O.CADERNOS DO ISTA, 5






CARLOS JOÃO CORREIA
RELIGIÕES E COMPAIXÃO (1)

 







"J'avais deux ans, deux ans et demi. C'était dans une forêt. J'étais là, je regardais. Ma mère m'avait perdu de vue. C'était un pique-nique. Au bout de quelques mètres, je me suis perdu. Et, tout d'un coup, je découvre devant moi un énorme et splendide lézard bleu […] Je sentais mon coeur battre, d'enthousiasme et de peur, mais, en même temps, je voyais aussi la peur dans les yeux du lézard. Je voyais battre son coeur. "
Mircea Eliade, L'épreuve du labyrinthe

Num dos programas de televisão mais populares dos anos oitenta imagina-se a situação de Juddu Krishnamurti, ainda jovem, procurando encontrar o ponto comum entre todas as religiões. Nessa obra de ficção, Krishnamurti não hesita e diz-nos que o amor é a essência das religiões. A presente comunicação tem como objectivo central discutir o alcance desta afirmação e saber, até que ponto, a compaixão constitui, ou não, o cerne da vivência do amor religioso.

Quando analisamos a vivência religiosa da humanidade, ao longo da sua história e, em particular, quando procuramos perspectivar as origens do fenómeno religioso, dificilmente encontramos elementos que confirmem a ideia de que a compaixão representa a sua tónica dominante. Pelo contrário, todos os dados antropológicos apontam antes para a predominância do sacrifício como traço comum da experiência religiosa. Embora possamos detectar uma enorme diversidade de formas sacrificiais - que podem oscilar entre o holocausto sangrento de pessoas e animais até à mera oferenda de flores e frutos - na génese de todas as religiões conhecidas encontra-se a ideia de um acto ritual no qual se sacrifica algo de precioso como forma de estabelecer, perpetuar ou restaurar o elo de ligação com o objecto de veneração, seja este último um antepassado, um animal totémico ou uma divindade.

A percepção da importância do sacrifício na génese do fenómeno religioso encontra na obra do antropólogo britânico James Frazer um dos seus momentos capitais. Em particular, na sua obra monumental, A Rama Dourada (1), Frazer sustenta a tese de uma cumplicidade especial entre a essência da religião e o acto sacrificial. Observemos, em termos sintéticos, o alcance e os limites da tese de Frazer. O título da obra - Rama de Ouro - baseia-se numa pintura homónima de Turner, de 1834, na qual o pintor inglês quis representar alegoricamente uma cena mitológica da Antiguidade Clássica. Nesse quadro apresenta-se uma mulher que exibe nas suas mãos um ramo de uma árvore a um conjunto de pessoas que não lhe prestam a menor atenção. Que ramo de árvore é esse? Sabe-se que Turner procurou traduzir nesse quadro a sua visão de uma cena do poema de Virgílio, A Eneida (2). Nessa cena, o príncipe Eneias decide visitar o reino dos mortos para se encontrar com o seu pai. Mas, só o conseguirá com a ajuda de uma sacerdotisa, a Sibila, que, como nos diz Petrónio no Satiricon, conhece tragicamente o segredo da imortalidade mas não o da juventude. O ramo de ouro constitui precisamente o símbolo oferecido a Eneias por Sibila, sem o qual, o príncipe troiano nunca poderia vencer a prova da morte. E, em torno deste ramo de ouro que propicia a imortalidade, James Frazer descobre um dos rituais mais enigmáticos da Antiguidade Clássica. O ramo de ouro deveria, em princípio, ser recolhido de uma árvore de um bosque sagrado dedicado à deusa Diana, a deusa virgem e selvagem das florestas. Ora, era em volta dessa árvore dedicada à deusa que rondava um sacerdote cuja obrigação consistia em preservar com a sua vida aquele símbolo sagrado. Este sacerdote, habitualmente um escravo ou um gladiador, não tinha nem um instante de descanso ou tranquilidade, pois haveria de chegar o momento, em que por desatenção, alguém o assassinaria e tomaria o seu lugar. Como nos mostra Frazer, era esta a regra selvagem daquele santuário: o posto sacerdotal e também curiosamente o título de Rei só se poderia obter assassinando o sacerdote anterior.

