O.CADERNOS DO ISTA, 5


José Freitas Dinis

PIEDADE
VERSUS COMISERAÇÃO

.

Poderíamos começar por muitas questões... O porquê deste tema? Como poderemos chegar à integração interior numa sociedade marcadamente tão desintegrada? Quais os problemas interiores do homem do nosso tempo? A infelicidade, a dificuldade de integração socio-profissional, a falta de objectivos na vida, a dificuldade em tomar decisões, o desepero que leva à depressão, a procura angustiante da felicidade no ter, o vazio, a racionalização de tudo - sentimentos, emoções, afectos, o ‘umbigocentrismo? E como consequência de tudo isto a ansiedade e a solidão da qual nem a TV Cabo nos tira... depois o vazio que se instala... um verdadeiro contributo à procura das nossas consultas de psiquiatria e de psicoterapia...

Mas então em que ficamos? Qual a origem deste vazio? Talvez:

- a incapacidade para realizar algo mais eficaz, mais comprometedor a respeito da própria vida, da vivência interior e do mundo;

- o sentimento de impotência para exercer alguma influência sobre os ‘destinos do mundo', sentir-se incapaz de ajudar à mudança... a perda da esperança na possibilidade de alterar os acontecimentos, a história que cada um de nós vai escrevendo;

- a dificuldade em sentir, ou melhor, em comprometer-se, em saber o que deseja... Muitas vezes o que este homem faz é reagir, não opta, defende-se de si próprio utilizando medidas desadequadas, desajustadas, abstendo-se da vivência de emoções, de sentimentos (a sensibilidade é fraqueza, é ‘lamechice'...).

Paradoxalmente somos ‘martelados' com vocábulos como: tolerância, transparência, solidariedade, etc... em nome do valor da aceitação pessoal... Nunca fomos tão vulneráveis às doenças psicossomáticas (úlceras, colites, doenças cardíacas, etc), aos comportamentos aditivos... E a resposta parece ser evidente para todos: a culpa ‘é do stress', o stress como entidade exterior, a culpa nunca é nossa...

O homem moderno está a constituir-se um estranho a si próprio. A sobrevalorização da razão tem vindo a provocar o desprezo pela sensibilidade, pelos sentimentos, pela vida afectiva, pelas virtudes, pelos valores, pela piedade . Na verdade, não sei se teremos de ir por aí à procura da alma...

Miguel Torga escrevia assim: «o homem só vale pela grandeza da alma que tem. Honrarias, riquezas, vaidades, tudo desaparece na voragem do tempo. Mas não se apagam as pulsações dum coração generoso»...

Face a tudo isto, podemos perguntar se ainda sentimos pulsar o coração. É nesta perspectiva, a de nos aventurarmos na tomada de consciência de nós próprios, que se elaboraram alguns tópicos que passamos a partilhar (sobretudo através de perguntas, que as respostas cada um terá de as procurar!).

-Na sociedade hedonista de hoje, na civilização do ‘homem light', quem tem tempo para se preocupar em olhar para o lado com olhos de ver?

-Quem procura, quem se esforça por abrir o seu coração, em estar disponível para o próximo? Será que não somos até estranhos a nós próprios?

-O auto-conhecimento não será uma virtude de contornos pedagógicos? Não nos poderá ajudar na procura da ‘via'?

-Para quê procurar a origem do mal para além do mundo? Porquê apontar nos outros a falta de piedade, enquanto não nos interrogamos a nós próprios sobre a forma como vivemos o perdão, a compaixão, a misericórdia?

-Serão o bem e o mal apenas conceitos inventados pelo homem? Que repercussões tem a luta ou a tensão de contrários no desenvolvimento da humanidade?

-Terá o homem perdido a capacidade de amar? Ou apenas teme correr o risco de amar?

-Como experienciamos a piedade na dimensão psicológica e espiritual?

-Estará o homem a deixar de esperar nele?

-Qual o substrato da piedade? E da comiseração?

-Em que fé, em que virtude, em que bem-aventurança, ou simplesmente em que amor assenta a piedade como acto de aproximação e acolhimento?

-Serão a Piedade, a Compaixão, a Bondade, a Condolência, instintos? O que representam para nós, para cada um na sua experiência, na sua história? Desempenharão alguma função na humanização?

-Será a Piedade um valor a desprezar? Não será ‘coisa de fracos'? Ou será precisamente o contrário, isto é, característica dos fortes?

-Como falar de piedade, de Compaixão sem nos interrogarmos sobre o sentimento do altruísmo? E será inevitável confundir altruísmo com sentimentalismo?

