O.CADERNOS DO ISTA



  • UMA CULTURA PARA A PAZ - UM PROGRAMA
    LUÍS DE FRANÇA



Moldura para uma temática

Em 1997, a Assembleia Geral das Nações Unidas decidiu que o ano 2000 fosse dedicado a promover uma Cultura para a Paz e que ao mesmo tempo se deveria consagrar a essa tarefa a próxima década. Foi à UNESCO, agência especializada da Nações Unidas, que foi cometida em particular a tarefa de promover no mundo e nos próximos anos a ideia de uma cultura para a paz.

Para o fazer, a UNESCO criou um programa mundial cujo ponto de partida foi o pedido a um conjunto de personalidades, que já tinham recebido o prémio Nobel da Paz, para que escrevessem um texto sobre esse assunto. Esse texto foi divulgado como o “Manifesto 2000” e já se encontra traduzido em português.

Podemos agora perguntar donde nasceu a ideia de lançar uma tal campanha.

A questão da guerra num século assassino

Vários responsáveis mundiais têm chamado a atenção para o facto de que o século XX termina com um balanço trágico, que levou alguns a denominá-lo século assassino.

No trágico balanço de seres humanos mortos pelo ódio do século pesam os crimes cometidos contra os que foram eleitos como inimigos apenas por serem, crerem ou pensarem de forma diferente. Quando a Segunda Guerra Mundial se extinguiu, inventou-se uma palavra própria para os definir e o genocídio entrou enfim no dicionário dos horrores da humanidade contemporânea. Na extensa lista de crimes por genocídio encontram-se o extermínio de muitos povos. Em cem anos de genocídio, 16 a 17 milhões de pessoas perderam a vida.

Ainda na primeira parte do século, Segismundo Freud, em correspondência com Albert Einstein, em carta datada de 1932, especulava sobre a possibilidade de pela primeira vez na história da humanidade a abolição da guerra ser possível. Argumentava o fundador da psicanálise que a disposição cultural estava a mudar e sobretudo o facto de que despontava o medo de que a guerra futura pudesse aniquilar o planeta.

Palavras e juízos premonitórios se tivermos em conta que naquela data ainda não tinha sido criada a bomba nuclear. Todos sabemos o que se passou ao longo do século que agora termina.

O choque dos anos 90

Até há dez anos quase tudo se explicava pela existência da guerra fria ou por causa dos blocos. Em 1989 caiu o Muro de Berlim e o balanço não melhorou. O balanço de 1990 a 1999 é igualmente trágico: 3,5 milhões de pessoas mortas; 24 milhões de deslocados; 19 milhões de refugiados.

Aliás, a queda do muro de Berlim, símbolo do fim da política de “coexistência pacifica”, ou melhor, fim do equilíbrio do terror, trouxe para a ribalta da cena internacional uma realidade inesperada. As guerras inter-Estados são substituídas por guerras intra-Estados. No mesmo período, verifica-se que, para além das causas económicas e territoriais, os factores étnicos, culturais e religiosos tornaram-se muito mais presentes como causas imediatas de numerosos conflitos na década de 90.

As situações de hesitação e mesmo de demissão ao longo da crise nos territórios dos Balcãs, ao mesmo tempo que se desenrolavam as crises na Somália e nos Grandes Lagos africanos, levaram os responsáveis mundiais e muitos cidadãos através das organizações de base, nomeadamente as ONG, a equacionar a questão da guerra de modo completamente novo. As guerras originam-se em conflitos, que devem ser transformados ou mesmo prevenidos sem consentir que degenerem em conflitos armados.

A evolução tecnológica, e em particular a miniaturização e precisão das armas bélicas, tiveram como consequência imediata o facto de as vítimas das guerras serem cada vez mais a população civil e não os combatentes, ou seja, as forças profissionais da guerra. A constatação destas realidades e a evolução das mentalidades ao longo deste século mortífero levaram então as Nações Unidas a propor em 1997 que o primeiro ano do novo millenium fosse dedicado à busca da Paz. Assim foi proclamado que o ano 2000 fosse dedicado à implementação de “Uma cultura para a Paz e da não-violência”. No sistema das Nações Unidas a UNESCO foi incumbida de promover esse ano internaciona,l o que o seu Director Frederico Mayor justificou plenamente ao recordar que a UNESCO foi fundada para instaurar a paz através da educação e da cultura.

Como já se referiu acima, a UNESCO solicitou então aos premiados com o Nobel da Paz que redigissem um Manifesto. Esse texto apelativo tem como tópicos fundamentais as seguintes orientações:

Respeitar todas as vidas; Rejeitar a violência; Partilhar a generosidade; Ouvir para compreender; Preservar o Planeta; Reinventar a solidariedade.