Segundo Frazer, se este ritual nos surge, numa primeira análise, como uma excepção bárbara no seio da civilização clássica, pode-se, no entanto, surpreender nele uma convicção universal religiosa. Para lá da preservação de um costume histórico lendário, assente na morte cíclica dos reis, o rito da árvore da Rama Dourada simboliza uma visão religiosa baseada no paralelismo simbólico entre, por um lado, a morte e a ressurreição dos deuses e, por outro, os ciclos e ritmos regenerativos da Natureza. A ideia central deste rito é a necessidade de se proceder a um sacrifício contínuo como forma de proporcionar uma revitalização da existência e da vida. São vários os mitos e as crenças religiosas que dão corpo a esta ideia. Observemos alguns exemplos sugestivos que parecem comprovar a íntima relação entre o culto religioso e a experiência sacrificial. Na religião dos Vedas, na Índia pré-hindu, os sacrifícios constituíam o núcleo fundamental da vivência religiosa, de tal modo que se pensa hoje em dia que a mesma palavra pronunciada no momento axial dos ritos está na origem da representação de Brahman como expressão da unidade de tudo o que existe, de Brahma como demiurgo criador e dos Brahmines, casta sacerdotal encarregada de proceder aos ofícios. E se na base deste culto se encontra a ideia mítico-simbólica de garantir o equilíbrio de todas as forças cósmicas, por sua vez, está nele latente a visão de um mundo cuja essência é, por si só, um enorme e contínuo sacrifício, em que cada elemento tem apenas a existência efémera de se poder sacrificar por todos os outros. Encontramos a mesma ideia na mitologia egípcia em que se consagra simbolicamente a morte e a ressurreição do corpo fragmentado do rei-deus, Osíris, ou então na mitologia grega, em particular no mito fundador da religião de Elêusis, que nos narra a irrupção periódica da deusa Perséfone do reino dos Infernos como expressão simbólica da renovação permanente e periódica da Natureza.

As religiões sacrificiais apresentam-se claramente como religiões do sagrado . Segundo o linguista Émile Benveniste (3), esta ideia é, de imediato, visível nas culturas de raiz indo-europeia em que o termo sagrado promove a convergência de duas dimensões antagónicas; por um lado, o sagrado, o sacer , é aquilo que é querido e venerado pelos deuses mas que, numa outra dimensão, nos pode surgir como a experiência da mácula e do execrável. Como compreender esta coincidência tão paradoxal de opostos à luz das descobertas de Frazer sobre a raiz sacrificial do fenómeno religioso? Ou em termos mítico-simbólicos, como compreender a convergência assinalada por Frazer entre aquele que é rei e aquele que é assassinado nos ritos da Rama Dourada e que, mais tarde, Joseph Campbell (4) irá explorar na noção da morte cíclica dos reis?

Várias hipóteses foram sugeridas e, em cada uma dela, descortinamos o esforço de fazer convergir a essência do fenómeno religioso com a essência do sacrifício. Uma das hipóteses mais plausíveis é sugerida pelo próprio Benveniste no Vocabulário das Instituições Indo-Europeias (5). A palavra «sagrado» visaria descrever o sentimento ambivalente em face do acto «sacrificial», no qual uma vítima é aniquilada real ou simbolicamente como forma de contacto e de ligação entre os homens e os deuses. Sacrifício significa, à letra, « sacrum facere », fazer ou tornar algo sagrado. A vítima, através do ritual, comunicaria com a dimensão divina e, como tal, seria, por um lado, venerável e susceptível de admiração. Mas, por outro lado, ela tinha de ser aniquilada sob pena de não existir doação e contacto, o que implicava que fosse considerada «maculada» e «impura». Embora bem sugestiva e convincente, a explicação de Benveniste sobre a ambivalência do sagrado confronta-se com duas dificuldades: por um lado, podemo-nos legitimamente perguntar se a dimensão ambivalente da vítima não será antes a expressão de uma ambivalência mais radical a nível do próprio objecto de veneração. Deste modo, a vítima sacrificada apenas seria o meio de apaziguamento de uma faceta inquietante do sentimento religioso, bem expresso nas noções religiosas tardias de ira ou cólera divina. Por sua vez, a tese de Benveniste pretende circunscrever o seu campo de estudo às culturas de raiz indo-europeia, o que delimita naturalmente o alcance da hipótese sugerida. Nas religiões de raiz indo-europeia encontramos a clara veneração de seres supremos, em particular de «Deus» entendido no seu sentido etimológico como «céu brilhante», raiz que transparece claramente nos nomes de «Zeus», de «Júpiter» (pai do céu), ou no sânscrito «Dyaus». Numa cultura que se pensa ter sido nómada, a ideia do «Céu» ou da abóbada celeste como ponto de referência central impunha-se naturalmente e, deste modo, diferenciar-se-ia da culturas matriarcais dos povos agrícolas que prestam o culto à Terra e à Deusa-Mãe, ou então dos povos caçadores nas quais existe uma clara identificação entre a experiência religiosa e o totemismo. Assim, não só existem diferentes objectos de veneração como muitos deles são mais a expressão de poderes do que de entidades supremas.

