CADERNOS DO ISTA, 6








Mateus Peres


Direitos Humanos: Uma Nota de Leitura (GS 4)* (1)

São bem conhecidas as relações acidentadas que a Igreja, como instituição, teve com a temática e o movimento dos direitos humanos e como, no espaço de apenas século e meio, aproximadamente, passou das condenações mais enérgicas como as de Gregório XVI e Pio IX, por uma cautelosa aproximação (iniciada por Leão XIII. desenvolvida por Pio XI e mais ainda por Pio XII), para a aceitação franca e explícita de João XXIII, na Pacem in Terris, em 1963). Mas não será sobre isso que vou falar, embora me pareça útil não o esquecer.

O tema desta modesta e rápida contribuição, será tomado a partir do compromisso aberto que a Igreja assumiu, de forma verdadeiramente inovadora, ao declarar na Gaudium et Spes:“ a Igreja, em virtude do Evangelho que lhe foi confiado, proclama os direitos do homem e reconhece e tem em grande apreço o dinamismo do nosso tempo, que em toda a parte promove tais direitos”( (GS 41, § 3º)

Que relações há entre Evangelho e direitos humanos? Tendo em consideração que “evangelizar constitui, de facto, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade” (1), cabe perguntar: Que relação ou relações devem ser admitidas entre a mensagem da Boa Nova, confiada à Igreja para que a anuncie “a toda a criatura” e este movimento jurídico e filosófico dos tempos modernos, e inclusivamente, como se relacionam entre si o conteúdo do Evangelho e as declarações de direitos humanos, como a de que se festejam os 50 anos?

Mais exactamente, penso que, nesta problemática, se encontram envolvidas, pelo menos, as duas questões seguintes: Que luz uma reflexão, obviamente teológica, sobre a Igreja em acto de anúncio do Evangelho projecta sobre os direitos humanos? E, com a mesma pertinência, a aceitação, o assumir dos direitos humanos por parte da Igreja e o seu relacionamento com a tarefa constitutiva que luz projectam sobre a própria Boa Nova?

I

A afirmação “ A Igreja, em virtude do Evangelho, que lhe foi confiado, proclama os direitos do homem...” surge quase no fim da esplêndida exposição feita sobre o ser humano que constitui a Primeira Parte da Constituição Pastoral GS “A Igreja e a vocação do Homem”, E não aparece desconectada. É, antes, o resultado, ou melhor um dos resultados, dessa exposição em que em espirito de diálogo, a Igreja oferece a sua contribuição específica sobre o mistério e o enigma do ser humano, não de um ponto de vista estático ou essencialista, mas no do seu destino, do seu dinamismo, daquilo a que chama “a Vocação do Homem”. Este tema leva o texto do Concílio a ocupar-se sucessivamente da pessoa, cuja eminente dignidade reconhece, do quadro social em que se realiza, da sua actividade colectiva e histórica e do papel da própria Igreja face ao mundo, melhor face à dignidade da pessoa, à sociedade e à actividade humana.

Tudo, aliás, começa com a interrogação: “ Que é o homem? Qual o sentido da dor, do mal, e da morte, que, apesar do enorme progresso alcançado, continuam a existir? Para que servem essas vitórias, ganhas a tão grande preço? Que pode o homem dar à sociedade, e que coisa pode dela receber? Que há para além desta vida terrena ?” (10, 1º in fine). A estas interrogações acrescenta ainda o Concílio: “ Que pensa a Igreja a respeito do homem? Que recomendações parecem dever fazer-se, em ordem à construção da sociedade actual? Qual é o significado último da actividade humana no universo?” (11, 3º)

A resposta, num primeiro tempo situa-se em plano que me parece ser o dos desígnios de Deus e, a esse respeito, recordam-se as grandes afirmações da fé: a criatura humana é criada à imagem e semelhança de Deus (12, 3º, 4º, 5º). Convem ter presente que ao relato sacerdotal da criação (Gn 1:1-2:4a), em que se enquadra essa afirmação da fé, se reconhece uma clara intenção polémica. Contra a divinização do cosmo, dos astros e dos outros seres vivos, o texto bíblico afirma a sua dependência perante o único Deus, Criador e transcendente; ao mesmo tempo que dEle recebem a existência, por Ele são aprovadas. “ E Deus viu que estava bem ”. Esta primeira página da Bíblia é assim, no seu monoteísmo cioso, na sua polémica contra os ídolos dos gentios, acentuadamente dessacralizadora. Nada, absolutamente nada, do que “eles” adoram como sagrado tem esse estatuto. A única quase-excepção, nesta devastadora operação de dessacralização é precisamente o casal humano, Homem e Mulher. Criados por Deus, como tudo mais, são, no entanto, “criados à imagem de Deus, como sua semelhança”. Estabelece-se, pois, o ser humano numa situação única de proximidade e como que identificação com o próprio Deus. Por outras palavras, a revelação bíblica propõe, com a transcendência de Deus, uma visão dessacralizada, embora muito positiva, do mundo e do que o compõe, enquanto relativamente ao Homem, aproximado do Criador pelo mecanismo da criação à imagem de Deus, faz dele, em todo o universo criado, a única entidade sagrada.