Todos os responsáveis mundiais sabem que a tarefa de mudar as mentalidades a favor de uma cultura para a paz não se esgota nem de longe num ano, seja ele internacional. Assim as Nações Unidas logo proclamaram a década de 2001 a 2010 como a Década Internacional da Cultura para a Paz e da Não-Violência.

As novas tecnologias, sobretudo na área da informação, poderão dar ajuda decisiva na difusão de uma nova cultura da paz. Assim a recolha de assinaturas do manifesto que aponta para uma adesão de 100 milhões de cidadãos será feita através da Internet. Mas ao mesmo tempo que se pensa que a sociedade de informação pode ajudar ao conhecimento mútuo também ficamos alertados para o novo problema que essa sociedade de informação está a originar. Os info-excluídos serão amanhã mais uma causa de conflito? Hoje sabemos que a pobreza no mundo é uma das causas das guerras mas não a única, pelo que a possibilidade dos infoexcluídos se tornarem também um argumento para conflitos ou guerras não nos deve afastar do uso da tecnologia para melhor nos conhecermos no mundo. Pelo contrário, todos os estudos e de todos os quadrantes vão no sentido de confirmar que a obra da educação em geral, e a elevação do nível escolar em particular, são a primeira alavanca para se implementar uma cultura da paz.

O exemplo de Moçambique

Todas as organizações e todos os pensadores que procuram caminhos novos para a paz gostam de referir nos nossos dias o exemplo bem sucedido da paz encontrada para Moçambique. Menos falado mas também a ter em conta é a paz conseguida para o conflito em El salvador e mais tarde na Guatemala.

Estas acções positivas foram sinais de luz para todos os militantes da paz no mundo. No que diz respeito à Europa a tomada de consciência colectiva destas novas perspectivas dá-se num encontro europeu realizado em Haia em 1998 para comemorar e de certa maneira retomar o espírito da primeira conferência internacional pela paz que se realizara aí, um século antes: a histórica “onferência da Paz de Haia”. Agora, em 1998, foi criada a Plataforma Europeia de Prevenção e Transformação de Conflitos.

A prevenção de conflitos como nova estratégia e aplicação da não- violência : a prevenção é melhor que a cura.

A necessidade da prevenção dos conflitos violentos tornou-se cada vez mais evidente e por várias razões:

As guerras civis causam sofrimentos maciços e enormes violações dos direitos humanos.

Os custos destes desastres humanitários são visíveis não só nos sofrimentos humanos, mas também nos custos políticos e sociais da destruição da democracia, dos sistemas políticos e mesmo na desintegração dos Estados.

Os excessivos custos das operações humanitárias e da manutenção das forças militares da Nações Unidas põem em causa a própria estrutura da cooperação. Ora, só uma pequena parte destes custos são investidos nas actividades de prevenção de conflitos.

Os conflitos violentos ameaçam a segurança internacional. As respostas tradicionais da comunidade internacional são inadequadas.

Além do mais a experiência diz que quanto mais cedo houver intervenção numa zona de conflito maior será a possibilidade de sucesso. E por outro lado os conflitos violentos são muito mais difíceis de parar uma vez iniciados.

Todos estes considerandos fazem-nos a concluir que a prevenção dos conflitos é necessária. E considerando a cada vez maior competência de muitas organizações e de alguns governos a prevenção dos conflitos tornou-se possível.

Os novos movimentos da paz

Estamos a mudar de século e assim também mudamos de paradigma nos próprios movimentos para a paz. Até ao fim da era dos blocos, os movimentos da paz, os movimentos pacifistas, lutavam contra as políticas militaristas dos governos, contra os mísseis balísticos, contra as bombas de neutrões, etc. Agora os movimentos para a paz ocupam-se duma gama cada vez mais diversificada de áreas de intervenção, a saber : a implementação dos Direitos Humanos, da democracia, da justiça social , da protecção do ambiente , da solidariedade internacional, da igualdade do género.

Uma estratégia global. Ensaiar de vez o caminho da não violência?

É necessário pensar a não-violência Ao dizer não à violência, a violência que dominou a história da humanidade, o ser humano criou a ideia da não-violência.