Uma segunda hipótese explicativa do sentimento ambivalente do sagrado é-nos sugerida por Rudolf Otto (6) no seu ensaio sobre o tema. Baseando-se na obra do filósofo romântico Schleiermacher, para quem o religioso designava o sentimento de dependência da criatura em face do infinito, Rudolf Otto sugere a ideia de que a ambivalência do sagrado brota directamente da impressão suscitada na consciência humana quando se sente condicionada por algo que não depende dela, que é independente da sua vontade e que se revela como «totalmente outro». O sagrado seria, assim, a categoria que traduziria o sentimento de ambivalência suscitado pela convergência simultânea de um temor em face de uma grandeza e de um poder incomensurável, em que se revelaria tanto o tremendo como o fascínio e a ampliação da alma. Jogar-se-ia no sentimento de sagrado a ambivalência de algo que simultaneamente nos atrai e repele, de um prazer e de uma dor que, como mais tarde nos mostrou Van der Leeuw (7) - no seu ensaio em que procura descrever fenomenologicamente o sentimento religioso - se pode assemelhar à convergência de um sentimento de angústia e de plenitude que se oferece, por exemplo, quando viajamos num espaço absolutamente deserto. A meu ver, a principal dificuldade da hipótese de Rudolf Otto prende-se com o facto de ser mais uma descrição do que uma verdadeira explicação. A riqueza da sua hipótese está em mostrar-nos a confluência entre o sentimento de sagrado - o «numinoso» como lhe chama Otto - e a experiência do sublime. Da mesma forma que o sentimento de sublime promove uma contradição viva entre a exigência infinita do nosso pensamento e a capacidade finita da nossa representação imaginativa, o sentimento de sagrado promoveria a síntese contraditória entre a experiência angustiante de algo que nos transcende e nos fascina radicalmente. Como diz Otto, na sua obra O Sagrado : "esta harmonia de contrastes, este duplo carácter do «numinoso», verifica-se em toda a história das religiões. […] É o fenómeno mais estranho e mais assinalável de toda a história. Quanto mais o divino […] é para a alma o objecto de terror e de horror, tanto mais, simultaneamente, encanta e atrai" (8). O rito sacrificial não seria mais do que a expressão sintética da ambivalência de sentimentos em face do sagrado.

Uma terceira hipótese explicativa - já não tanto linguística ou psicológica - é-nos expressamente indicada na obra do filósofo e sociólogo contemporâneo, René Girard (9). Para este autor, a violência sacrificial não seria um elemento secundário das religiões que administram o culto do sagrado. A ambivalência do sagrado seria o resultado directo da função catártica que a vítima sacrificial desempenha no interior dos conflitos e das dissensões sociais humanas. Em vez da violência recíproca entre todos os membros de uma comunidade, promover-se-ia uma satisfação simbólica através da canalização dessa violência para uma vítima sacrificada que passa a incarnar o mal que se quer expurgar. Daí a reiteração em muitas tradições religiosas de expulsão ou morte de um animal, geralmente um bode, depois de se ter transferido pare ele todos os males de uma sociedade. O rito simbólico do «bode expiatório» é um traço comum das religiões sacrificiais e longe de ser um costume exótico é antes, segundo Girard, a forma mais típica das comunidades humanas resolverem os seus problemas internos. Como exemplifica Jean Cazeneuve, numa linha de pensamento muito próxima de Girard, em muitas comunidades arcaicas, "quando um novo rei tomava o poder, eliminavam-se todas as impurezas para que ele não as pudesse contrair. Para isso, utilizava-se como bode expiatório um prisioneiro, que se levava à fronteira do país vizinho em companhia de uma vaca, de um bode, de um cão e de uma galinha, com as cinzas do rei defunto e os restos do fogo da casa real. Ali, partiam as pernas do homem e as patas dos animais, para que não pudessem retornar e deixavam-nas morrer nesse lugar." (19).

