O.CADERNOS DO ISTA, 5

A Teoria da Justiça (Rawls)
ou a partilha dos egoísmos (1)

FRANCISCO SARSFIELD CABRAL



Antes de mais, um esclarecimento sobre o título que me foi proposto para este artigo. Não seria correcto acusar a teoria da justiça de Rawls de defender uma qualquer “moral egoísta”: nessa teoria trata-se, apenas, de aplicar um método contratualista para estabelecer princípios de justiça que permitam a convivência, em condições de equidade, numa sociedade pluralista. Do que discordo, em John Rawls, é dos pressupostos individualistas-liberais de tal método, que não valorizam a dimensão colectiva da pessoa. Apenas nesse sentido se pode falar de “egoísmo” em Rawls, cuja teoria parte, aliás, de uma opção pela ética da igualdade: a exigência de igualdade só deve ceder quando as diferenças existentes na sociedade se revelem benéficas para a melhoria da situação dos mais pobres (princípio da diferença).

Faço esta prevenção porque não é raro, sobretudo em meios católicos, acusar expeditamente certas posições morais de “egoístas”. É o caso, por exemplo, do utilitarismo (doutrina contra a qual, de resto, é construída a teoria da justiça de Rawls). A expressão “moral utilitarista” soa, de facto, a algo de eticamente impuro a ouvidos kantianos ou, por maioria de razão, a sensibilidades cristãs. Mas é preciso cuidado: se Bentham e os seus seguidores utilitaristas (muito diversos entre si) se baseiam no critério da maximização da utilidade agregada numa dada sociedade, tal significa que, muitas vezes, terei de sacrificar a minha utilidade em favor da utilidade do conjunto (como é que isso se mede, e até que ponto será legítimo fazê-lo, essa é outra questão, naturalmente). A aplicação de uma moral utilitarista pode levar, na prática, a atitudes de profundo altruísmo.

Os individualistas liberais, como Rawls, dão prioridade absoluta à liberdade. Essa opção de princípio é por vezes criticada por ser susceptível de dar lugar, na vida real, a profundas desigualdades, uma vez que assim tende a imperar a lei do mais forte (mas Rawls, como disse, é sensível aos imperativos de igualdade social). Ora vale a pena recordar aqui uma observação do economista-filósofo Amartya Sen (um grande especialista de situações de pobreza), ao lembrar que todas as doutrinas normativas sobre a organização da sociedade que tiveram, ou têm, alguma influência duradoura no mundo defendem a igualdade - a igualdade de alguma coisa, diferente de uma para outra, mas sempre a igualdade.

Assim, os utilitaristas reclamam igual tratamento de cada pessoa quanto a ganhos e perdas de utilidade; os individualistas liberais querem garantir igual liberdade, iguais direitos para cada um; os marxistas visam a igualdade económica das pessoas no ponto de chegada (e não de partida), ou seja, a igualdade do bem-estar, etc. Daí que não se deva ceder à tentação de contrapor, sem mais, os que prezam acima de tudo a liberdade àqueles para quem a igualdade é o valor máximo. As coisas não são tão simples.

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Conviver na sociedade pluralista
 

Rawls parte da situação em que vivemos hoje na maior parte dos países da Europa e da América - uma situação de puralismo de crenças, valores, culturas, concepções do bem - e pergunta-se pelas condições de possibilidade de uma convivência pacífica nessa diversidade, convivência que não seja um simples “modus vivendi”, antes se fundamente em princípios éticos de justiça. No passado, as diferentes e opostas concepções do bem combatiam-se pela força das armas - as guerras de religião que se seguiram à cisão protestante foram a expressão acabada desse confronto. E foi, em larga medida, do horror provocado pelas guerras de religião que, sobretudo na América do Norte colonial do século XVIII, nasceu a prática - e, depois, a ideologia - da tolerância.

O grande mérito de Rawls é elaborar uma teoria da justiça que, embora sendo “política, não metafísica”, visa assentar em razão esse convívio plural e pacífico que, hoje, se pratica nas democracias das sociedades desenvolvidas. Para tal, distingue (na linha kantiana) o que são concepções substantivas do bem - que diferem de grupo para grupo, até de pessoa para pessoa - e o que devem ser princípios processuais de justiça que a todos se possam legitimamente aplicar, sem prejuízo das tais diferenças de concepção da vida e dos ideais de cada um. Digamos que a justiça (e portanto o Estado) estaria necessariamente numa posição de neutralidade perante as várias concepções do bem.

Para determinar os princípios que deverão presidir a uma concepção pública da justiça, Rawls propõe uma situação imaginária - a chamada “posição original” - em que todos os membros de uma sociedade iriam deliberar sobre as regras a que teriam de obedecer. Nesse contrato fictício, mas logicamente fundador da legitimidade de uma moral publicamente vigente, todas várias partes envolvidas na deliberação estariam numa situação de ignorância, para assegurar a sua neutralidade: ninguém saberia se, na sociedade real, é rico ou pobre, homem ou mulher, culto ou ignorante, etc. Do acordo unânime que daí saísse teríamos as regras de uma moral pública na sociedade pluralista.

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O bem e o justo
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O liberalismo deontológico de Rawls dá uma proridade absoluta ao “justo” ( right ) sobre o “bem” ( good ). A ideia de base é simples: se na moderna sociedade pluralista as pessoas legitimamente divergem quanto ao sentido da vida, aos valores substantivos, aos fins, então apenas deverão ser obrigadas a acatar regras processuais, que permitam a cada um prosseguir a sua concepção do bem sem prejudicar os outros. Por outras palavras, o Estado deve ser neutro, abstendo-se de favorecer ou de combater concepções de vida e valores que os cidadãos adoptem, sem ofenderem os direitos dos outros a concretizarem a sua própria noção substantiva de vida boa.

Julgo que esta radical separação entre o justo e o bem não é possível. De alguma maneira, aliás, Rawls implicitamente reconhece tal impossibilidade ao indicar que os participantes na “posição original” necessitam, para deliberarem sob o “véu de ignorância”, de dar valor a certas coisas - bens primários, na sua terminologia - que, em princípio, são desejáveis por todos, uma vez que servem para dar corpo aos mais diferentes planos de vida. Coisas como a saúde, os recursos materiais, o conhecimento, etc. Simplesmente, os meios não podem ser valorizados independentemente dos fins. Nem tudo tem o mesmo valor instrumental: esse valor varia consoante o fim para que é utilizado. Por exemplo, o dinheiro tem uma eficácia para um homem de negócios diferente da que apresenta para um monge eremita.

Isto significa que, no limite, o conceito de bens primários (necessário para tomar decisões na “posição original”) não é pensável independentemente de alguma concepção do bem. Os bens primários não são igualmente valiosos na prossecução das diferentes concepções do bem. Aliás, como obeserva Joseph Raz (um liberal perfeccionista, no sentido aristotélico), é errado julgar que se podem identificar os direitos dos outros sendo totalmente ignorante quanto aos valores que, para cada um, tornam a vida digna de ser vivida, lhe dão sentido e proporcionam satisfação; ou seja, quanto aos objectivos pessoais de cada um na vida. O bem é diferente do justo, mas os dois conceitos não são totalmente separáveis.

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