Esta noção, está mais do que nunca no centro dos nossos debates. Caracterizada pela coragem, o amor da liberdade e o domínio de si-mesmo, a não-violência acaba por ser o oposto de uma atitude estática. Criadora, actuante, pode acelerar a dinâmica social, favorecer a justiça e a democracia. As sociedades contemporâneas têm grande necessidade desse mecanismo para se libertarem do império de todas as formas de violência - política, económica, cultural e sexual – que privam os homens e as mulheres do seu direito à palavra, mesmo à vida. O sucesso da não–violência é também o do debate democrático, quer dizer da troca de palavras entre cidadãos a fim de decidirem o destino comum. Para melhor compreender os desafios éticos e políticos da não-volência, é necessário ter presente a sua história e as diferentes figuras que a incarnaram passando de uma cultura a outra ao longo dos últimos trinta séculos, de Lao-tseu à Madre Teresa passando por Sócrates e por Gandhi.

Passar da fase do espelho onde o homem infantilmente só se contempla a si-próprio, para o gosto de olhar o rosto do outro.

Esta forma de ver e sentir supõe que se aceite que a imagem real da nossa época é a da descoberta da face do outro - a face que determina - não me mates.

Esta atenção ao outro como característica da pós-modernidade foi muito bem dita na obra de Emmanuel Lévinas. Ouçamos esta passagem sobre o elogio do rosto:

O acesso ao rosto é imediatamente ético …Antes de mais há a frontalidade do rosto, a sua exposição sem defesa. A pele do rosto é o que permanece mais desnudado, mais nu … O rosto expõe-se, está ameaçado, como que convidando a um acto de violência. Ao mesmo tempo, o rosto é o que nos impede de matar ...

O rosto, a face, é significação, e significado sem contexto. Quero com isto dizer que o outro na frontalidade do seu rosto, não é um personagem num contexto. Normalmente, é se um “ personagem “; professor na Sorbonne, e filho deste ou daquele, isto é, tudo o que está no passaporte, um modo de vestir, de se apresentar. E todo o significado, no sentido corrente do termo, é relação a um dado contexto. O sentido de todas as coisas está na relação com qualquer coisa, com outro. Mas aqui pelo contrário, o rosto é significação por si mesmo. Tu, és tu . O rosto é aquilo que não se pode transformar num conteúdo,, que o pensamento do outro compreenderia totalmente; o rosto não se determina conceptualmente, convida a ir além … O rosto é aquilo que não podemos matar, ou pelo menos aquilo que nos faz dizer: ? Não matarás”.

O projecto da “guerra das estrelas” ou a “guerra cirúrgica dos efeitos colaterais” é a negação total destas perspectivas, pelo que de perverso encerram ao tornar a violência de sempre amável e aceitável porque sem rosto.

A construção da paz pela prevenção dos conflitos

Igualmente o conceito da paz é redefinido. Paz não é só a ausência de guerra. Cada vez mais a paz é vista como um processo dinâmico, que estrutura as nossas vidas, processo participativo a longo prazo, baseado em valores universais e praticado quotidianamente na família, na escola, na comunidade local, na nação. Nos centros mundiais – universidade e institutos da paz - onde se estão a redefinir as novas estratégias internacionais para a paz, não se pensa só na reconstrução após as guerras mas coloca-se o acento na transformação dos conflitos e quando possível na prevenção dos conflitos, transformando-os em processos de cooperação antes de degenerarem em guerra e destruição. A chave está na educação para a não-violência. A não-violência activa também se aprende e essa aprendizagem faz-se de práticas pedagógicas tais como: a escuta activa; o diálogo ; a mediação e a cooperação. Ao entrar no novo século pode dizer-se que a segunda “literacia” está no “aprender a viver em conjunto” e que essa atitude se tornou tão importante como o era na primeira literacia o “ler, escrever e contar”.

A busca da paz supõe também, como vimos, o recurso às ciências humanas e por isso a mesma UNESCO reuniu em 1986 um conjunto de biólogos em Sevilha que fizeram no termo dos seus trabalhos a seguinte declaração: “a biologia não condena a humanidade à guerra. A mesma espécie que inventou a guerra é capaz de inventar a paz. A responsabilidade é de cada um de nós.”

Cada vez mais homens e mulheres no mundo se convencem de que a cultura da paz é da responsabilidade de cada cidadão. Por isso o Manifesto 2000 procura induzir a ideia de que é o indivíduo mais do que o Estado que é o responsável, o actor central para a criação de um mundo de paz. A cultura para a paz está-se transformando num movimento global – movimento de movimentos – no qual cada um, trabalhando para os direitos humanos, praticando a não-violência, a democracia, a justiça social, o desenvolvimento sustentado e a igualdade do género, sente-se unido, numa grande aliança, a favor duma transformação social.

Luís de França










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