e messianismo no Quinto Império Vieiriano: CANTEL, Raymond, Prophétisme et messianisme dans l´oeuvre d´António Vieira, Paris, Eds. Hispano-Americanas, 1960.

38 Cf. ibidem, p. 159.

39 ibidem, p. 159-160. Este tom profético e vaticinante encontra eco inspirativo em Fernando Pessoa: "é a hora."

40 Ibidem, p. 60.

41 Ibidem, p. 60-61.

42 Ibidem, p. 85.

43 Cf. ibidem, p. 47, 48 e 51.

44 Ibidem, p. 60.

45 Ibidem, p. 152.

46 Ibidem, p. 152-153.

47 História de Portugal, fl. 93v. Sobre a origem e evolução do simbolismo da bandeira portuguesa cf. TEIXEIRA, N. Severino, "Do azul-branco ao verde-rubro. A simbólica da Bandeira Nacional", in A memória da nação, Op. Cit., pp. 319-337. Numa história marcadamente mitificante e símbolica como a de Fernando Oliveira, é perfeitamente compreensível a valorização destes símbolos sagrado e mítico, instituintes da identidade do reino.

48 Cf. Ibidem, fls. 86 e ss. A ideia de eleição também está subjacente na narração da vida dos grandes heróis nacionais. Exemplo evidente disso mesmo é a descrição da cura milagrosa de D. Afonso Henriques na sua infância. Ver fl. 72.

49 Cf. História do Futuro, v.g. pp. 183 e ss; pp. 228-229, etc.

50 Ibidem, p. 72.

51 SILVEIRA, F. Maciel, "A persuasão em António Vieira: uma história do futuro", in Brotéria, Vol. 145, Nos. 4-5, 1997, p. 523.

52 Ibidem, p. 72-73.

53 Ibidem, p. 72.

54 Cf. v.g. História de Portugal, fl. 59.

55 Cf. ÇAMALLOA, Estevan Garibây y, Os XL libros d´el compendio historial de las chronicas y universal historia de todos los reynos de España, 2 Vols., Anvers, Christopher Plantino, 1571. Sobre Portugal ver livro XXXIV.

56 No Livro I da História de Portugal, Oliveira tenta mostrar que nem as invasões romanas, nem as dos bárbaros, nem sequer as dos muçulmanos extinguiram totalmente, em tempo algum, essa liberdade e peculiaridade do reino de Portugal. Ficou sempre um espaço, ainda que diminuto, sempre salvaguardado e livre destas tentativas de dominação externa. Defende esta intocabilidade essencial para demonstrar a continuidade ininterrupta do reino desde a sua fundação em direito divino.

57 Esta obra é, em nosso entender, uma versão primitiva da História de Portugal, que foi depois refeita e dada uma titulação diferente. Cf. Manuscrito nº 12 do Fonds Portugais da BNP, fls. 157 a 176.

58 Cf. História de Portugal, fls. 6v -7.

59 Ibidem, fl. 19.

60 Ibidem, fl. 20.

61 O autor tenta provar esta tese recontando e corrigindo diversos episódios clássicos da história de Portugal que mostravam uma dependência em relação aos reinos vizinhos. Por exemplo, tenta demonstrar a não sufraganeidade das ordens militares portuguesas aos mestrados de Castela (fl. 109 e ss.); a falsidade da promessa de vassalagem aquando da prisão de D. Afonso Henriques em Badajoz (fl. 113 e ss.); e ainda quanto à menagem inequívoca que o conde D. Henrique prestava a seu sogro, Oliveira defende que tal menagem era devida quanto à pessoa e não quanto ao reino. Repare-se na significativa argumentação de Oliveira: "com toda a razão que dom Henrique tinha do dote e da liberdade dos portugueses e vontade que eles para isso tinham, não se quis apartar em vida do seu sogro, mas sempre lhe guardou a menagem que lhe fez quando do princípio veio ter à Espanha e se fez seu vassalo, isto quanto à sua pessoa, com a qual sempre lhe obedeceu, mas não quanto às terras de Portugal, porque essas ajuntava ele à república portuguesa, cujas elas eram." (Fl. 62v).

62 Cf. ibidem, fl. 72-72v.

63 Ibidem, fl. 72v.

64 Ibidem, fl. 72v.

65 Consciente das tentativas de usurpação da autonomia de Portugal pelo reino vizinho, alegra-se com a conservação, confirmada nas cortes de Tomar, dessa autonomia, ainda que teoricamente. A união dinástica é feita em forma de monarquia dual, assegurando-se assim uma autonomia na letra para Portugal, que na prática não se mostrará efectiva. (Cf. fl. 70v).

66 História do Futuro, p. 117.

67 História do Futuro, pp. 126.

68 Ibidem, p. 132.

69 Ibidem, p. 277.

70 Cf. ibidem, p. 283 e ss.

71 Estas obras partilham das preocupações da corrente historiográfica e teológica europeia que procurava realizar uma espécie de teologia geral da história, como explica Krzysztof: "Aux XVIe et XVIIe siècles, l´histoire événementielle acquiert un sens grâce à une teologie de l´histoire, quand les événements dont elle traite effectent l´Église, et grâce à une psychologie des agents historiques, quand ils se produisent dans le champ politique." KRZYSZTOF, Pomian, L´ordre du temps, Paris, Gallimard, 1984, 27.

72 LOURENÇO, Eduardo, O labirinto da saudade, Lisboa, Pub. Dom Quixote, 1992, p. 17.

73 PESSOA, Fernando, Mensagem, 14ª ed., Lisboa, Ática, 1992, p. 59.