Uma outra hipótese interpretativa da natureza ambivalente do sagrado e da sua relação com o rito sacrificial é-nos proposto por Georges Bataille, em particular na sua obra O Erotismo (11). Para Bataille, a «polaridade» do sagrado e do profano não é mais do que a expressão da polaridade antropológica, da «polaridade humana». Em todos os níveis da existência humana é possível surpreender uma clivagem entre duas esferas, entre dois mundos: o mundo profano e o mundo sagrado. O mundo profano é o universo das interdições, enquanto o mundo sagrado corresponde ao das transgressões. O trabalho libertou o homem da sua esfera natural e estabeleceu regras que permitem o êxito da acção utilitária. Ora, a morte e a sexualidade constituem os obstáculos por excelência a essa mesma acção. Se o trabalho - como aliás Hegel e Marx tinham mostrado - está na raiz da processo de hominização, torna-se necessário estabelecer esferas de objectos interditos, nomeadamente a nível do eros e da morte. Assim, a interdição estabelece a diferença entre os dois mundos. Ao mundo profano e interditório do trabalho opõe o mundo do jogo, da festa, da arte, da ludicidade, numa palavra, o mundo da transgressão. As sociedades humanas encontram-se, pois, polarizadas em duas dimensões sociais: mundo do trabalho e o mundo da festa. Neste último caso, a transgressão é prescrita ritual e socialmente, como nos mostrou, por sua vez, Roger Caillois, na obra O Homem e o Sagrado (12).

Não se pense que, para Bataille, a «transgressão» é o retorno puro e simples ao estado da natureza. A transgressão não abole radicalmente a proibição, pelo contrário, preserva-a no seu seio. Para este autor, tal facto torna-se claro na ambivalência da noção de sagrado. Por um lado, o sagrado é simultaneamente o interdito - o que foi objecto de proibição social - e objecto de transgressão . Este movimento é claro, para este antropólogo, no acto sacrificial: por um lado, o sacrifício transgride o interdito, o da morte, mas possibilita simultaneamente a sua experiência simbólica sem que isso promova a aniquilação da comunidade. Quando a consciência social humana transgride com a proibição, sem que lhe acarrete a sua destruição, sente em si mesma o fascínio do sagrado. Como, para Bataille, a proibição, a nível económico e social, se identifica com as regras estritas presentes no mundo do trabalho, a festa é por excelência sagrada . O sagrado é, assim, para este autor, a experiência possível da continuidade do ser para seres eminentemente descontínuos tanto a nível da sua existência, como a nível das regras de proibição que introduzem.

A meu ver, a explicação mais feliz que possuímos sobre a génese da experiência do sagrado é ainda a que nos propõe Mircea Eliade ao longo da sua obra. Mais do que uma explicação linguística, psicológica, sociológica ou antropológica, Eliade propõe-nos uma autêntica compreensão filosófica do problema. Na sua entrevista auto-biográfica (13), quando interrogado directamente por Claude Henri-Rocquet sobre o que entende afinal por sagrado, diz-nos estas palavras notáveis: "Como delimitar o sagrado? É muito difícil. O que me parece inteiramente impossível, em todo o caso, é imaginar como o espírito humano poderia funcionar sem a convicção de que existe qualquer coisa de irredutivelmente real no mundo. É impossível imaginar como a consciência poderia aparecer sem conferir uma significação aos impulsos e às experiências do homem. A consciência de um mundo real e significativo está intimamente ligada à descoberta do sagrado. Pela experiência do sagrado, o espírito apreendeu a diferença entre o que se revela como real, poderoso, rico e significativo, e o que é desprovido dessas qualidades, a saber, o fluxo caótico e perigoso das coisas, as suas aparições e os seus desaparecimentos fortuitos e vazios de sentido... Mas é preciso ainda insistir sobre este ponto: o sagrado não é um estádio na história da consciência, é um elemento na estrutura desta consciência. Nos graus mais arcaicos de cultura, viver enquanto ser humano é, em si, um acto religioso, pois a alimentação, a vida sexual e o trabalho têm um valor sacramental. A experiência do sagrado é inerente ao modo de ser do homem no mundo. Sem a experiência do real - e do que não o é -, o ser humano não saberia construir-se […] O sagrado não implica a crença em Deus, nos deuses ou em espíritos. É, repito-o, a experiência de uma realidade e a fonte da consciência de se existir no mundo." (14).