-Não será que ao nos defendermos tanto, não nos estaremos a fechar não apenas ao negativo (que nos assusta), mas também ao positivo (que até desejamos)? Não nos isolaremos nós, desta forma, no mais escuro dos nossos medos, permanecendo orgulhosamente perdidos no nosso buraco negro?

A Piedade , do ponto de vista ‘psicofisiológico', é um instinto básico e natural na nossa existência. Reparemos que cada uma das células do nosso corpo sente, por ‘simpatia', a necessidade de todas as outras e responde automaticamente a isso através das suas variadas funções...

A piedade é também pedagógica, permite e facilita o desenvolvimento do Eu, o processo de maturação do indivíduo. Não se trata dum filantropismo, mas de um valor marcado geneticamente em cada um de nós e que pode ou não ser desenvolvido.

A piedade pode ser então fonte de vida... Leva o outro a descobrir, a reflectir... chega a ser oportunidade de metanoia.

O exercício da piedade não é na verdade tão altruísta como possa parecer, também serve o próprio, pois restabelece e renova a pessoa que em relação ao próximo tem esse sentimento/atitude. Pode mesmo existir inconscientemente de forma não desinteressada, para não dizer ‘interesseira'... Quando algo assim acontece penso que algo está mal na nossa identidade profunda.

As pessoas que não sentem piedade podem ser tidas como isoladas das emoções, o que não nos impede de reafirmar que ela é inerente à nossa condição humana e, como tal, passível de ser cultivada, desenvolvida.

No âmago da piedade está o amor, está a amizade, está o sentimento de humanidade profunda e de comunhão entre os seres, na sua interligação natural, constitutiva do ser humano.

Ter piedade significará o encarar todos os seres que nos rodeiam como parte da nossa própria vida. O exercício da piedade exige que coloquemos de lado a nossa excessiva preocupação com os nossos problemas, o tal ‘umbigocentrismo', e que concentremos a nossa atenção, a nossa consciência, o nosso conhecimento na pessoa do outro, observando as suas dificuldades e ajudando-o a superá-las.

Ter sentimentos de piedade deverá significar na acção prática o ‘exercício da compaixão', o ser compassivo. O amor guia a inteligência... hoje fala-se mesmo de ‘inteligência emocional'. O amor é uma força criadora. Esta força produz alegria, coragem, piedade, afecto, imortalidade.

As pessoas que cultivam o amor, o carinho, a bondade, a compaixão, a piedade, são sem dúvida mais saudáveis, mais felizes... A piedade é uma oferta, uma dádiva ao outro; provoca, ou melhor, faz nascer um sentimento profundo de alegria e de realização pessoal. Exercer a piedade é simultaneamente praticar o desprendimento e o acolhimento.

Não queremos ser nem parecer negativistas, porém é bem possível que este sentimento/atitude de piedade seja por vezes decididamente estranho à mentalidade actual.

Piedade, compaixão e mansidão são, a par da tolerância (palavra tão pronunciada e tão injustamente gasta, porquanto pouco concretizada), uma forma de medicina preventiva e também curativa para tantos males das nossas relações interpessoais...

Pensamos que a piedade se situa na zona mais profunda da natureza humana, se se quiser, do nosso ‘aparelho psíquico'. Encontra-se pela auto-consciência. A piedade encontra-se nas pessoas que são capazes de expressar de forma livre e aberta a bondade. É uma espécie, uma forma de consciência que se torna acto ao intervir no sentido de apagar ou diminuir o sofrimento do outro. A piedade é um sentimento-atitude que, quando dado gratuitamente, enriquece não só quem recebe como quem dá... Platão dizia que «é preciso darmo-nos ao bem com toda a alma». A piedade é o caminho da pacificação. Através desta, podemos caminhar no sentido do verdadeiro conhecimento, para a harmonia interior, para a quietude de Deus.

Talvez a piedade seja não julgar as faltas, as negligências do outro e, simultaneamente, uma tomada de consciência dos nossos próprios actos, das nossas próprias negligências... Diz um livro de meditação budista: «Pode-se conquistar milhares de homens numa batalha, mas aquele que se conquista a si mesmo, é o mais nobre dos conquistadores».

Quem usa da piedade é então este nobre conquistador! Conquista-se pela generosidade e pelo afecto... Piedade é também compreender o outro, o próximo. E fácil é verificar que nada disse de forma explícita e propositada sobre comiseração ... é também necessário ler nas entre-linhas!

José Freitas Dinis

.









ISTA
CONVENTO E CENTRO CULTURAL DOMINICANO
R. JOÃO DE FREITAS BRANCO, 12 - 1500-359 LISBOA
CONTACTO: jam@triplov.com