O texto conciliar prolonga esta perspectiva tradicional, acrescentando -e isto é bem mais inovador- “a razão mais sublime da dignidade do homem consiste na sua vocação à comunhão com Deus” (19, 1º). É de todos conhecida a passagem da primeira Encíclica de João Paulo II, a Redemptor Hominis (12ss), em que, aprofundando uma declaração da GS 22 (“ pela sua Incarnação, o Filho de Deus uniu-se de certo modo a cada homem ”), o Papa, na perspectiva da redenção como projecto do Deus Criador, vai ao ponto de afirmar que “ o homem é o caminho da Igreja ” (RH 14). Na mesma perspectiva de GS 19, aparecem-nos ainda outras afirmações como a de que “ o homem (é) a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma (24, 3º): e de que “vale mais pelo que é do que pelo que tem” (35, 1º)

Até aqui, estamos em perspectiva “descendente”, a que parte dos desígnios de Deus, da revelação. Depois, em plano que me parece ser o da análise do mundo contemporâneo, surge-nos a constatação de que...” aumenta a consciência da eminente dignidade da pessoa humana por ser superior a todas as coisas e os seus direitos e deveres serem universais e invioláveis. É necessário, portanto, tornar acessíveis ao homem todas as coisas de que necessita para levar uma vida verdadeiramente humana: alimentos, vestuário, casa, direito de escolher livremente o estado de vida e de constituir família, direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à conveniente informação, direito de agir segundo as normas da própria consciência, direito à protecção da sua vida e à justa liberdade mesmo em matéria religiosa ”(26, 2º). É uma perspectiva nova, ascendente; que o Concílio faz sua e que aprofunda em números sucessivos (veja-se, por exemplo, 27, 3º), particularmente em 29 em que aborda o tema da “ igualdade fundamental de todos os homens ”, de que decorrem os postulados de que “ se chegue a condições de vida mais humanas e justas ” (4º) e de que se combatam a discriminação (2º) e a opressão política (4º). E ainda: “ Procurem as instituções humanas, privadas ou públicas, servir a dignidade e o fim do homem, combatendo ao mesmo tempo valorosamente contra qualquer forma de sujeição política ou social e salvaguardando, sob qualquer regime político, os direitos humanos fundamentais” (ibid).

Esta perspectiva é nova enquanto tem como ponto de partida não as verdades da fé, mas as realidades, sociais e históricas, vistas como significativas, melhor como sinais -são “os sinais dos tempos”- isto é, como tendo sentido para os crentes e, portanto, podendo e devendo ser lidos na fé. Trata-se, de facto, de categoria teológica da primeira grandeza na temática geral do Concílio e, muito particularmente, da GS. São conhecidas as linhas mestras do relacionamento que a Constituição Pastoral estabelece entre os desígnios de Deus, providência e Senhor da História, e o próprio esforço colectivo, humano, histórico e o seu resultado, o progresso (38-39). Apesar das suas ambiguidades e da exigência de redenção, admite-se generosamente a íntima relação entre os dois planos: “Embora o progresso terreno se deva cuidadosamente distinguir do crescimento do reino de Cristo, todavia, na medida em que pode contribuir para a melhor organização da sociedade humana, interessa muito ao reino de Deus” (37, 2º).

Daí, a afirmação de que o Senhor ressuscitado, actuante pelo Espírito Santo nos corações dos homens, não suscita neles “ apenas o desejo da vida futura, mas, por isso mesmo, anima, purifica e fortalece também aquelas generosas aspirações que levam a humanidade a tentar tornar a vida mais humana e a submeter para esse fim toda a terra ” (38, 1º). Daí também, a exortação a “ activar a solicitude em ordem a desenvolver esta terra, onde cresce o corpo da nova família humana, que já consegue apresentar uma certa configuração do mundo futuro” (39, 2º).

Estamos, pois, bem no coração de uma das opções-chave do Concílio, aquela que consubstancia a Constituição Pastoral, a de um relacionamento da Igreja com o mundo deste tempo, na dupla atitude da identificação e do diálogo. Por um lado, a Igreja afirma, franca e calorosamente, identificar-se com o Mundo (“as alegria e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo“, GS 1). Por outro, propõe-se, melhor, compromete-se a um diálogo com esse mesmo mundo, um diálogo em que a Igreja, ao mesmo tempo, o escuta -porque dele muito recebe, no sentido de aprender, assumir e agradecer-, e lhe fala, não porque saiba tudo (que não sabe, como reconhece sem problemas, 33, 2º e 43, 2º), mas contribuindo, no amor, para a sua caminhada com a sua riqueza, a luz de Cristo, a qual sabe ser infinitamente necessária para o crescimento e a autenticidade do mundo.