Mircea Eliade propõe-nos, assim, uma visão radicalmente nova do conceito de sagrado. Como sublinha este pensador romeno, o sagrado não é tanto um sentimento ou um evento social mas antes a expressão da relação constitutiva da consciência humana com o mundo que a envolve. A grande maioria das experiências religiosas consiste em hipostasiar um evento temporal ou um acontecimento espacial que funciona como ponto de referência a partir do qual a acção humana obtém orientação e sentido. Mas subjacente a esta projecção simbólica sobre eventos temporais e locais privilegiados, o que está em causa na noção de sagrado é o próprio enraizamento da nossa consciência no interior de um mundo que a transcende. O sagrado é, nas próprias palavras, de Eliade «a experiência da realidade» que se oferece à nossa consciência quando nos descobrimos como seres no mundo. Sem a consciência de si como ser real, sem a descoberta de nós mesmos como seres incarnados, dificilmente se poderia revelar a diferença do que é em si real e do que é meramente ilusório. A vivência do sagrado não é, por si mesma, religiosa. Para que a experiência religiosa aconteça torna-se necessário, não tanto a presença de divindades mas a convicção de que é possível decifrar um princípio de orientação e de sentido, agora já não apenas na esfera da consciência do indivíduo, mas do mundo enquanto totalidade. Quando o sagrado assume esta dimensão religiosa torna-se compreensível a necessidade sentida de conferir significação a todos os actos fundamentais da nossa vida, sejam eles a alimentação, a reprodução, a sexualidade, o trabalho e o lazer.

A existência de ritos sacrificiais, muitos deles claramente violentos, pode assim ser perspectivada à luz da constituição de um ponto de referência considerado como absoluto. Diz-nos Eliade: "Para os Astecas, o sentido do sacrifício humano encontrava-se na crença de que o sangue das vítimas humanas alimentava e fortificava o deus-sol e os deuses em geral. Para o SS, a aniquilação de milhões de homens nos campos também tinha um sentido, e mesmo escatológico. Ele pensava que representava o bem contra o mal. O mesmo é válido para o piloto japonês. O bem para o nazismo, sabemos o que era: o homem louro, o homem nórdico, o ariano puro...Quanto ao resto, eram encarnações do mal, do diabo. […] No dualismo iraniano, todo o fiel que mata um sapo, uma serpente, um animal demoníaco, contribui para a purificação do mundo e para o triunfo do Bem. Podemos imaginar que estes doentes, estes apaixonados, estes fanáticos, estes maniqueístas modernos vêem o Mal encarnado em certas raças, nos judeus, nos ciganos. Sacrificá-los aos milhões não era um crime, pois eles encarnam o mal, o demónio. É exactamente a mesma coisa para o Goulag e para a escatologia apocalíptica da grande libertação comunista: ela tem diante de si inimigos que representam o Mal e que obstam ao triunfo do Bem, ao triunfo da liberdade, ao triunfo do homem, etc. Tudo isto pode ser comparado com os Astecas: uns e outros acreditam ter justificações. Os Astecas acreditavam ajudar o deus do sol, os nazis e os russos acreditavam realizar a história." (15). Se a religião tem sido na sua história a expressão simbólica do sagrado, nomeadamente nos seus ritos sacrificiais, Mircea Eliade lança-nos o repto de pensarmos o sagrado não tanto como categoria religiosa mas como princípio filosófico de compreensão do homem no mundo.

Notas

(1) FRAZER, The Golden Bough . A Study in Magic and Religion [1922]. Londres/Nova Iorque, Macmillan, 1983.

(2) VERGÍLIO, Eneida VI

(3) BENVENISTE, Le Vocabulaire des institutions indo-européennes 2. Pouvoir, droit, réligion , Paris, Minuit, 1969, 187-188.

(4) J.CAMPBELL, The Masks of God - Primitive Mythology , Nova Iorque, Viking Press, 1959.

(5) BENVENISTE, Le Vocabulaire des institutions indo-européennes 2 , 187-188.

(6) R.OTTO, Das Heilige. Über das Irrationale in der Idee des Göttlichen und sein Verhältnis zum Rationalen [1917], Munique, C.H.Beck´sche Verlag, sd; trad.port., O Sagrado, Lisboa, Edições 70, 1992.

(7) VAN DER LEEUW, Phänomenologie der Religion , Tübingen, Mohr, 1956 [1933].

(8) R.OTTO, Das Heilige, 6-7 .

(9) R.GIRARD, La Violence et le sacré, Paris, Grasset, 1978.

(10) J.CAZENEUVE, Sociologie du rite. Tabou, magie, sacré . Paris, PUF, 1971; trad.port., Sociologia do Rito , Porto, Rés, sd, 101-103.

(11) G.BATAILLE, L'érotisme , Paris, Minuit, 1957.

(12) R.CAILLOIS, L'Homme et le sacré , Paris, Gallimard, 1950.

(13) M.ELIADE, L'épreuve du labyrinthe, Paris, Belfond, 1985.

(14) M.ELIADE, L'épreuve du labyrinthe, 175-176.

(15) M.ELIADE, L'épreuve du labyrinthe, 146.

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