Por outras palavras, temos de admitir que, de certo modo, um modo humano e ambíguo, marcado pelo pecado e vocacionado a ser redimido no amor, mas estruturalmente autêntico, a terra reflecte o céu, a história dos homens espelha os desígnios de Deus. E que a Igreja, sem triunfalismos, mas em espírito de serviço, deve pôr ao serviço da humanidade as luzes que Deus lhe confiou para que cheguem a todos, fundamentalmente aquela luz de Cristo de que fala o Concílio. E,por um lado, não é essa luz, aquela que a Boa Nova da salvação, o Evangelho à Igreja confiado, projecta sobre todas as realidades? Para confirmar e para corrigir, se necessário. No pleno respeito pela sua justa autonomia, expressamente reconhecida no mesmo texto (36, 41, etc). E, por outro lado, não é o movimento dos direitos humanos uma realidade incontornável deste nosso mundo, e uma das mais significativas e positivas manifestações do progresso da civilização?

Assim, já em 40, 3º, no cap. sobre O Papel Da Igreja No Mundo Actual, se diz que ”a Igreja não se limita a comunicar ao homem a sua vida divina; espalha sobre o mundo os reflexos da sua luz, sobretudo enquanto cura e eleva a dignidade da pessoa humana, consolida a coesão da sociedade e dá um sentido mais profundo à quotidiana actividade dos homens”. São considerados, como se vê, os 3 capítulos anteriores (pessoa, sociedade, actividade).

Desta forma se chega à frase que foi o nosso ponto de partida (GS 41, 3º): “A Igreja,, em virtude do Evangelho que lhe foi confiado, proclama os direitos do homem e reconhece e tem grande apreço o dinamismo do nosso tempo, que por toda a parte promove tais direitos. ” E acrescenta-se: “ Este movimento, porém, deve ser penetrado pelo espírito do Evangelho, e defendido de qualquer espécie de falsa autonomia. Pois estamos sujeitos à tentação de julgar que os nossos direitos pessoais só são plenamente assegurados quando nos libertamos de toda a norma da lei divina. Enquanto que, por este caminho, a dignidade da pessoa humana, em vez de se salvar, perde-se”.

Uma vez evocado o seu contexto, a tomada de posição do Concílio, fica inteiramente clara, penso. Entre a realização dos desígnios de Deus, em Cristo e na Igreja., entre o anúncio da Boa Nova, que é uma das mais significativas tarefas dessa realização, por um lado, e a realização da caminhada histórica da humanidade, de que o movimento dos direitos humanos é uma das mais importantes conquistas, por outro, não podemos, os que cremos em Deus, Senhor da história, deixar de admitir uma harmonia profunda, apesar dos riscos sempre presentes de desvios e desfigurações (2).

Por isso, a Igreja, cujo “caminho é o homem” e que se identifica com “as alegrias e esperanças” do mundo, adere com toda a sinceridade ao movimento dos direitos humanos; mais: sente-se impelida pelo Evangelho que anuncia a proclamá-los e, com a luz que essa Boa Nova lhe confere, contribuir para libertar o próprio movimento de qualquer erro que o possa diminuir.

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Notas

*Texto revisto, sem que se tenha conseguido eliminar completamente a forma oral inicial, a partir da conferência proferida a 5 de Maio de 1998, no quadro da Semana comemorativa da Declaração dos Direitos Humanos promovida pela Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa

(1) Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, de Paulo VI, EN 14

(2) Comentando este n. 41 da GS, Yves Congar (in L'Eglise dans le Monde de ce Temps, Constitution Pastorale “Gaudium etSpes”, II, Unam Sanctam, pp. 305-327) escreve: “C'est parce que le mystère de Dieu est le terme indistinctement visé par les aspirations de l'homme que l'Eglise, étant chargée de faire connaître le mystère de Dieu apporte quelque chose à l'homme.”Quelque chose”: rien d'autre et rien de moins que le sens final, la signification dernière de ce qu'il est comme esprit et comme personne...Le texte conciliaire ne peut qu'énoncer, sans argumenter ny analyser dans le détail...l'ouverture de l'homme au transcendant, l'insuffisance de ses réponses par rapport à ses questions.

Ce que l'Eglise apporte (§§ 2 et 3) se réfère essentiellement à la dignité de la personne humaine...

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